1 - No dia de hoje alguns jornalistas telefonaram-me pedindo que comentasse as declarações do Senhor Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, sobre o anúncio que fiz publicar ontem no jornal
público. Eu, evidentemente, recusei-me a tal. Devo muito ao Senhor Patriarca, tenho pelo meu Bispo uma enorme estima, reverência e admiração. Se entende pronunciar-se, em comunhão com o Santo Padre, sobre alguma questão doutrinal ou moral, fazendo uso da autoridade que lhe foi concedida compete-me escutar e meditar as suas palavras, procurando passá-las para a vida. Adiante-se, por mera informação, que se emite juízos meramente prudenciais ou manifesta opiniões, qualquer católico é livre de concordar ou não.
2 – Muita outra gente me contactou por e-mail e telefone felicitando-me pelas intervenções a que assistiram na comunicação social, mas confusas com o que alguns média diziam, invocando fontes anónimas, sobre a alegada posição de sacerdotes e de Bispos, apontando para discrepâncias entre o conteúdo do que eu declarava e a doutrina do Magistério da Igreja. Convém, pois, esclarecer.
3 – a) Importará, em primeiro lugar, adiantar que muita gente, incluindo meios de comunicação social, não entendeu ou tresleu, o que a Participação aos Interessados dizia. Quando invoco o cânone 915 e falo de preservar manifestamente em advogar o desrespeito pelo mandamento não matarás, através dos mais variados meios (alguns dos quais exemplifico), quero com isso dizer, o que aliás expliquei pormenorizadamente a muitos jornalistas, que a permanência obstinada e notória (pública) num estado objectivo de pecado grave obriga o sacerdote a não admitir à sagrada comunhão todo aquele que publicamente indigno a ela se apresenta. Esta obrigação do celebrante que deriva da lei divina não admite dispensa ou impedimento da parte de quem quer que seja.
b) No comunicado que fiz publicar como anúncio não refiro substâncias ou artefactos contraceptivos, enquanto tais (não quis propositadamente, por ora, entrar nessa discussão; embora o cânone também abranja essa questão, como todas outras de matéria grave), mas tão só na medida em que podem ter um efeito letal no recém concebido – será preciso recordar que a pílula (aquelas que também têm efeito abortivo) mata anualmente mais de trinta milhões de seres humanos e o DIU mais de duzentos milhões (os cálculos estão feitos e publicados por farmacêuticos e estatísiticos)? De facto, refiro que o que está em questão é o advogar, contribuir para, ou promover a morte de seres humanos inocentes. Também as técnicas de fecundação extra-copórea, e os exemplos sucessivos, se referem ao colocar deliberadamente em circunstâncias de morte certa uma multidão de seres humanos na sua fase embrionária ou fetal. Ainda há poucos dias os Bispos da Croácia afirmaram que a fecundação in vitro era um crime grave e adiantaram que as 15. 000 (quinze mil) crianças ali nascidas por essa técnica custaram a vida de 285. 000 (duzentas e oitenta e cinco mil).
c) Evidentemente que o sacerdote não tem que bisbilhotar a vida alheia e é chamado a tratar de muitos casos no atendimento pessoal e no confessionário. Mas é óbvio que no referido texto não se está a falar dessas situações. O que está em questão é a responsabilidade objectiva de, por ex., legisladores e demais políticos, responsáveis de laboratórios e de farmácias, de médicos, de fazedores de opinião, de jornalistas, de pastores da Igreja, enfim, de qualquer pessoa que confessando-se católica, não obstante, permanece notoriamente numa recusa da doutrina da Igreja num ponto tão essencial como o respeito pelo Mandamento da Lei de Deus Não Matarás o inocente e o justo. Este mandamento é um absoluto moral que não admite excepções, independentemente das circunstâncias. Nem permite que se coopere na execução de alguém – não consta que Hitler ou Goebbels tenham directamente morto algum judeu; mas toda a gente percebe que são responsáveis da morte injusta e cruel de milhões deles. Estes dois senhores foram baptizados na Igreja católica. E, pelo andar da carruagem, não me admiraria que alguns membros do clero, se vivessem naquele tempo, os admitissem à comunhão eucarística. Com este exemplo não pretendo comparar o holocausto nazi com o holocausto abortista – existem muitas diferenças -, mas tão só chamar a atenção para que a vida humana de um recém concebido tem exactamente a mesma dignidade e o mesmo valor do que um feto, um infante, uma criança, um adolescente, um jovem, adulto ou idoso. São tudo fases da existência do mesmo sujeito humano. Ora se ele é dotado do mesmo valor e da mesma dignidade merece o mesmo respeito e protecção em qualquer etapa da sua existência.
d) Parece-me, pois, indiscutível que quem manifestamentepublicamente indigno e, por isso, deve ser impedido de receber a Sagrada Comunhão Eucarística. (notoriamente) advoga, contribui para, ou promove a morte de seres humanos inocentes é
4 – a) É da competência do Bispo diocesano, se assim o entender, proibir publicamente os seus sacerdotes de admitirem à Sagrada Comunhão esta ou aquela pessoa concreta, cujo nome é tornado público. Nenhum sacerdote pode usurpar essa competência episcopal. Mas como toda gente que leu o anúncio sabe, eu não fiz tal. Limitei-me a dizer de um dever sacerdotal, do qual terei de responder, eu e só eu, perante Deus. Não preciso que nenhum Bispo, Cardeal ou Papa me autorize a recusar a Comunhão a quem é publicamente indigno.
b) Será opinável, discutível, dependente do juízo prudencial (não se trata seguramente de matéria essencial) se é oportuno ou não que um sacerdote publique num jornal o que eu anunciei, sem mencionar, aliás, nomes particulares e falando somente da minha atitude (se referi que o Direito Canónico tem exigências que vinculam a consciência dos sacerdotes foi somente para explicitar a minha posição). Mas um padre como eu que não tem responsabilidades pastorais (celebrando em várias igrejas) nem possibilidade de contactar pessoalmente os interessados e pretende, por caridade, evitar um possível embaraço público, a que meio deverá recorrer de modo a informar os interessados?
5 – Para que quem me lê possa avaliar da coerência dos conteúdos do que afirmo na Participação aos Interessados e a posição oficial do Magistério da Igreja passo a transcrever uma Declaração do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos (é que para mim é evidente que o direito serve a caridade, a moral serve a misericórdia e a excomunhão é uma pedagogia ao serviço da comunhão – neste aspecto não há “ou” “ou”, mas sim “e” “e”) feita em acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé e com a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Se alguém encontrar alguma discrepância agradeço o favor de ma explicarem. Estou aberto e agradeço todas as correcções, caso as hajam. Acrescento que a citação não está completa não só por se referir em concreto a outro assunto, embora os princípios a aplicar sejam exactamente os mesmos, mas também para não a tornar demasiado extensa. (Quem estiver interessado na totalidade do texto encontrá-lo-á em:
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/intrptxt/documents/rc_pc_intrptxt_doc_20000706_declaration_po.html )
Declaração do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos
[Os sublinhados e o negrito são meus]
O Código de Direito Canónico estabelece que: «Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto» (cân. 915). Nos últimos anos, alguns autores … propugnam [que] porque o texto fala de «pecado grave», seriam necessárias todas as condições, mesmo as subjectivas, requeridas para a existência de um pecado mortal, razão pela qual o ministro da Comunhão não poderia emitir ab externo um juízo do género; ademais, para que se fale de perseverar «obstinadamente» naquele pecado, seria necessário verificar-se no fiel uma atitude de desacato, após uma legítima admonição por parte do Pastor.
Face a este pretenso contraste entre a disciplina do Código de 1983 e os ensinamentos constantes da Igreja nessa matéria, este Conselho Pontifício, de acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé e com a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, declara quanto segue:
1. A proibição feita no citado cânon, por sua natureza, deriva da lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja. O texto das Escrituras ao qual a Tradição eclesial sempre remonta é o de São Paulo:
«E, assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação» (1 Cor 11, 27-29).
Este texto diz respeito primeiramente ao próprio fiel e à sua consciência, e isto está formulado pelo Código no sucessivo cânon 916. Porém o ser-se indigno por se achar em estado de pecado põe também um grave problema jurídico na Igreja: precisamente ao termo «indigno» refere-se o cânon do Código dos Cânones das Igrejas Orientais que é paralelo ao cân. 915 latino: «Devem ser impedidos de receber a Divina Eucaristia aqueles que são publicamente indignos» (cân. 712). Com efeito, receber o Corpo de Cristo sendo publicamente indigno constitui um dano objectivo à comunhão eclesial; é um comportamento que atenta contra os direitos da Igreja e de todos os fiéis de viver em coerência com as exigências dessa comunhão. [Importa evitar] o escândalo, concebido qual acção que move os outros ao mal … . Tal escândalo subsiste mesmo se, lamentavelmente, um tal comportamento já não despertar admiração alguma: pelo contrário, é precisamente diante da deformação das consciências, que se torna mais necessária por parte dos Pastores, uma acção tão paciente quanto firme, em tutela da santidade dos sacramentos, em defesa da moralidade cristã e da recta formação dos fiéis.
2. Qualquer interpretação do cân. 915 que se oponha ao conteúdo substancial, declarado ininterruptamente pelo Magistério e pela disciplina da Igreja ao longo dos séculos, é claramente fonte de desvios. Não se pode confundir o respeito pelas palavras da lei (cfr. cân. 17) com o uso impróprio das mesmas palavras como instrumentos para relativizar ou esvaziar a substância dos preceitos.
A fórmula «e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto» é clara e deve ser compreendida de modo a não deformar o seu sentido, tornando a norma inaplicável. As três condições requeridas são:
a) o pecado grave, entendido objectivamente, porque da imputabilidade subjectiva o ministro da Comunhão não poderia julgar;
b) a perseverança obstinada, que significa a existência de uma situação objectiva de pecado que perdura no tempo e à qual a vontade do fiel não põe termo, não sendo necessários outros requisitos (atitude de desacato, admonição prévia, etc.) para que se verifique a situação na sua fundamental gravidade eclesial;
c) o carácter manifesto da situação de pecado grave habitual.
…
3. Naturalmente a prudência pastoral aconselha vivamente a evitar que se chegue a casos de recusa pública da sagrada Comunhão. Os Pastores devem esforçar-se para explicar aos fiéis envolvidos o verdadeiro sentido eclesial da norma, de modo que a possam compreender ou ao menos respeitar. Quando, porém, se apresentarem situações em que tais precauções não tenham obtido efeito ou não tenham sido possíveis, o ministro da distribuição da Comunhão deve recusar-se a dá-la a quem seja publicamente indigno. Fá-lo-á com extrema caridade e procurará explicar no momento oportuno as razões que a tanto o obrigaram. Deve, porém, fazê-lo com firmeza, consciente do valor que estes sinais de fortaleza têm para o bem da Igreja e das almas.
O discernimento dos casos de exclusão da Comunhão eucarística dos fiéis que se encontrem na condição descrita pertence ao Sacerdote responsável pela comunidade. Ele dará instruções precisas ao diácono ou ao eventual ministro extraordinário acerca do modo de se comportar nas situações concretas.
4. Considerando a natureza da já mencionada norma (cfr. n. 1), nenhuma autoridade eclesiástica pode dispensar em caso algum desta obrigação do ministro da sagrada Comunhão, nem emanar directrizes que a contradigam.
5. [O] dever de reafirmar esta impossibilidade de admitir à Eucaristia é condição de verdadeira pastoralidade, de autêntica preocupação pelo bem destes fiéis e de toda a Igreja, porque indica as condições necessárias para a plenitude da conversão à qual todos estão sempre convidados pelo Senhor […]
Do Vaticano, 24 de junho de 2000, Solenidade da Natividade de São João Baptista.
Nuno Serras Pereira
03. 03. 2005