Obrigado
por me fazeres sentir a alegria de ser discípulo de Cristo, na sua
Igreja e nesta obra de Deus, que tem a glória humana de não ter como
Jesus, nenhuma glória humana
Que
sina a minha: mal nasci, saí no jornal! Não tive culpa. Só que me
aconteceu o insólito facto de ser o primeiro de três gémeos
portugueses, dados à luz em Haia, a capital dos Países Baixos.
Menino
e moço, recordo que em casa se lia o “Diário de Notícias”, sobretudo a
sua necrologia, uma parte indiscutivelmente verídica do órgão oficioso
do regime que, por isso, só podia ser objectivo na medida em que a
censura o permitisse.
Depois
do 25 de Abril, o mesmo diário, para se redimir do seu passado
colaboracionista, entregou-se com fervor ao novo poder. Foi por estas
alturas o consulado do Nobel literato que, em pleno PREC, alinhou pelas
“boas práticas” da ditadura do proletariado.
Em
casa, claro, continuava-se a receber o jornal, cujo obituário merecia a
melhor atenção dos mais velhos da família, que aí encontravam sempre
pessoas das suas relações. Para as outras verdades, as do país e do
mundo, era preciso ir ao “Le Monde”, à “Time”, à BBC ou à “Deutsche
Welle”.
Lembrei-me
de tudo isto agora, que o “Diário de Notícias” se lembrou de devassar
uma pacata obra de Deus – logo por azar a instituição eclesial em que
sirvo há já alguns anos – atribuindo-lhe estranhas gestas, para além de
secretos mundos e muitos fundos. Fá--lo com meias verdades, repetindo
velhos tópicos, mas sem nenhuma especial originalidade.
Nada
de novo, portanto. Contudo, surpreendi-me: afinal, é tão fácil
fabricar um escândalo! Quer-se acusar de opulência a diocese de Lisboa?
Basta recordar que as igrejas da Baixa valem muitos milhões e,
portanto, o patriarcado é, na realidade, multimilionário. Pretende-se
denegrir as carmelitas descalças? Escandalizem-se os leitores com a sua
obrigatória reclusão e as suas arrepiantes autoflagelações. Precisa-se
de caricaturar as missionárias da caridade? É dizer que as desgraçadas
não têm televisão, não leram, nem podem ler, O Memorial do Convento.
Interessa difamar a Companhia de Jesus? Reedite- -se o que dela
disseram os que, em 1910, a expulsaram do país, sob a acusação dos
jesuítas envenenarem as águas dos fontanários públicos…
A
bem dizer, não há pessoa ou instituição, por mais santa que seja, que
resista a uma “grande investigação sobre o seu lado secreto”. Nem mesmo
o próprio Cristo. Bastaria dizer, por exemplo, que, com trinta anos,
não tinha residência fixa e vivia apenas com homens, um dos quais, por
certo, ladrão. Que se deixava tocar por prostitutas e, enquanto havia
quem morresse de fome, aceitava ser perfumado com bálsamos caríssimos.
Que pregou o amor, mas chicoteou os seus semelhantes. Que chamava a si
as criancinhas e tinha, como seu amigo predilecto, um jovem
adolescente, que se reclinou sobre o seu peito… Tudo verdades, a
concluir numa sacrílega mentira, a que o incauto leitor seria induzido
por um inquérito “rigoroso” e “objectivo”.
É
lógico que seja assim. É lógico que o poder laico não possa tolerar
uma Igreja livre. É lógico que os discípulos do Mestre crucificado
sejam objecto do escárnio e da maledicência dos seguidores do príncipe
deste mundo. É lógico que uma entidade indiscutivelmente fiel à Igreja e
unida ao Papa e aos bispos, seja maltratada onde recentemente se negou
o dogma católico da virgindade de Maria e se criticou o último livro
de Bento XVI. É lógico que a viúva do Nobel, erigida – sabe--se lá
porquê!? – em alta autoridade para os fenómenos eclesiais, seja fiel à
memória anticristã do seu defunto marido que, segundo a própria,
“detestava profundamente as religiões”. É lógico. Aliás, como o mundo,
também o inferno deve estar cheio de gente com carradas de razão… Mas
sem amor.
Querido
“Diário de Notícias” da minha vida: obrigado por esta companhia, desde
o meu nascimento e, presumivelmente, até à minha morte. Obrigado por
me fazeres sentir a alegria de ser discípulo de Cristo, na sua Igreja e
nesta obra de Deus, que tem a glória humana de não ter, nem querer
ter, como Jesus, nenhuma glória humana.
Não
te peço que deixes de ser o que sempre foste e, seguramente,
continuarás a ser, por muitos e bons anos. Mas, se noticiares a minha
morte na tua infalível necrologia, por favor, diz apenas que morreu
alguém profundamente feliz.