segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ficção e realidade - João César das Neves

In DN

Nas últimas semanas o País viveu o interlúdio cómico de um suposto especialista da ONU divulgando um relatório alegadamente produzido por "uma equipe de sete economistas, que trabalhou no tema durante mais de um ano" (Expresso Economia, 15/Dez, p.12). Com alguns corados de vergonha e outros vermelhos de tanto rir, poucos se debruçaram sobre o aspecto interessante do episódio: como pode acontecer uma coisa destas? Como foi possível pessoas inteligentes, cultas e informadas serem enganadas desta maneira, aceitando como boa a análise de um ignorante? Há aqui um mistério que merece investigação.

Uma possibilidade é o economista, mesmo falso, ter dito coisas certas e sensatas. Assim não admiraria que até observadores atentos e informados fossem enganados. Mas se esta solução resolve o primeiro enigma, levanta outro pior. Será que um qualquer "chico-esperto", sem estudos ou diplomas, consegue nesta situação tão complexa dizer coisas equivalentes aos grandes especialistas internacionais? Afinal todas aquelas teorias, estatísticas, equações e modelos não servem para nada? Sendo assim, para quê perder tempo e dinheiro a escrever e ler esses relatórios? Bastaria perguntar ao taxista ou ao avô surdo para ouvir o mesmo.

Mas terá o homem dito mesmo coisas acertadas? De facto as suas afirmações foram disparates monstruosos: "Desemprego de 24% em 2014" (p.1), "41% do total da dívida soberana ... advém da obrigatoriedade do cofinanciamento pelo Orçamento de Estado português" (p.12); "340% do PIB de endividamento global" (p.13), etc., etc. São atoardas tão absurdas e dislates tão exagerados que facilmente seriam desmascarados numa consideração ponderada. Se o suposto especialista tivesse usado os relatórios verdadei- ros de instituições internacionais, diria coisas opostas às que disse. Banco Mundial, FMI e OCDE (o PNUD não é conhecido pela qualidade das suas análises conjunturais de países desenvolvidos, por não ser essa a sua função) apresentam cenários muito diferentes.

As previsões da taxa de desemprego para 2014 andam entre 15,9% e 16,6%, ainda muito elevadas, mas já a descer. A economia portuguesa estará a crescer nesse ano, mesmo que muito pouco (0,8%-0,9%) e a enorme dívida bruta total do País ao exterior não deve atingir sequer os 250% do PIB, quanto mais 350%. Nenhuma organização séria sugeriria a Portugal repudiar ou renegociar a sua dívida externa, o que lhe destruiria a credibilidade junto dos credores e agravaria os financiamentos externos por muitos anos.

Assim a resposta simples não colhe: o relatório fictício nunca poderia ter passado por verdadeiro. Voltamos então ao problema inicial: como conseguiu ele aldrabar tanta gente boa? A resposta é fácil. Aquilo que constava nas suas conferências e entrevistas (porque parece não haver relatório) era uma asneira pegada, mas que não destoa das asneiras que andam a dizer-se por aí em comícios, jornais e conversas de café. O burlão da ONU foi recebido de braços abertos simplesmente por trazer credibilidade institucional às convicções exageradas que hoje dominam a opinião pública.

Assim, involuntariamente, o caso mostra como o rei vai nu. De repente vemos que o que discursos, notícias e comentários afirmam está ao nível das tolices de um falsário. Na raiva, ninguém quer uma análise séria e ponderada da situação. Ninguém lê os verdadeiros relatórios das organizações reputadas, e as reportagens sobre eles incluem frases soltas, enviezadas e fora do contexto apenas das secções mais negativas, porque é isso que o público quer ler. Todas as antevisões positivas são descartadas como ilusórias, empolando-se qualquer contorno mau. Os catastrofistas são aplaudidos, enquanto se troça e insulta de quem tentar estimular, confortar e serenar os ânimos.

Todos anseiam por ser confirmados na sua certeza macabra de que isto vai de mal a pior. A esperteza do impostor, como dos discursos, foi dizer aquilo que as pessoas querem ouvir. Preferem a ficção à realidade, mesmo que seja pior que a realidade.