«Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração. … Escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas
portas» (Dt 6, 6 e 9).
O Deus
invisível, transcendente, sublime fez-se carne e habitou entre nós. Este facto
inaudito é a base da nossa fé. Isto significa que Deus assumiu um corpo, um
rosto, uma posição social, uma cultura, uma terra. O Deus que fez o mundo,
amou-o de tal modo que quis viver nele e abandonou a sua sublimidade para ter uma
presença corporal.
Isto significa
que a nossa fé é a mais concreta, palpável, encarnada de todas as religiões.
Nada na nossa fé está desligado da realidade física e concreta. Tudo é patente
e visível. Desde o princípio os cristãos são um povo constituído por pessoas
particulares, que se reuniam num local específico: «Reuniam-se todos
no Pórtico de Salomão e, dos restantes, ninguém se atrevia a
juntar-se a eles, mas o povo não cessava de os enaltecer» (Act 5, 12-13). A religião
cristão, apesar de toda a sua elevação espiritual, filosófica e conceptual,
nunca desdenhou o povo simples e os marcos terrenos. Campanários e procissões,
cruzeiros, catedrais, conventos e mosteiros, hábitos e pendões, nomes de ruas e
de hospitais fazem a nossa fé presente na arquitectura e toponímia das nossas
cidades, na vida corrente das nossas sociedades. Simplesmente porque «o Verbo se fez carne e habitou entre nós»
(Jo 1, 14).
A Encarnação é a presença de
Deus no mundo. Precisamente por isso nenhum facto cristão se tornou mais universal
e mais visível que o Natal. Todo o mundo o celebra, mesmo que não seja crente,
e por todo o lado nessa época se multiplicam os símbolos alusivos. Este excesso
de sucesso levou alguns a notar que, presente em todo o lado, o nascimento de
Cristo acabava por estar realmente ausente. Assim nasceu o estandarte com o
Menino Jesus, que desde há uns anos tem decorado muitas das janelas e fachadas
das casas portuguesas.
Trata-se de uma excelente
iniciativa, que tem desempenhado um papel muito relevante. No meio de toda a
simbólica natalícia, cada uma daquelas singelas bandeiras mostra ao mundo que
alguém sente o significado profundo dessa celebração. Ao ver o pendão,
instintivamente sentimos um laço profundo com as pessoas que vivem atrás
daquela janela. Mais importante, aquela imagem conduz-nos, no meio da vida
afogueda, a uma fugaz meditação sobre o sentido da quadra, sobre a profundidade
do que estamos a viver.
Agora, por iniciativa de um
sacerdote franciscano do Patriarcado, surge o estandarte da Páscoa. Se
possível, este ainda é mais necessário que o do Natal. Primeiro porque o
Mistério Pascal é o verdadeiro centro da nossa fé, a finalidade última da
Encarnação. Por Ele fomos salvos, n’Ele encontramos a vida. Segundo porque esta
quadra é socialmente muito menos visível que o Natal, e marcá-la é mais urgente
e influente. Terceiro porque o longo período de Quarta-feira de Cinzas ao
Pentecostes torna a dispersão mais perigosa e frequente, exigindo ainda mais um
símbolo que repetidamente nos recentre no essencial.
Na primeira Páscoa da
história, nas sombrias ruas egípcias sob as pragas, as portas estiveram
envolvidas. «Tomareis depois um ramo de
hissopo, mergulhá-lo-eis no sangue que estiver na bacia, e marcareis o dintel e
as duas ombreiras da porta com o sangue que estiver na bacia» (Ex 12, 22).
Hoje as portas do templo dedicado a Cristo são os lábios dos fiéis onde
brilha o Sangue verdadeiro, como diz S-João Crisóstomo (cf. Catequese 3, 13,
ver Ofício das Leituras de Sexta-feira santa). Mas porque não envolver as
nossas portas e janelas na proclamação social do mistério que nos dá a vida?
As razões para não pendurar o
estandarte são muitas e razoáveis. Tantas quantos os obstáculos da Via Sacra.
Só há mesmo um motivo para o colocar. E esse está ligada à razão porque o
Condenado seguiu a Via Sacra até ao fim.