terça-feira, 18 de agosto de 2009

Tão caridosos que nós somos

1 - Na noite escura e chuvosa um forte chiar de pneus sobressalta a única pessoa acordada naqueles prédios que davam para aquele beco. De um salto põe-se à janela e vê um automóvel que ao curvar aquela esquina em grande velocidade, abre uma porta e despeja com impetuosa violência uma jovem loura para o duro e áspero asfalto, desaparecendo de seguida em alta aceleração. Logo o homem desce do seu piso com grande ânsia e alvoroço no intento de acudir àquela desgraçada. Chegado à sua beira verifica várias contusões e hematomas e que se encontra inconsciente. Com premura pega-lhe ao colo e com esforço magnânimo sobe as escadas que conduzem ao seu andar. Coloca-a na sua cama, limpa e desinfecta com solicitude as suas feridas, põe mais alguns cobertores para que não sinta o frio da noite gelada. Senta-se ao pé da cama vigiando toda a noite não vá haver algum imprevisto. De manhã cedo, vai à Farmácia, de seguida à padaria, depois à leitaria e, por fim, à mercearia. Durante dias sucessivos a sua diligência no tratamento e na alimentação dela são exemplares. Paira no ar uma neblina misteriosa: por que não a leva a um hospital?, por que não chama o médico?, por que não participa à polícia? Parece suficientemente competente para cuidar dela. Será médico? Será que não recorre às autoridades com receio de que ela esteja implicada em sarilhos criminosos? O seu desvelo pretende salvaguardá-la, protegê-la? Estas interrogações surdem fracas, quase imperceptíveis, pois toda a atenção está concentrada no cuidado que aquele homem tem por aquela mulher. Até que ela começa a despertar do seu coma a ponto de recuperar as forças e a plena consciência. Verificando que tinha sido tratada com tanto amor e carinho por aquele homem, logo lhe agradece comovida e comunica a sua vontade de se ir uma vez que se encontra refeita. O rosto do curador faz então uma sucessão de esgares que vão da perplexidade à aflição. Os seus ademanes denotam a mesma apreensão, como uma recusa decidida. Quando a vê soerguer-se do leito em jeito de quem se levanta para se pôr a andar, o seu, dele, desassossego sobreexcitou-se a ponto de a pôr sem sentidos, com uma pancada na cabeça. Prostrada de novo, com aquela languidez própria das mulheres desfalecidas, vemos com imensa estupefacção, a exaltação jubilosa do “benfeitor”, todo contente por poder de novo ocupar-se da sua “paciente”. E assim termina o filme, ou telefilme, francês apresentado na TV a preto e branco pelo actor e encenador Jacinto Ramos há longos anos. Seguramente há mais de trinta. Relatei-o, como o recordo, sem ter tido a oportunidade de cotejar as minhas memórias com um novo visionamento do programa. Será, porventura, provável que um ou outro pormenor seja menos preciso. No entanto, creio que substancialmente o relato é fidedigno. Suponho que ninguém me atribuirá capacidades mnemónicas excepcionais por lembrar um episódio visto uma só vez, vai para quarenta anos. De facto, a história é suficientemente inquietante para poder ser esquecida. Aquilo que parecia caridade e um amor desinteressado era afinal uma possessividade doentia, obsessiva.

Na mente desarranjada daquele palonço aquela enferma não era de todo amada. Era isso sim instrumentalizada, coisificada, escravizada, à acção exercitada pelo tirano dominador. Naquele homem não havia amor nem espírito de serviço, mas tão só uma manipulação sinistra do outro em função daquilo que o fazia sentir-se útil e bom.

2 – Eu receio bem que muitos membros da Igreja, a todos os níveis, possam ceder, ainda que inconscientemente, a este tipo de tentação. Talvez não em termos tão drásticos. Mas a verdade é que ela pode apresentar-se de um modo mais subtil.

Por exemplo, podemos andar todos muito contentes por que a Igreja em Portugal tem casas de acolhimento para grávidas em dificuldade e para crianças “não desejadas”. Assim testemunhamos eloquentemente o Evangelho e a Caridade no meio de uma sociedade que despreza e odeia a vida humana nascitura.

Colocando agora de lado a questão da possibilidade da Igreja poder fazer muito mais neste campo seria bom que nos perguntássemos, com aquele forte tipo de coragem que é necessário para olhar de frente a verdade, porque é que não fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que esse género de assistência não fosse tão necessário e urgente. De facto, a Igreja em Portugal podia (repito, e repito-o categoricamente: podia), e devia, ter evitado a liberalização do aborto. Mas muitos dos seus membros mais responsáveis acharam que não pagava a pena ter dispendido dinheiro, estudo, programação, tempo, catequização com isso (isto mesmo parece ser reconhecido na Nota que o Episcopado publicou a seguir ao referendo do aborto quando confessa o seu falhanço pastoral). Afinal, a Igreja continuaria a ser Igreja e exercitaria a sua missão de acorrer aos necessitados como sempre fez. Aparentemente não lhes ocorreu que podiam ter evitado uma mortandade tão grande como a que se verifica, embora não dessem tanto nas vistas com a sua caridade(zinha).

A indiferença gélida com que gente da mais alta responsabilidade na Igreja, em Portugal, tem lidado com questões como a reprodução artificial, a clonagem, o aborto, as uniões de facto, o “casamento” entre homossexuais, o divórcio, a contracepção, a educação sexual nas escolas e a eutanásia é arrepiante e aterradora.

A impressão com que não poucos podem ficar é que essa gente acha que quanto pior melhor – quantos mais desgraçados se produzirem maior será a potencial clientela da Igreja.

Aquele homem do telefilme se pudesse ter evitado que aquela jovem fosse espancada e lançada fora do automóvel em alta velocidade não o teria feito. Talvez manifestasse “moderadamente” a sua discordância, mas não se empenharia realmente para prevenir aquela desgraça. Antes ficaria esfregando as mãos na expectativa dos cuidados que iria poder prestar.

Nuno Serras Pereira

18. 08. 2009