Desde a mais tenra idade que fui
habituado a conviver com cães nas casas das minhas avós, de um tio, de uma
vizinha e de um outro propínquo, sendo que com eles sempre me dei bem e eles
comigo. Nunca nutri porém um vínculo de intimidade identificando-me à sua
condição canina ou imaginando-os dotados de uma dignidade transcendente igual à
dos seus donos.
Quando tinha quinze anos, os meus
irmãos mais velhos bem como vários amigos falavam da existência de uma temível
fera, um “lobo d’ Alsácia” avantajado, de nome Apolo, que aterrorizava os
transeuntes daquela zona da praia da Parede, onde estávamos de férias. Ora
sucedeu que um dia indo eu sozinho pelo passeio à beira da linha do
caminho-de-ferro avisto do outro lado da rua um homem passeando o que me
pareceu ser um “pastor alemão”. Num repente desatou numa corrida furiosa em
minha direcção. O dono bem o chamava: Apolo! Apolo! Apolo; mas ele continuou a
sua investida doida, enquanto eu, literalmente gelado, paralisei. Chegado ao pé
de mim afirmando-se nas patas traseiras ladrava-me à volta do pescoço e da
cara, que bem senti a quentura do seu espumoso bafo feroz. O proprietário do
“melhor amigo do homem”, mantendo-se no passeio contrário, bradava-me: Não se
mexa! Não se mexa! Apolo! Por amor de Deus, por amor de Deus, não se mexa, mas
não se mexa mesmo. Apolo! Apolo! A mim bem me apetecia responder-lhe: pode ter
a certeza (absoluta) que não vasquejarei, nem mesmo tremerei. Mas se até a
respiração continha, arreceado da minúscula oscilação pulmonar, como me atreveria
a articular uma palavra que fosse. Não saberei dizer quanto tempo aquilo
demorou, poderei, não obstante, adiantar que para mim foram séculos de pavor,
milénios de terror. Alfim, a besta ferina acatou as imperiosas vozes de
“sargento dos comandos” que o dono lhe vociferou. Permaneci, no entanto, por
bastante tempo, numa imobilidade marmórea preventora da probabilidade de novos
ataques sanhudos. O homem seguiu impávido o seu caminho, sem colocar um açaimo,
uma trela que fosse, naquele embravecido animal; sem sequer um pedido de
desculpas, um conforto psicológico que fosse a um adolescente amedrontado com a
iminência de ser despedaçado pelo melhor “amigo” do dono, mas indubitavelmente o
mais selvagem inimigo de desconhecidos.
A comunicação social informou, há
pouco tempo, que um cão trucidou a dentadas cruéis uma criança de 18 meses de
idade. Era de esperar que se levantasse um enorme clamor - tanto mais que todos
os anos somos confrontados com matanças semelhantes de idosos e de crianças
pelos “melhores amigos dos homens”, de indignação e de reivindicação de uma
proibição das perigosas raças caninas em território nacional (já sei que há um
coro bem orquestrado de vozes que afirmam peremptoriamente que tal coisa não
existe, mas é indesmentível que os cães matadores são sempre de determinadas
cepas, bem identificadas). Seria de esperar que houvesse movimentos maciços lastimando
esta vítima tão inocente e indefesa. Mas, não. Em vez disso, uma petição na
Inter-rede recolheu, num dia ou dois, dez mil assinaturas para que a besta-fera
não fosse abatida, como manda a lei. Monstruosa afinal é a criança! A vítima é
o cãozarrão! Abaixo e morte às crianças! Viva e liberdade aos brutos canídeos!
De facto, numa sociedade que se acostumou, com o alto patrocínio do estado e
dos políticos que nele mandam, a liquidar com fervor e alegria as crianças
nascentes, a que foi abocanhada e estraçalhada só pode surgir como mais uma
temerosa inimiga não só das mulheres como dos cães.
Não cuidem precipitadamente que
eu seria incapaz de firmar uma petição para salvar da morte matada um cão.
Posso muito bem fazê-lo com a maior das boas-vontades, desde que não haja discriminação
e se incluam por isso outras criaturas igualmente preciosas tais como porcos,
javalis, cabritos, borregos, vacas, vitelas, perus, galinhas, perdizes,
codornizes, formigas, vespas, melgas, moscas, mosquitos, etc., etc.
Neste país, tão humanista, seis
meses não são suficientes para recolher quatro mil assinaturas para uma petição
que pretende acabar com o criminoso abate, legalmente organizado e financiado, de
dezenas de crianças quotidianamente, mas dois dias são-no para conseguir dez
mil firmas de modo a evitar o abate duma besta furiosa. Lá diz o Evangelho:
onde estiver o teu tesouro aí está o teu coração. Se o tesouro de muitos é o
perro, como está à vista de todos, então será caso para concluir que essa gente
tem um coração de cão.
11. 01. 2013