domingo, 3 de fevereiro de 2013

Apostei tudo no estandarte do Crucificado - por Nuno Serras Pereira


É possível invocar milhentos motivos (estou escrevendo isto antes de conhecer as ressonâncias que pedi aos amigos) para não embarcar com o Crucifixo (= Crucificado) nesta aventura aparentemente temerária de O pôr à vista de todos na praça pública, nas ruas da cidade, dependurado de varandas e demais locais altos, entre o céu e a terra. Mas a verdade é que me parece que todo esse enorme amontoado se desfaz e pulveriza com um grãozinho de Fé, eminentemente razoável.

De facto, podemos interrogar-nos se a morte e morte de Cruz, contrariamente ao fascínio exercido pelo nascimento do Menino Jesus, não repugnará à sensibilidade e não amedrontará as pessoas. Mas o mesmo Cristo respondeu a esta dúvida ao afirmar, referindo-Se profeticamente à Sua crucifixão, “quando for elevado da terra atrairei todos a Mim”. E assim sucedeu. E continua a acontecer ao longo dos séculos.


Outra questão, é a de se não será “obsceno” mostrar um homem cruelmente morto à multidão. Importará, creio eu, recordar que todos os dias somos bombardeados com imagens mais ou menos semelhantes nas televisões, sem que alguém proteste. Convirá ainda adiantar que aqui não se trata de um homem qualquer mas do Homem, o Novo e definitivo Adão, que ao entregar-Se livremente por Amor (Caridade) para nos libertar mostra, pelo menos duas coisas relevantíssimas: em primeiro lugar, onde pode chegar a selvajaria e perversidade humana capaz de assim se assanhar, encarniçar, maltratar, torturar e assassinar o próprio Deus que Se humanou para nos redimir do pecado e da morte; em segundo, revela o Amor (Caridade) infinito de Deus, que se dispôs a padecer tanto para salvar aqueles mesmos que O crucificaram, isto é, não só aqueles que imediatamente, naquele tempo, o supliciaram mas cada um de nós, por mor dos nossos pecados.


Mas numa altura de profunda crise económica não seria melhor entregar os custos dessa campanha a uma instituição de solidariedade social para acorrer aos mais desfavorecidos? Esta é a objecção que Judas colocou aquando do derrame do rico unguento sobre Jesus, antes da Sua Paixão. A ela já o próprio Cristo tinha respondido quando no deserto derrotou o demónio dizendo-lhe que “nem só de pão vive o homem, mas sim de toda a palavra que são da boca de Deus”. Ora, Jesus Cristo é a Palavra eterna, completa e definitiva de Deus. O então Cardeal Ratzinger explica, numa das suas meditações, que a resposta que Jesus dá ao demónio é que nos esclarece sobre o conteúdo da tentação: o demónio insinuava que o pão, o alimento, o bem-estar material seriam suficientes para salvar o homem. Jesus com a Sua réplica afirma a prioridade da Verdade, de Deus. Só na Verdade que é o próprio Cristo é que encontraremos a iluminação, a vontade e a capacidade de resolver não só os problemas pessoais mas também os sociais. Na esplêndida mensagem do Papa Bento XVI para esta Quaresma ele ensina que a mais eminente forma de Caridade é a comunicação da Fé, a Evangelização, proporcionando o encontro, a relação e a amizade com Jesus.
 

E que consolo não poderão tirar os pobres, os desempregados, os doentes, os reformados ao olharem para Aquele que conhece e experimentou as suas mortificações e penas, e os acompanha, amparando-os, nas suas vias-sacras? E sabendo que o crucificado Ressuscitou, vencendo definitivamente o sofrimento e a morte, não será isso uma admirável nutrição para a Esperança? E quantas orações silenciosas e sentidas não poderão brotar daqueles peitos amargurados implorando o socorro Divino? E quem calculará o número dos que, ao contemplarem o Crucificado, serão impelidos por uma comoção verdadeira a reparar nos desprovidos e a dedicar-se aos indigentes e necessitados?


Mas, objectar-se-á, a Quaresma passa num instante, e depois não faz sentido manter o estandarte durante o tempo Pascal, no qual se celebra a Ressurreição. A esta dificuldade responde-se de vários modos: A Páscoa, passagem da morte à vida, celebra-se solenissimamente na Missa da Vigília Pascal e solenemente nas Eucaristias do Domingo de Páscoa e sua oitava. A Missa ou Eucaristia não é simplesmente uma recordação ou lembrança do que aconteceu no Calvário mas é o tornar realmente presente, de um modo incruento, o único e definitivo Sacrifício de Cristo na Cruz. Nesse Santíssimo Sacrifício em que a Igreja participa, associando-se, se torna verdadeira, real e substancialmente Jesus Cristo Ressuscitado nas aparências de pão e de vinho cujas substâncias foram transmutadas n’ Ele próprio, permanecendo os acidentes. Sabereis que a enumeração dos 40 dias da Quaresma prescinde da contagem dos Domingos, por ser este o dia do Senhor, isto é da Sua Ressurreição. E, no entanto, na celebração Eucarística dos Domingos o Crucifixo (o Crucificado) está sempre visível, ou em cima do altar ou a seu lado. A auréola dourada que rodeia a cabeça do Crucificado, no estandarte, significa a Sua Ressurreição Gloriosa, pelo que nos está dizendo que o Crucificado e o Ressuscitado são uma e a mesma Pessoa. Mas será apropriado um fundo vermelho para o estandarte do Crucificado? Afinal o encarnado é uma cor viva, que transmite de algum modo alegria. Assim é, e precisamente por isso parece muito apropositado. Primeiro, porque é da cor do Sangue que o Senhor derramou para nos salvar. O sangue nas Sagradas Escrituras simboliza a vida, e o sangue livremente derramado indica a vida entregue por Amor, dada por Amizade. As mesmas também referem que o vinho é o sangue das uvas e, noutro passo, que aquele “alegra o coração dos homens”. Quer isto dizer que a alegria brota de uma vida entregue, doada, concretizada em serviço dos outros, em amor operante. O preciosíssimo Sangue derramado por Cristo é a causa de toda a nossa alegria. Se com Ele comungamos, aceitando e acolhendo a “transfusão” espiritual/vital seremos também causa de alegria para muitos. Tudo isto constitui um catecumenato visual que nos ensina (de um modo implícito, intuitivo), entre muitas outras coisas, que a felicidade não estar no ter, no acumular, na cobiça, mas, pelo contrário, no ser com e como Jesus, no partilhar, na entrega inteira a Deus, no dom sincero e verdadeiro de si mesmo aos outros, a todos os outros, sem excepção.


Muitas mais coisas haveria a escrever, mas uma vez que o texto já vai muito longo deter-me-ei, ainda que brevissimamente, numa outra dúvida: poderá um “trapo” pintado influir tanto nas almas, nos entendimentos, nas vontades? Respondo que “trapo pintado”, embora de modo sobrenatural, é a Virgem Nossa Senhora de Guadalupe e as profundas e imensas conversões que tem operado e os portentosos milagres realizados ao longo dos séculos não acabam de nos espantar e maravilhar. 


Jesus Cristo figurado no estandarte não é um mero pedaço de tecido imprimido mas é um sinal que remete para a própria Pessoa, um instrumento que o Senhor na Sua infinita bondade e humildade usa para Se comunicar e encontrar com muitos. É verdade que, como quando Ele viveu na Terra Santa, muitos o ignorarão ou até o odiarão, afinal Ele é e sempre será Sinal de Contradição, mas muitos outros O acolherão nas suas vidas e se calhar a única oportunidade de O “verem” será esta.


Finalmente gostava de recordar que tanto o Papa João Paulo II como o Papa Bento XVI repetidamente insistiram na presença pública do Crucificado (Crucifixo).


Falta somente explicar o título do texto que parecerá misterioso. Desde que decidimos avançar com este projecto do Crucificado mostrado aos olhos de todos para a todos abençoar, as dificuldades, contrariedades e incompreensões não deixaram de surgir, e, quando tudo parecia estar pronto e decidido tudo se desmoronou. Foi então, quando parecia impossível avançar, que decidimos fazê-lo sozinhos, sem garantias algumas de sucesso, somente confiados no seguinte: Estamos a trabalhar com recta intenção por Amor a Jesus Cristo e aos nossos concidadãos, por isso Deus não nos faltará com a Sua Providência. 


A obra não está perfeita mas procuraremos melhorar, se Deus quiser, para o ano.


À honra de Cristo. Ámen.

03. 02. 2013