quinta-feira, 14 de maio de 2009

Os Braços aberto de Cristo

In Diário de Notícias - 14. 05. 2009

Foi há cinquenta anos que se inaugurou o monumento ao Cristo-Rei, na outra margem do formidável Tejo, abraçando a cidade, e nela Portugal inteiro. Obra paga do bolso dos católicos, tinha o sentido de um agradecimento à providência divina por nos livrar dos horrores da guerra que destroçara a Europa.

Eu tinha sete anos de idade e fui, tal como tantas outras crianças, metida num autocarro, vestida, penteada e de lancheira para, em formatura, assistir aos actos solenes. Falavam-nos da guerra e de soldados mortos, de viúvas e órfãos, de medos e oração, de esperança e da misericórdia de Deus. Eu pouco entendia, arrancada às minhas rotinas habituais, transportada para um território desconhecido, no meio de uma enorme multidão e, sob o peso da solenidade, recordo-me que os pés me doíam, apertados nuns sapatos novos.

No próximo sábado vou lá voltar. De barco e pelo rio, na procissão fluvial que acompanhará a imagem da Senhora de Fátima, vou agradecer os braços abertos de Cristo de que aquela estátua é apenas um símbolo, imóvel e permanente na nossa paisagem ribeirinha; vou relembrar os braços abertos na cruz, pela violência dos cravos que pregaram as mãos ao madeiro; vou pensar na minha vida e no nosso destino colectivo, na humanidade e neste vale de lágrimas. Vou, com a minha fé primária, sem sofisticação intelectual ou evidência científica, misturar-me com os muitos portugueses que ali estarão na alegria do espírito e de coração aberto.

E porque isto é tão magnificamente simples e evidente, não carecendo de justificação, palavras de ordem, reivindicações ou protestos, vai valer a pena lá estar. Nas nossas vidas são incontáveis os momentos em que medimos o valor imenso destes braços sempre abertos, desta paternidade absoluta, deste amor paciente.

O mundo mudou mas a condição humana permanece a mesma. É isso que nos distingue, nos identifica e nos une, num tempo em que as desigualdades e as discriminações não param de aumentar e subtis formas de ditadura, intolerância e indignidade reduzem parte da humanidade a novos cativeiros. Neste admirável mundo novo, o triunfo de um relativismo moral gelado condenou muitos a uma pesada solidão em nome de um individualismo feroz; o sofrimento, a violência e a própria morte transmitida em directo pelos media foram esgotando as reservas de compaixão; somos solidários pelo correio, pela Net, por transferências bancárias, prescindindo do rosto do outro, das mãos do outro, do olhar do outro; criámos categorias homogéneas e abstractas para tranquilizar a nossa consciência.

Neste mundo inquieto, Portugal atravessa tempos duros, de pouca esperança e muita dúvida. O paradigma da sociedade da abundância e do desperdício, do consumo fácil, da alegria pelos bens materiais, da secura da espiritualidade e da recusa da transcen- dência não trouxeram, afinal, a felicidade. Mas os braços Dele estiveram e estarão sempre abertos. E a Sua Igreja feita de uma incontável multidão de homens e mulheres comuns, apesar de erros e acertos, de pecados e virtudes, de tentações e redenção tem mantido, ao longo dos séculos, intacta a fidelidade à Cruz, na caridade, na fé e na esperança. E hoje isso é mais patente em Portugal onde, por força da crise, milhares de famílias procuram e encontram nela não apenas apoio material mas conforto e amparo, independentemente das suas crenças, pois aqui não há obrigatoriedade de filiação ou de orientação ideológica para se ser acolhido.

São diferentes os tempos e são novas as ameaças, mas sabemos que no próximo dia 16 temos mil razões para estar lá: para agradecer e pedir, para pedir e agradecer.

Maria José Nogueira Pinto

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Entrevista à revista Tabu, do semanário Sol, de Fernando Castro, Presidente da Associação Portuguesa das Famílias Numerosas


Diz que as medidas para inverter o envelhecimento da população têm sido desastrosas e irresponsáveis. Porquê?

Nas últimas duas décadas desastrosas e, nesta legislatura, completamente desastradas. Há uma estratégia antinatalista que passa por estrangular financeiramente as famílias numerosas. A maior taxa de pobreza no nosso país incide, precisamente, nos casais com três ou mais filhos. E em vez do Estado considerar um filho como uma mais valia parece estar interessado em torná-lo extraordinariamente caro. Apesar dos índices demográficos preocupantes, continua a tomar medidas contra as famílias com filhos.


Contra?

Quando se hostiliza em vez de se apoiar, isso tem um significado.


E os chamados incentivos à natalidade?

É um disparate falar-se em incentivos à natalidade em Portugal. Só seria necessário incentivar se em Portugal as famílias não desejassem ter mais filhos do que aqueles que têm. E não é o que acontece. O último Inquérito à Família e Fecundidade realizado pelo INE dá conta que o número médio desejado de filhos é de 2.1 por casal, e esse valor sobe para 3.1 num estudo recente realizado pela Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN). Na Alemanha e na Austria o número desejado de filhos é de 1.7 e 1.6, abaixo do valor mínimo de reposição da população. Aí faz sentido o Estado pagar para as pessoas terem mais filhos. Aqui bastaria tirar o pé do travão.


Se não faz sentido incentivar, faz sentido o quê?

Deixar de penalizar e passar a apoiar quem os quer ter! Há muita gente que não quer ter filhos e tem esse direito. A maioria das pessoas quer um ou, no máximo, dois. Mas há uma minoria que deseja de facto ter filhos e contribui decisivamente para assegurar a renovação da população e a sustentabilidade do país. Portugal tem um défice de um milhão de crianças e jovens, o que tem consequências graves para o futuro mas também imediatas. Basta ver a falta de emprego: um professor para exercer precisa de alunos... Num país com um défice de um milhão de crianças e jovens, nada mais natural do que haver 40.000 professores sem colocação. Esse número é exactamente igual a um milhão a dividir por 25, o número médio de alunos por turma.


A política fiscal tem sido o grande travão?

A política fiscal e não só. Há muitas medidas antinatalistas. Para quase tudo conta o rendimento da família e não o rendimento per capita. Sempre que isso acontece, há uma intenção de pressionar as famílias numerosas.


Fala de discriminação a pagar impostos.

Nas últimas décadas, em geral, e na última legislatura em particular, parece que as famílias constituídas por pais casados com filhos foram eleitas como um alvo a abater... O cartão de cidadão deixou de ter o estado civil, porque supostamente isso não serve para nada. Se assim é, porque é que em sede de impostos estar ou não casado tem consequências? As pessoas são livres de se organizarem como quiserem e ninguém deve ser penalizado nem beneficiado em função do estado civil.


Um casal que se divorcie pode deduzir ao seu imposto 20% da pensão de alimentos. Depois de apurado o imposto, é subtraído 20% do que gastou com a pensão dos filhos. Se um divorciado pode deduzir à colecta o que gasta com os filhos, porque não podem os casados? Isto é um atentado às famílias formalmente constituídas.


Há casais que se divorciam para poupar nos impostos?

Conheço vários casais que se divorciaram no papel mas continuam a viver juntos e a fazer a sua vida normal. No meu caso pessoal [tem 13 filhos, seis ainda dependentes], deixava de pagar IRS, o valor que desconto mensalmente seria devolvido. Eu e a minha mulher já equacionámos essa hipótese: um divórcio 'fictício'. É altamente rentável!


O abono também foi aumentado para as famílias mono-parentais em 20%.

E o mais absurdo é que foi anunciado no pacote de incentivos à natalidade! Incentivar a mono-parentalidade? É um gigantesco pontapé na gramática. Não está em causa que as famílias possam precisar desse apoio mas, tudo o que tem a ver com política assistencial, deveria respeitar apenas um critério: o rendimento per capita, ou seja, o rendimento da família a dividir pelo número de elementos.


E isso não acontece?

Não. Nos escalões do abono de família entra em linha de conta o rendimento da família a dividir pelo número de filhos mais um elemento. Devia ser mais um ou mais dois, conforme os filhos vivessem com um dos pais ou com ambos. Está-se a eliminar deliberadamente uma das pessoas do agregado familiar, no caso das famílias constituídas por pai e mãe. Este é um dos vários exemplos de penalização das famílias constituídas por pais casados com filhos.


Mas reconhece que famílias com baixos rendimentos precisam de mais apoio?

São coisas distintas: uma é a política assistencial, outra é a política de família. Claro que tem de haver uma transferência de verbas entre a população mais afortunada e a mais desfavorecida, no sentido vertical. Mas até nos apoios sociais há uma componente antinatalista, quando se olha ao rendimento da família e não ao rendimento per capita. Agora fala-se muito em apoiar as mães solteiras. E então onde fica a responsabilidade dos pais solteiros? Enquanto não os obrigarmos a pagar, eles vão continuar a saltar de mãe solteira em mãe solteira... A Nação está a assumir a paternidade de filhos que não são seus. Devia poder-se confiscar parte do ordenado, obrigando-os a, no mínimo, participarem no sustento dos seus filhos.. Hoje já existem meios para isso.


Defende um aumento radical do abono a partir do terceiro filho. Porquê?

Porque o terceiro filho ou o de ordem superior deve ser visto como uma riqueza nacional. São eles que vão assegurar as reformas no futuro! O primeiro e o segundo, descontam para o sustento dos próprios pais.


Já houve um aumento do abono para quem tem dois ou mais filhos.

Mas não chega! O valor da prestação por cada filho duplica com o nascimento do segundo filho e triplica com o terceiro mas só até aos três anos, depois volta tudo ao mesmo! E toda a gente sabe que é depois dessa idade que os filhos dão maior despesa.


É preciso reforçar a rede pública de creches?

Não obrigatoriamente. Nós defendemos uma solução mais moderna, que é aplicada com sucesso na Noruega, e que assegura a liberdade de escolha. O Estado em vez de construir mais creches e de aumentar a despesa pública, que dê esse dinheiro aos pais e eles que escolham. Um deles pode desempregar-se ou trabalhar em part-time, ou então o dinheiro vai para a avó que fica com o neto ou para pagar a escola. Os pais devem ter a opção de escolha. O que aconteceu na Noruega foi que muitos pais e mães resolveram ficar em casa com os filhos - sem precisarem de ficar agarrados aos tachos e panelas, porque hoje há muitas hipóteses de teletrabalho – e eventualmente disponíveis para tomar conta de crianças dos vizinhos. Criou-se uma rede informal que estreita relações de vizinhança, que acabou com os bairros-dormitório e revitalizou o comércio local...


Aqui resultaria?

Porque não? Seria o combate à massificação e ao embezerramento das criancinhas. Portugal insiste em seguir tendências que já foram abandonadas pelos países mais avançados. Em vez de termos política de família, temos política pecuária! As crianças são metidas no estábulo às sete da manhã e ficam até às tantas... entretidas.


Na Noruega incentiva-se que as crianças até aos três anos fiquem em casa.

Nem mais! O cash benefit é atribuído em função do número de horas que a criança está na creche. Quanto menos tempo, mais recebe a família, precisamente para evitar que os bebés fiquem lá o dia inteiro. E quem fica a cuidar de crianças, como trabalho não pago, recebe créditos que contam para a reforma.


As avós deste país aplaudiam uma medida dessas...

As avós e os pais, e mesmo as crianças, que também ficariam muito melhor entregues! Mas o Governo quer pôr as crianças nas creches, retirando-as às famílias, tratando-as como bezerros.


Há o risco do dinheiro não ser usado na educação dos filhos.

Essa é uma desculpa esfarrapada. No caso das famílias carenciadas e desestruturadas, um subsídio deve ser visto como um instrumento fabuloso para se dar formação à família. Ou vens à formação ou não recebes, ou fazes isto, ou não há nada para ninguém. Não se trata de policiamento, mas de acompanhamento. Tem de haver também uma melhor articulação das redes de serviços sociais.


O modelo francês é o que tem dado melhores resultados?

A taxa de natalidade subiu para 2.07 em 2008 e continua a crescer graças às medidas adoptadas. E curiosamente o grupo da população que mais depressa respondeu foram os portugueses emigrados em França, o que mostra que se tomarmos as mesmas medidas, o problema resolve-se.


Teve a experiência do sistema social dos Estados Unidos. Como foi?

Vivi lá quando estudei com a bolsa da Marinha. A minha mulher foi grávida do terceiro filho e veio grávida do quinto. Estávamos no Estado de Massachussets e ela foi chamada ao hospital porque o sistema sinalizou a nossa família por estar abaixo de um qualquer valor mínimo per capita. Devem ter cruzado a informação do meu rendimento com o número de filhos e automaticamente entrámos no programa food stamps [cupões que se trocam por alimentos no supermercado]. Fartámo-nos de dar cupões de queijo aos vizinhos, que nem dávamos vazão a tudo. Até 'queijo à brás' inventámos... .

É um sistema deste género que eu defendo: que se acabe com o vergonhoso sigilo bancário e se cruzem os dados dos rendimentos com a dimensão da família.


A tarifa familiar da água é uma reivindicação antiga?

É uma questão elementar, de justiça! A maioria dos municípios ainda não tem a tarifa familiar, o que penaliza altamente as famílias numerosas. Quem tem mais filhos gasta mais água, logo sobe de escalão e paga mais por metro cúbico consumido. E ainda por cima anexada à factura da água estão as tarifas dos lixos e saneamento... Só pretendemos que sejam praticados os mesmos preços, e não a dobrar.


Muitos municípios já aderiram.

Sim e é de destacar o esforço notável de Vila Real no apoio às famílias numerosas. O país só ganharia se seguisse o seu exemplo.


Pedem igualmente a revisão do imposto municipal de imóveis.

Pela mesma razão. Há mil e um critérios para a avaliação de um imóvel mas esqueceram-se de incluir o número de habitantes! Uma casa não deve ser tributada da mesma maneira se for para duas pessoas ou para dez. Não se distingue se a área é um luxo ou uma necessidade.


O mesmo se passa com a carga fiscal sobre os monovolumes?

Se os emigrantes têm redução do imposto automóvel, não será mais legítimo as famílias numerosas terem? Com a obrigação do uso das cadeiras de segurança, uma família com três filhos pequenos já não cabe num carro de cinco lugares. E Portugal continua a ser dos raros países europeus onde não existe o bilhete de família nos transportes públicos. Há ainda muito por fazer...