domingo, 4 de julho de 2010

"Deus detesta-te como és, mas ama-te tal como Ele quer que tu sejas e, por isso, Ele exorta-te à mudança." St. Agostinho

Santo Agostinho de Hipona - Sermão 9, 9-10

“Tais homens (refere-se aos que ainda não se despojaram da mentira para viver e dizer a verdade) são a maior parte das vezes enganados por um modo de pensar, como se dissessem consigo mesmos: “Se tal fosse possível, Deus não nos havia de ameaçar, não deveria dizer, por meio dos seus Profetas, coisas que aterrorizam os homens, mas havia de vir dar a todos o seu perdão, viria perdoar a todos e, depois de vir, a ninguém havia de lançar na Geena (Inferno) ”. Por ele já ser iníquo, também quer que Deus seja iníquo. Deus quer fazer-te à sua semelhança e tu esforças-te por fazer Deus à tua semelhança. Que Deus te agrade tal qual Ele é, não como tu queres que Ele seja. Na verdade tu és perverso e queres que Deus seja como tu és e não como Ele é realmente. Porém, se Deus te agradar tal como é, corrigir-te-ás e voltarás o teu coração para aquela regra, da qual te afastaste, tornando-te tortuoso. Que Deus te agrade tal qual Ele é, ama-o como Ele é. Ele não te ama como és, pois odeia-te como és. Por isso é que Ele tem compaixão de ti, porque detesta o que tu és, para te tornar no que ainda não és. Que Ele te torne, como disse, no que ainda não és. Na verdade, Ele não te prometeu que te faria como Ele é. Serás como Ele, mas de um determinado modo, ou seja, serás semelhante a Deus, como uma imagem sua, mas não da mesma forma como o Filho é imagem. Também entre os homens as imagens são diversas. Um filho de um homem tem a imagem do seu pai e é aquilo que o seu pai é, porque um homem é tal como o seu pai. Porém, num espelho, a tua imagem não é o que tu és. De uma maneira é a tua imagem num filho, de outra é a tua imagem num espelho. Num filho está a tua imagem conforme à igualdade da substância, num espelho, porém, quão longe está a imagem da substância! E todavia está ali também uma determinada imagem tua, embora não seja conforme à substância, como no teu filho. Assim também na criatura, a imagem de Deus não é o que é no Filho, que é aquilo que o Pai é, ou seja, é Deus, é o Verbo de Deus por quem todas as coisas foram feitas. Retoma, pois, a semelhança de Deus, que tu perdeste por causa das más acções. Tal como numa moeda a imagem do imperador aparece de uma maneira e num filho de outra maneira - ambas são imagem, mas aparece numa forma diversa impressa na moeda, de outra maneira aparece representada num filho e de outra maneira ainda aparece cunhada a imagem do imperador numa moeda de ouro - assim também tu és a moeda de Deus, mas melhor que uma dessas moedas, porque és uma moeda de Deus com inteligência e com alguma vida, a ponto de saberes que levas em ti a sua imagem e que foste feito à sua imagem, pois uma moeda não sabe que tem a imagem do rei. Por conseguinte, como comecei por dizer, Deus detesta-te como és, mas ama-te tal como Ele quer que tu sejas e, por isso, Ele te exorta à mudança. Põe-te de acordo com Ele e começa, em primeiro lugar, a querer o bem e a detestares o como és. Quando tu começares a detestares o que és, tal como Deus odeia o que és, então começarás a amar a Deus tal como Ele é.


O doente põe-se de acordo com o médico.

Imaginai um doente. O doente odeia o que é, por isso é que começa a pôr-se de acordo com o médico. Porque também o médico detesta aquilo que ele é. Sendo assim, ele quer que o doente fique são, porque odeia vê-lo febril, pois o médico é um perseguidor da febre, para ser libertador do homem. Assim também a avareza, os maus desejos, o ódio, a concupiscência, a luxúria, as frivolidades dos espectáculos, são as febres da tua alma. Deves odiá-las juntamente com o médico. Desta maneira, pões-te de acordo com o médico, esforças-te com o médico, de bom grado ouves o que ele manda, de bom grado fazes o que ele manda e, à medida que a saúde se vai restabelecendo, até as ordens do médico começam a deleitar-te. Não é fastidiosa a comida para os doentes, quando são alimentados? E pensa-se mesmo que para o doente é pior a hora da sua refeição do que a hora em que tem um acesso de febre. E todavia os doentes fazem das tripas coração, pondo-se de acordo com o médico e, embora contrafeitos e sempre relutantes, conseguem vencer-se, para comerem alguma coisa. Com quanta mais avidez, ao ficarem sãos, conseguirão coisas maiores, visto que, estando doentes, aceitam a custo coisas bem pequenas? Mas porque razão isto sucede assim? Porque os doentes odiaram a sua febre, puseram-se de acordo com o médico e juntos, o doente e o médico, perseguiram a febre. Por conseguinte, quando também nós vos dizemos isto, a única coisa que odiamos é a vossa febre; ou melhor, a própria Palavra de Deus, que está em nós, é que odeia a vossa febre, Palavra essa com a qual vos deveis pôr de acordo. Na verdade, o que somos nós, senão alguém que também precisa de ser libertado convosco e de ser curado convosco?