sábado, 20 de março de 2010

Abusos sexuais de menores



1. Ninguém ignorará que o abuso sexual de menores e a pedofilia são, percentualmente, mais frequentes entre outras confissões religiosas, profissões que lidam com crianças e mesmo na família, principalmente quando não é a original, do que no clero católico. Por isso, toda a gente perceberá, se estiver de boa-fé que este clamor da comunicação social à volta de casos acontecidos há décadas não é inocente e tem o mesmo propósito, recorrendo às mesmas tácticas, que os regimes nazis e comunistas, a saber, descredibilizar a Igreja Católica, por ser ela o único baluarte, no mundo contemporâneo, que se opões com todo o vigor e determinação à degradação moral de cada pessoa humana, promovida pelos grandes poderes económicos, políticos, comunicacionais, etc.

2. Dito isto, é, no entanto, imprescindível afirmar sem titubeações que é totalmente inaceitável que qualquer consagrado perverta sacrilegamente a inocência de qualquer criança, adolescente ou jovem. E que é de uma gravidade extrema que quem tem responsabilidades na Igreja, os Prelados, não tomem prontamente as medidas necessárias para que a agressão sexual não se repita.

a) A selecção dos candidatos ao Sacerdócio e à vida Religiosa tem que ser exigente, valendo mais correr o risco de rejeitar Ordenar Sacerdotes ou Diáconos homens dignos do que Ordenar mesmo que seja um só indigno. Isto é, em caso de dúvida não se deve conceder o Sacramento. Esta é a recomendação que se encontra quer na Tradição da Igreja quer no seu Magistério. Mais vale ter poucos Sacerdotes virtuosos do que muitos corrompidos.

b) Apesar de uma selecção rigorosa, como já o disse em escrito anterior, existe sempre a possibilidade de pessoas malignas, agudamente astutas e de grande hipocrisia enganarem os formadores e Prelados. Acresce que um varão de virtude comprovada pode degradar-se, vindo a trair a sua vocação – trata-se do mistério da liberdade humana e da influência do Maligno. Esta é seguramente uma das razões porque a Igreja não canoniza ninguém enquanto está vivo. Só quem persevera até ao fim poderá ver reconhecida e proclamada a sua Santidade.

c) O Prelado na sua acção tem em primeiro lugar que proteger e amparar as vítimas do abuso, procurando na medida do possível reparar o mal causado. Em segundo lugar, terá que socorrer espiritualmente o desgraçado que perpetrou o crime e o pecado. Esse auxílio, para ser verdadeiro, inclui a justiça, que deve actuar, quer canónica quer civilmente. O acolhimento das penas por parte do pecador e criminoso servir-lhe-ão de expiação e de penitência pelo mal cometido.

3. Se alguém cuida que este é um problema ignorado ou desleixado pela Igreja ao longo dos séculos e na sua Tradição está redondamente enganado. O que aconteceu, em alguns sítios do mundo nestes últimos 50 anos foi uma traição ao Evangelho, à Doutrina, à Tradição e à prática constante da Igreja.

Já S. Basílio, no século IV, tratando deste assunto determinava, para o pervertedor, uma longa pena de prisão, acompanhada, entre outras penitências, de jejum a pão e água e muitas orações, juntamente com acompanhamento espiritual. Passado o tempo de cárcere, regressava à vida comunitária, continuando com mortificações e orações próprias; porém só tinha autorização para sair da sua cela acompanhado por dois Irmãos, que o vigiassem continuamente.

S. Pedro Damião (século XI), Bispo, Cardeal e Doutor da Igreja, exorta com veemência, em coerência com a Tradição, e o Papa aprova, a redução ao estado laical de qualquer Sacerdote que cometa não só um abuso sexual de menor mas, inclusive, que tenha qualquer tipo de, para usar, embora incorrecta, a linguagem corrente, comportamento homossexual.

Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas agora tenho que ir ler a Carta que o Papa Bento XVI enviou aos católicos da Irlanda, que já vos enviei mas que ainda não li.


Nuno Serras Pereira

20. 02. 2010

Carta Pastoral de Bento XVI aos católicos na Irlanda sobre os abusos sexuais de menores

1. Amados Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos escrevo como Pastor da Igreja universal. Como vós, fiquei profundamente perturbado com as notícias dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis da parte de membros da Igreja na Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não posso deixar de partilhar o pavor e a sensação de traição que muitos de vós experimentastes ao tomar conhecimento destes actos pecaminosos e criminais e do modo como as autoridades da Igreja na Irlanda os enfrentaram.

Como sabeis, convidei recentemente os bispos irlandeses para um encontro aqui em Roma a fim de referir sobre o modo como trataram estas questões no passado e indicar os passos que empreenderam para responder a esta grave situação. Juntamente com alguns altos Prelados da Cúria Romana ouvi quanto tinham para dizer, quer individualmente quer em grupo, enquanto propunham uma análise dos erros cometidos e das lições aprendidas, e uma descrição dos programas e dos protocolos hoje existente. As nossas reflexões foram francas e construtivas. Alimento a confiança de que, como resultado, os bispos se encontrem agora numa posição mais forte para levar por diante a tarefa de reparar as injustiças do passado e para enfrentar as temáticas mais amplas relacionadas com o abuso dos menores segundo modalidades conformes com as exigências da justiça e com os ensinamentos do Evangelho.

2. Por meu lado, considerando a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas no vosso país,, decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e para vos propor um caminho de cura, de renovação e de reparação.

Na realidade, como muitos no vosso país revelaram, o problema do abuso dos menores não é específico nem da Irlanda nem da Igreja. Contudo a tarefa que agora tendes à vossa frente é enfrentar o problema dos abusos que se verificaram no âmbito da comunidade católica irlandesa e de o fazer com coragem e determinação. Ninguém pense que esta dolorosa situação se resolverá em pouco tempo. Foram dados passos em frente positivos, mas ainda resta muito para fazer. É preciso perseverança e oração, com grande confiança na força restabelecedora da graça de Deus.

Ao mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para garantir a protecção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro.

Enquanto enfretais os desafios deste momento, peço-vos que vos recordeis da «rocha de que fostes talhados» (Is 51, 1). Reflecti sobre as contribuições generosas, com frequência heróicas, oferecidas à Igreja e à humanidade como tal pelas passadas gerações de homens e mulheres irlandeses, e deixai que isto gere impulso para um honesto auto-exame e um convicto programa de renovação eclesial e individual. A minha oração é por que, assistida pela intercessão dos seus muitos santos e purificada pela penitência, a Igreja na Irlanda supere a presente crise e volte a ser uma testemunha convincente da verdade e da bondade de Deus omnipotente, manifestadas no seu Filho Jesus Cristo.

3. Historicamente os católicos da Irlanda demonstraram-se uma grande força de bem quer na pátria quer fora. Monges célticos, como São Colombano, difundiram o Evangelho na Europa Ocidental lançando as bases da cultura monástica medieval. Os ideais de santidade, de caridade e de sabedoria transcendente que derivam da fé cristã, encontraram expressão na construção de igrejas e mosteiros e na instituição de escolas, bibliotecas e hospitais que consolidaram a identidade espiritual da Europa. Aqueles missionários irlandeses tiraram a sua força e inspiração da fé sólida, da guia forte e dos comportamentos morais rectos da Igreja na sua terra natal.

A partir do século XVI, os católicos na Irlanda sofreram um longo período de perseguição, durante o qual lutaram para manter viva a chama da fé em circunstâncias perigosas e difíceis. Santo Oliver Plunkett, o Arcebispo mártir de Armagh, é o exemplo mais famoso de uma multidão de corajosos filhos e filhas da Irlanda dispostos a dar a própria vida pela fidelidade ao Evangelho. Depois da Emancipação Católica, a Igreja teve a liberdade de crescer de novo. Famílias e inúmeras pessoas que tinham preservado a fé durante os tempos das provações tornaram-se a centelha de um grande renascimento do catolicismo irlandês no século XIX. A Igreja forneceu escolarização, sobretudo aos pobres, e isto deu uma grande contribuição à sociedade irlandesa. Um dos frutos das novas escolas católicas foi um aumento de vocações: gerações de sacerdotes, irmãs e irmãos missionários deixaram a pátria para servir em todos os continentes, sobretudo no mundo de língua inglesa. Foram admiráveis não só pela vastidão do seu número, mas também pela robustez da fé e pela solidez do seu empenho pastoral. Muitas dioceses, sobretudo em África, América e Austrália, beneficiaram da presença de clero e religiosos irlandeses que anunciaram o Evangelho e fundaram paróquias, escolas e universidades, clínicas e hospitais, que serviram tanto os católicos, como a sociedade em geral, com atenção especial às necessidades dos pobres.

Em quase todas as famílias da Irlanda houve alguém – um filho ou uma filha, uma tia ou um tio – que deu a própria vida à Igreja. Justamente as famílias irlandesas têm em grande estima e afecto os seus queridos, que ofereceram a própria vida a Cristo, partilhando o dom da fé com outros e actualizando-a num serviço amoroso a Deus e ao próximo.

4. Contudo, nos últimos decénios a Igreja no vosso país teve que se confrontar com novos e graves desafios à fé que surgiram da rápida transformação e secularização da sociedade irlandesa. Verificou-se uma mudança social muito rápida, que muitas vezes atingiu com efeitos hostis a tradicional adesão do povo ao ensinamento e aos valores católicos. Com frequência as práticas sacramentais e devocionais que sustentam a fé e a tornam capaz de crescer, como por exemplo a confissão frequente, a oração quotidiana e os ritos anuais, não foram atendidas. Determinante foi também neste período a tendência, até da parte de sacerdotes e religiosos, para adoptar modos de pensamento e de juízo das realidades seculares sem referência suficiente ao Evangelho. O programa de renovação proposto pelo Concílio Vaticano II por vezes foi mal compreendido e na realidade, à luz das profundas mudanças sociais que se estavam a verificar, não era fácil avaliar o modo melhor de o realizar. Em particular, houve uma tendência, ditada por recta intenção mas errada, a evitar abordagens penais em relação a situações canónicas irregulares. É neste contexto geral que devemos procurar compreender o desconcertante problema do abuso sexual dos jovens, que contribuiu em grande medida para o enfraquecimento da fé e para a perda do respeito pela Igreja e pelos seus ensinamentos.

Só examinando com atenção os numerosos elementos que deram origem à crise actual é possível empreender uma diagnose clara das suas causas e encontrar remédios eficazes. Certamente, entre os factores que para ela contribuíram podemos enumerar: procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados; uma tendência na sociedade a favorecer o clero e outras figuras com autoridade e uma preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que levaram como resultado à malograda aplicação das penas canónicas em vigor e à falta da tutela da dignidade de cada pessoa. É preciso agir com urgência para enfrentar estes factores, que tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de perseguição não tinham chegado.

5. Em diversas ocasiões desde a minha eleição para a Sé de Pedro, encontrei vítimas de abusos sexuais, assim como estou disponível a fazê-lo no futuro. Detive-me com elas, ouvi as suas vicissitudes, tomei nota do seu sofrimento, rezei com e por elas. Precedentemente no meu pontificado, na preocupação por enfrentar este tema, pedi aos Bispos da Irlanda, por ocasião da visita ad limina de 2006, que «estabelecessem a verdade de quanto aconteceu no passado, tomassem todas as medidas adequadas para evitar que se repita no futuro, garantissem que os princípios de justiça sejam plenamente respeitados e, sobretudo, curassem as vítimas e quantos são atingidos por estes crimes abnormes» (Discurso aos Bispos da Irlanda, 28 de Outubro de 2006).

Com esta Carta, pretendo exortar todos vós, como povo de Deus na Irlanda, a reflectir sobre as feridas infligidas ao corpo de Cristo, sobre os remédios, por vezes dolorosos, necessários para as atar e curar, e sobre a necessidade de unidade, de caridade e de ajuda recíproca no longo processo de restabelecimento e de renovação eclesial. Dirijo-me agora a vós com palavras que me vêm do coração, e desejo falar a cada um de vós individualmente e a todos como irmãos e irmãs no Senhor.

6. Às vítimas de abuso e às suas famílias

Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de evitar os vossos sofrimentos. É comprensível que vos seja difícil perdoar ou reconciliar-vos com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos sentimos. Ao mesmo tempo peço-vos que não percais a esperança. É na comunhão da Igreja que encontramos a pessoa de Jesus Cristo, ele mesmo vítima de injustiça e de pecado. Como vós, ele ainda tem as feridas do seu injusto padecer. Ele compreende a profundeza dos vossos padecimentos e o persistir do seu efeito nas vossas vidas e nos relacionamentos com os outros, incluídas as vossas relações com a Igreja. Sei que alguns de vós têm dificuldade até de entrar numa igreja depois do que aconteceu. Contudo, as mesmas feridas de Cristo, transformadas pelos seus sofrimentos redentores, são os instrumentos graças aos quais o poder do mal é infrangido e nós renascemos para a vida e para a esperança. Creio firmemente no poder restabelecedor do seu amor sacrifical – também nas situações mais obscuras e sem esperança – que traz a libertação e a promessa de um novo início. Dirigindo-me a vós como pastor, preocupado pelo bem de todos os filhos de Deus, peço-vos com humildade que reflictais sobre quanto vos disse. Rezo a fim de que, aproximando-vos de Cristo e participando na vida da sua Igreja – uma Igreja purificada pela penitência e renovada na caridade pastoral – possais redescobrir o amor infinito de Cristo por todos vós. Tenho confiança em que deste modo sereis capazes de encontrar reconciliação, profunda cura interior e paz.

7. Aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens
Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos. Quantos de vós sois sacerdotes violastes a santidade do sacramento da Ordem Sagrada, no qual Cristo se torna presente em nós e nas nossas acções. Juntamente com o enorme dano causado às vítimas, foi perpetrado um grande dano à Igreja e à percepção pública do sacerdócio e da vida religiosa.

Exorto-vos a examinar a vossa consciência, a assumir a vossa responsabilidade dos pecados que cometestes e a expressar com humildade o vosso pesar. O arrependimento sincero abre a porta ao perdão de Deus e à graça do verdadeiro emendamento. Oferecendo orações e penitências por quantos ofendestes, deveis procurar reparar pessoalmente as vossas acções. O sacrifício redentor de Cristo tem o poder de perdoar até o pecado mais grave e de obter o bem até do mais terrível dos males. Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das nossas acções sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa, submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus.

8. Aos pais

Ficastes profundamente transtornados ao tomar conhecimento das coisas terríveis que tiveram lugar naquele que deveria ter sido o ambiente mais seguro para todos. No mundo de hoje não é fácil construir um lar doméstico e educar os filhos. Eles merecem crescer num ambiente seguro, amados e queridos, com um forte sentido da sua identidade e do seu valor. Têm direito a ser educados nos valores morais autênticos, radicados na dignidade da pessoa humana, a serem inspirados pela verdade da nossa fé católica e a aprender modos de comportamento e de acção que os levem a uma sadia estima de si e à felicidade duradoura. Esta tarefa nobre e exigente está confiada em primeiro lugar a vós, seus pais. Exorto-vos a fazer a vossa parte para garantir a melhor cura possível dos jovens, quer em casa quer na sociedade em geral, enquanto que a Igreja, por seu lado, continua a pôr em prática as medidas adoptadas nos últimos anos para tutelar os jovens nos ambientes paroquiais e educativos. Enquanto dais continuidade às vossas importantes responsabilidades, certifico-vos de que estou próximo de vós e que vos dou o apoio da minha oração.

9. Aos meninos e aos jovens da Irlanda

Desejo oferecer-vos uma particular palavra de encorajamento. A vossa experiência de Igreja é muito diversa da que fizeram os vossos pais e avós. O mundo mudou muito desde quando eles tinham a vossa idade. Não obstante, todos, em cada geração, estão chamados a percorrer o mesmo caminho da vida, sejam quais forem as circunstâncias. Todos estamos escandalizados com os pecados e as falências de alguns membros da Igreja, sobretudo de quantos foram escolhidos de modo especial para guiar e servir os jovens. Mas é na Igreja que encontrareis Jesus Cristo que é o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13, 8). Ele ama-vos e ofereceu-se a si próprio na Cruz por vós. Procurai uma relação pessoal com ele na comunhão da sua Igreja, porque ele nunca trairá a vossa confiança! Só ele pode satisfazer as vossas expectativas mais profundas e conferir às vossas vidas o seu significado mais pleno orientando-as para o serviço ao próximo. Mantende o olhar fixo em Jesus e na sua bondade e protegei no vosso coração a chama da fé. Juntamente com os vossos irmãos católicos na Irlanda olho para vós a fim de que sejais discípulos fiéis do nosso Deus e contribuais com o vosso entusiasmo e com o vosso idealismo tão necessários para a reconstrução e para o renovamento da nossa amada Igreja.

10. Aos sacerdotes e aos religiosos da Irlanda

Todos nós estamos a sofrer como consequência dos pecados dos nossos irmãos que traíram uma ordem sagrada ou não enfrentaram de modo justo e responsável as acusações de abuso. Perante o ultraje e a indignação que isto causou, não só entre os leigos mas também entre vós e as vossas comunidades religiosas, muitos de vós sentis-vos pessoalmente desanimados e também abandonados. Além disso, estou consciente de que aos olhos de alguns sois culpados por associação, e considerados como que de certo modo responsáveis pelos delitos de outros. Neste tempo de sofrimento, desejo reconhecer-vos a dedicação da vossa vida de sacerdotes e de religiosos e dos vossos apostolados, e convido-vos a reafirmar a vossa fé em Cristo, o vosso amor à sua Igreja e a vossa confiança na promessa de redenção, de perdão e de renovação interior do Evangelho. Deste modo, demonstrareis a todos que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rm 5, 20).

Sei que muitos de vós estais desiludidos, transtornados e encolerizados pelo modo como estas questões foram tratadas por alguns dos vossos superiores. Não obstante, é essencial que colaboreis de perto com quantos têm a autoridade e que vos comprometais para fazer com que as medidas adoptadas para responder à crise sejam verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes. Sobretudo, exorto-vos a tornar-vos cada vez mais claramente homens e mulheres de oração, seguindo com coragem o caminho da conversão, da purificação e da reconciliação. Deste modo, a Igreja na Irlanda haurirá nova vida e vitalidade do vosso testemunho ao poder redentor do Senhor tornado visível na vossa vida.

11. Aos meus irmãos bispos

Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canónico codificado há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações. Compreendo como era difícil lançar mão da extensão e da complexidade do problema, obter informações fiáveis e tomar decisões justas à luz de conselhos divergentes de peritos. Contudo, deve-se admitir que foram cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que fizestes para remediar os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além de pôr plenamente em prática as normas do direito canónico ao enfrentar os casos de abuso de jovens, continuai a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua competência. Claramente, os superiores religiosos devem fazer o mesmo. Também eles participaram em recentes encontros aqui em Roma destinados a estabelecer uma abordagem clara e coerente destas questões. É obrigatório que as normas da Igreja na Irlanda para a tutela dos jovens sejam constantemente revistas e actualizadas e que sejam aplicadas de modo total e imparcial em conformidade com o direito canónico.

Só uma acção decidida levada em frente com total honestidade e transparência poderá restabelecer o respeito e a benquerença dos Irlandeses em relação à Igreja à qual consagrámos a nossa vida. Isto deve brotar, antes de tudo, do exame de vós próprios, da purificação interior e da renovação espiritual. O povo da Irlanda espera justamente que sejais homens de Deus, que sejais santos, que vivais com simplicidade, que procureis todos os dias a conversão pessoal. Para ele, segundo a expressão de Santo Agostinho, sois bispos; contudo estais chamados a ser com eles seguidores de Cristo (cf. Discurso 340, 1). Exorto-vos portanto a renovar o vosso sentido de responsabilidade diante de Deus, a crescer em solidariedade com o vosso povo e a aprofundar a vossa solicitude pastoral por todos os membros da vossa grei. Em particular, sede sensíveis à vida espiritual e moral de cada um dos vossos sacerdotes. Sede um exemplo com as vossas próprias vidas, estai-lhes próximos, ouvi as suas preocupações, oferecei-lhes encorajamento neste tempo de dificuldades e alimentai a chama do seu amor a Cristo e o seu compromisso no serviço dos seus irmãos e irmãs.

Também os leigos devem ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja. Fazei com que sejam formados de modo que possam dizer a razão, de maneira articulada e convincente, do Evangelho na sociedade moderna (cf. 1 Pd 3, 15), e cooperem mais plenamente na vida e na missão da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis da verdade redentora de Cristo.

12. A todos os fiéis da Irlanda

A experiência que um jovem faz da Igreja deveria dar sempre fruto num encontro pessoal e vivificante com Jesus Cristo numa comunidade que ama e que oferece alimento. Neste ambiente, os jovens devem ser encorajados a crescer até à sua plena estatura humana e espiritual, a aspirar por ideais nobres de santidade, de caridade e de verdade e a inspirar-se nas riquezas de uma grande tradição religiosa e cultural. Na nossa sociedade cada vez mais secularizada, na qual também nós critãos muitas vezes temos dificuldade em falar da dimensão transcendente da nossa existência, precisamos de encontrar novos caminhos para transmitir aos jovens a beleza e a riqueza da amizade com Jesus Cristo na comunhão da sua Igreja. Ao enfrentar a presente crise, as medidas para se ocupar de modo justo de cada um dos crimes são essenciais, mas sozinhas não são suficientes: há necessidade de uma nova visão para inspirar a geração actual e as futuras a fazer tesouro do dom da nossa fé comum. Caminhando pela via indicada pelo Evangelho, observando os mandamentos e conformando a nossa vida de maneira cada vez mais próxima com a pessoa de Jesus Cristo, fareis a experiência da renovação profunda da qual hoje há uma urgente necessidade. Convido-vos a todos a perseverar neste caminho.

13. Amados irmãos e irmãs em Cristo, é com profunda preocupação por todos vós neste tempo de sofrimento, no qual a fragilidade da condição humana foi tão claramente revelada, que desejei oferecer-vos estas palavras de encorajamento e de apoio. Espero que as acolhais como um sinal da minha proximidade espiritual e da minha confiança na vossa capacidade de responder aos desafios do momento actual tirando renovada inspiração e força das nobres tradições da Irlanda de fidelidade ao Evangelho, de perseverança na fé e de firmeza na consecução da santidade. Juntamente com todos vós, rezo com insistência para que, com a graça de Deus, as feridas que atingiram muitas pessoas e famílias possam ser curadas e que a Igreja na Irlanda possa conhecer uma época de renascimento e de renovação espiritual.

14. Desejo propor-vos algumas iniciativas concretas para enfrentar a situação. No final do meu encontro com os Bispos da Irlanda, pedi que a Quaresma deste ano fosse considerada como tempo de oração para uma efusão da misericórdia de Deus e dos dons de santidade e de força do Espírito Santo sobre a Igreja no vosso país. Agora convido todos vós a dedicar as vossas penitências da sexta-feira, durante todo o ano, de agora até à Páscoa de 2011, por esta finalidade. Peço-vos que ofereçais o vosso jejum, a vossa oração, a vossa leitura da Sagrada Escritura e as vossas obras de misericórdia para obter a graça da cura e da renovação para a Igreja na Irlanda. Encorajo-vos a redescobrir o sacramento da Reconciliação e a valer-vos com mais frequência da força transformadora da sua graça.

Deve ser dedicada também particular atenção à adoração eucarística, e em cada diocese deverão haver igrejas ou capelas reservadas especificamente para esta finalidade. Peço que as paróquias, os seminários, as casas religiosas e os mosteiros organizem tempos para a adoração eucarística, de modo que todos tenham a possibilidade de participar deles. Com oração fervorosa diante da presença real do Senhor, podeis fazer a reparação pelos pecados de abuso que causaram tantos danos, e ao mesmo tempo implorar a graça de uma renovada força e de um sentido da missão mais profundo por parte de todos os bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis.

Tenho esperança em que este programa levará a um renascimento da Igreja na Irlanda na plenitude da própria verdade de Deus, porque é a verdade que nos torna livres (cf. Jo 8, 32).

Além disso, depois de me ter consultado e rezado sobre a questão, tenciono anunciar uma Visita Apostólica a algumas dioceses da Irlanda, assim como a seminários e congregações religiosas. A Visita propõe-se ajudar a Igreja local no seu caminho de renovação e será estabelecida em cooperação com as repartições competentes da Cúria Romana e com a Conferência Episcopal Irlandesa. Os pormenores serão anunciados no devido momento.

Além disso proponho que se realize uma Missão a nível nacional para todos os bispos, sacerdotes e religiosos. Alimento a esperança de que, haurindo da competência de peritos pregadores e organizadores de retiros quer da Irlanda como de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares, os ritos litúrgicos da ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios, alcanceis um apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir as raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água viva que ele vos oferece através da sua Igreja.

Neste Ano dedicado aos Sacerdotes, recomendo-vos de modo muito particular a figura de São João Maria Vianney, que teve uma compreensão tão rica do mistério do sacerdócio. «O sacerdote, escreveu, possui a chave dos tesouros do céu: é ele quem abre a porta, é ele o dispensador do bom Deus, o administrador dos seus bens». O cura d’Ars compreendeu bem como é grandemente abençoada uma comunidade quando é servida por um sacerdote bom e santo. «Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o tesouro maior que o bom Deus pode dar a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina». Por intercessão de São João Maria Vianney possa o sacerdócio na Irlanda retomar vida e a inteira Igreja na Irlanda crescer na estima do grande dom do ministério sacerdotal.

Aproveito esta ocasião para agradecer desde já a quantos se comprometerem no empenho de organizar a Visita Apostólica e a Missão, assim como os tantos homens e mulheres que em toda a Irlanda já se comprometeram pela tutela dos jovens nos ambientes eclesiásticos. Desde quando a gravidade e a extensão do problema dos abusos sexuais dos jovens em instituições católicas começou a ser plenamente compreendido, a Igreja desempenhou uma grande quantidade de trabalho em muitas partes do mundo, a fim de o enfrentar e remediar. Enquanto não se deve poupar esforço algum para melhorar e actualizar procedimentos já existentes, encoraja-me o facto de que as práticas de tutela em vigor, adoptadas pelas Igrejas locais, são consideradas, nalgumas partes do mundo, um modelo que deve ser seguido por outras instituições.

Desejo concluir esta Carta com uma especial Oração pela Igreja na Irlanda, que vos envio com o cuidado que um pai tem pelos seus filhos e com o afecto de um cristão como vós, escandalizado e ferido por quanto aconteceu na nossa amada Igreja. Ao utilizardes esta oração nas vossas famílias, paróquias e comunidades, que a Bem-Aventurada Virgem Maria vos proteja e vos guie pelo caminho que conduz a uma união mais estreita com o seu Filho, crucificado e ressuscitado. Com grande afecto e firme confiança nas promessas de Deus, concedo de coração a todos vós a minha Bênção Apostólica em penhor de força e paz no Senhor.

Vaticano, 19 de Março de 2010, Solenidade de São José
Benedictus PP. XVI

ORAÇÃO PELA IGREJA NA IRLANDA

Deus dos nossos pais,
Renova-nos na fé que é para nós vida e salvação na esperança que promete perdão e renovação interior, na caridade que purifica e abre os nossos corações para te amar, e em ti, amar todos os nossos irmãos e irmãs.
Senhor Jesus Cristo possa a Igreja na Irlanda renovar o seu milenário compromisso na formação dos nossos jovens no caminho da verdade, da bondade, da santidade e do serviço generoso à sociedade.

Espírito Santo, consolador, advogado e guia, inspira uma nova primavera de santidade e de zelo apostólico para a Igreja na Irlanda.
Possa a nossa tristeza e as nossas lágrimas o nosso esforço sincero por corrigir os erros do passado, e o nosso firme propósito de correcção, dar abundantes frutos de graça para o aprofundamento da fé nas nossas famílias, paróquias, escolas e associações, e para o progresso espiritual da sociedade irlandesa, e para o crescimento da caridade, da justiça, da alegria e da paz, na inteira família humana.

A ti, Trindade, com plena confiança na amorosa protecção de Maria, Rainha da Irlanda, nossa Mãe, e de São Patrício, de Santa Brígida e de todos os santos, recomendamos a nós próprios, os nossos jovens, e as necessidades da Igreja na Irlanda.

Amém.

Pastoral Letter of the Holy Father to the catholics of Ireland


Pope Benecdit XVI

1. Dear Brothers and Sisters of the Church in Ireland, it is with great concern that I write to you as Pastor of the universal Church. Like yourselves, I have been deeply disturbed by the information which has come to light regarding the abuse of children and vulnerable young people by members of the Church in Ireland, particularly by priests and religious. I can only share in the dismay and the sense of betrayal that so many of you have experienced on learning of these sinful and criminal acts and the way Church authorities in Ireland dealt with them.

As you know, I recently invited the Irish bishops to a meeting here in Rome to give an account of their handling of these matters in the past and to outline the steps they have taken to respond to this grave situation. Together with senior officials of the Roman Curia, I listened to what they had to say, both individually and as a group, as they offered an analysis of mistakes made and lessons learned, and a description of the programmes and protocols now in place. Our discussions were frank and constructive. I am confident that, as a result, the bishops will now be in a stronger position to carry forward the work of repairing past injustices and confronting the broader issues associated with the abuse of minors in a way consonant with the demands of justice and the teachings of the Gospel.

2. For my part, considering the gravity of these offences, and the often inadequate response to them on the part of the ecclesiastical authorities in your country, I have decided to write this Pastoral Letter to express my closeness to you and to propose a path of healing, renewal and reparation.

It is true, as many in your country have pointed out, that the problem of child abuse is peculiar neither to Ireland nor to the Church. Nevertheless, the task you now face is to address the problem of abuse that has occurred within the Irish Catholic community, and to do so with courage and determination. No one imagines that this painful situation will be resolved swiftly. Real progress has been made, yet much more remains to be done. Perseverance and prayer are needed, with great trust in the healing power of God’s grace.

At the same time, I must also express my conviction that, in order to recover from this grievous wound, the Church in Ireland must first acknowledge before the Lord and before others the serious sins committed against defenceless children. Such an acknowledgement, accompanied by sincere sorrow for the damage caused to these victims and their families, must lead to a concerted effort to ensure the protection of children from similar crimes in the future.

As you take up the challenges of this hour, I ask you to remember "the rock from which you were hewn" (Is 51:1). Reflect upon the generous, often heroic, contributions made by past generations of Irish men and women to the Church and to humanity as a whole, and let this provide the impetus for honest self-examination and a committed programme of ecclesial and individual renewal. It is my prayer that, assisted by the intercession of her many saints and purified through penance, the Church in Ireland will overcome the present crisis and become once more a convincing witness to the truth and the goodness of Almighty God, made manifest in his Son Jesus Christ.

3. Historically, the Catholics of Ireland have proved an enormous force for good at home and abroad. Celtic monks like Saint Columbanus spread the Gospel in Western Europe and laid the foundations of medieval monastic culture. The ideals of holiness, charity and transcendent wisdom born of the Christian faith found expression in the building of churches and monasteries and the establishment of schools, libraries and hospitals, all of which helped to consolidate the spiritual identity of Europe. Those Irish missionaries drew their strength and inspiration from the firm faith, strong leadership and upright morals of the Church in their native land.

From the sixteenth century on, Catholics in Ireland endured a long period of persecution, during which they struggled to keep the flame of faith alive in dangerous and difficult circumstances. Saint Oliver Plunkett, the martyred Archbishop of Armagh, is the most famous example of a host of courageous sons and daughters of Ireland who were willing to lay down their lives out of fidelity to the Gospel. After Catholic Emancipation, the Church was free to grow once more. Families and countless individuals who had preserved the faith in times of trial became the catalyst for the great resurgence of Irish Catholicism in the nineteenth century. The Church provided education, especially for the poor, and this was to make a major contribution to Irish society. Among the fruits of the new Catholic schools was a rise in vocations: generations of missionary priests, sisters and brothers left their homeland to serve in every continent, especially in the English-speaking world. They were remarkable not only for their great numbers, but for the strength of their faith and the steadfastness of their pastoral commitment. Many dioceses, especially in Africa, America and Australia, benefited from the presence of Irish clergy and religious who preached the Gospel and established parishes, schools and universities, clinics and hospitals that served both Catholics and the community at large, with particular attention to the needs of the poor.

In almost every family in Ireland, there has been someone – a son or a daughter, an aunt or an uncle – who has given his or her life to the Church. Irish families rightly esteem and cherish their loved ones who have dedicated their lives to Christ, sharing the gift of faith with others, and putting that faith into action in loving service of God and neighbour.

4. In recent decades, however, the Church in your country has had to confront new and serious challenges to the faith arising from the rapid transformation and secularization of Irish society. Fast-paced social change has occurred, often adversely affecting people’s traditional adherence to Catholic teaching and values. All too often, the sacramental and devotional practices that sustain faith and enable it to grow, such as frequent confession, daily prayer and annual retreats, were neglected. Significant too was the tendency during this period, also on the part of priests and religious, to adopt ways of thinking and assessing secular realities without sufficient reference to the Gospel. The programme of renewal proposed by the Second Vatican Council was sometimes misinterpreted and indeed, in the light of the profound social changes that were taking place, it was far from easy to know how best to implement it. In particular, there was a well-intentioned but misguided tendency to avoid penal approaches to canonically irregular situations. It is in this overall context that we must try to understand the disturbing problem of child sexual abuse, which has contributed in no small measure to the weakening of faith and the loss of respect for the Church and her teachings.

Only by examining carefully the many elements that gave rise to the present crisis can a clear-sighted diagnosis of its causes be undertaken and effective remedies be found. Certainly, among the contributing factors we can include: inadequate procedures for determining the suitability of candidates for the priesthood and the religious life; insufficient human, moral, intellectual and spiritual formation in seminaries and novitiates; a tendency in society to favour the clergy and other authority figures; and a misplaced concern for the reputation of the Church and the avoidance of scandal, resulting in failure to apply existing canonical penalties and to safeguard the dignity of every person. Urgent action is needed to address these factors, which have had such tragic consequences in the lives of victims and their families, and have obscured the light of the Gospel to a degree that not even centuries of persecution succeeded in doing.

5. On several occasions since my election to the See of Peter, I have met with victims of sexual abuse, as indeed I am ready to do in the future. I have sat with them, I have listened to their stories, I have acknowledged their suffering, and I have prayed with them and for them. Earlier in my pontificate, in my concern to address this matter, I asked the bishops of Ireland, "to establish the truth of what happened in the past, to take whatever steps are necessary to prevent it from occurring again, to ensure that the principles of justice are fully respected, and above all, to bring healing to the victims and to all those affected by these egregious crimes" (Address to the Bishops of Ireland, 28 October 2006).

With this Letter, I wish to exhort all of you, as God’s people in Ireland, to reflect on the wounds inflicted on Christ’s body, the sometimes painful remedies needed to bind and heal them, and the need for unity, charity and mutual support in the long-term process of restoration and ecclesial renewal. I now turn to you with words that come from my heart, and I wish to speak to each of you individually and to all of you as brothers and sisters in the Lord.

6. To the victims of abuse and their families

You have suffered grievously and I am truly sorry. I know that nothing can undo the wrong you have endured. Your trust has been betrayed and your dignity has been violated. Many of you found that, when you were courageous enough to speak of what happened to you, no one would listen. Those of you who were abused in residential institutions must have felt that there was no escape from your sufferings. It is understandable that you find it hard to forgive or be reconciled with the Church. In her name, I openly express the shame and remorse that we all feel. At the same time, I ask you not to lose hope. It is in the communion of the Church that we encounter the person of Jesus Christ, who was himself a victim of injustice and sin. Like you, he still bears the wounds of his own unjust suffering. He understands the depths of your pain and its enduring effect upon your lives and your relationships, including your relationship with the Church. I know some of you find it difficult even to enter the doors of a church after all that has occurred. Yet Christ’s own wounds, transformed by his redemptive sufferings, are the very means by which the power of evil is broken and we are reborn to life and hope. I believe deeply in the healing power of his self-sacrificing love – even in the darkest and most hopeless situations – to bring liberation and the promise of a new beginning.

Speaking to you as a pastor concerned for the good of all God’s children, I humbly ask you to consider what I have said. I pray that, by drawing nearer to Christ and by participating in the life of his Church – a Church purified by penance and renewed in pastoral charity – you will come to rediscover Christ’s infinite love for each one of you. I am confident that in this way you will be able to find reconciliation, deep inner healing and peace.

7. To priests and religious who have abused children

You betrayed the trust that was placed in you by innocent young people and their parents, and you must answer for it before Almighty God and before properly constituted tribunals. You have forfeited the esteem of the people of Ireland and brought shame and dishonour upon your confreres. Those of you who are priests violated the sanctity of the sacrament of Holy Orders in which Christ makes himself present in us and in our actions. Together with the immense harm done to victims, great damage has been done to the Church and to the public perception of the priesthood and religious life.

I urge you to examine your conscience, take responsibility for the sins you have committed, and humbly express your sorrow. Sincere repentance opens the door to God’s forgiveness and the grace of true amendment. By offering prayers and penances for those you have wronged, you should seek to atone personally for your actions. Christ’s redeeming sacrifice has the power to forgive even the gravest of sins, and to bring forth good from even the most terrible evil. At the same time, God’s justice summons us to give an account of our actions and to conceal nothing. Openly acknowledge your guilt, submit yourselves to the demands of justice, but do not despair of God’s mercy.

8. To parents

You have been deeply shocked to learn of the terrible things that took place in what ought to be the safest and most secure environment of all. In today’s world it is not easy to build a home and to bring up children. They deserve to grow up in security, loved and cherished, with a strong sense of their identity and worth. They have a right to be educated in authentic moral values rooted in the dignity of the human person, to be inspired by the truth of our Catholic faith and to learn ways of behaving and acting that lead to healthy self-esteem and lasting happiness. This noble but demanding task is entrusted in the first place to you, their parents. I urge you to play your part in ensuring the best possible care of children, both at home and in society as a whole, while the Church, for her part, continues to implement the measures adopted in recent years to protect young people in parish and school environments. As you carry out your vital responsibilities, be assured that I remain close to you and I offer you the support of my prayers.

9. To the children and young people of Ireland

I wish to offer you a particular word of encouragement. Your experience of the Church is very different from that of your parents and grandparents. The world has changed greatly since they were your age. Yet all people, in every generation, are called to travel the same path through life, whatever their circumstances may be. We are all scandalized by the sins and failures of some of the Church's members, particularly those who were chosen especially to guide and serve young people. But it is in the Church that you will find Jesus Christ, who is the same yesterday, today and for ever (cf. Heb 13:8). He loves you and he has offered himself on the cross for you. Seek a personal relationship with him within the communion of his Church, for he will never betray your trust! He alone can satisfy your deepest longings and give your lives their fullest meaning by directing them to the service of others. Keep your eyes fixed on Jesus and his goodness, and shelter the flame of faith in your heart. Together with your fellow Catholics in Ireland, I look to you to be faithful disciples of our Lord and to bring your much-needed enthusiasm and idealism to the rebuilding and renewal of our beloved Church.

10. To the priests and religious of Ireland

All of us are suffering as a result of the sins of our confreres who betrayed a sacred trust or failed to deal justly and responsibly with allegations of abuse. In view of the outrage and indignation which this has provoked, not only among the lay faithful but among yourselves and your religious communities, many of you feel personally discouraged, even abandoned. I am also aware that in some people’s eyes you are tainted by association, and viewed as if you were somehow responsible for the misdeeds of others. At this painful time, I want to acknowledge the dedication of your priestly and religious lives and apostolates, and I invite you to reaffirm your faith in Christ, your love of his Church and your confidence in the Gospel's promise of redemption, forgiveness and interior renewal. In this way, you will demonstrate for all to see that where sin abounds, grace abounds all the more (cf. Rom 5:20).

I know that many of you are disappointed, bewildered and angered by the way these matters have been handled by some of your superiors. Yet, it is essential that you cooperate closely with those in authority and help to ensure that the measures adopted to respond to the crisis will be truly evangelical, just and effective. Above all, I urge you to become ever more clearly men and women of prayer, courageously following the path of conversion, purification and reconciliation. In this way, the Church in Ireland will draw new life and vitality from your witness to the Lord's redeeming power made visible in your lives.

11. To my brother bishops

It cannot be denied that some of you and your predecessors failed, at times grievously, to apply the long-established norms of canon law to the crime of child abuse. Serious mistakes were made in responding to allegations. I recognize how difficult it was to grasp the extent and complexity of the problem, to obtain reliable information and to make the right decisions in the light of conflicting expert advice. Nevertheless, it must be admitted that grave errors of judgement were made and failures of leadership occurred. All this has seriously undermined your credibility and effectiveness. I appreciate the efforts you have made to remedy past mistakes and to guarantee that they do not happen again. Besides fully implementing the norms of canon law in addressing cases of child abuse, continue to cooperate with the civil authorities in their area of competence. Clearly, religious superiors should do likewise. They too have taken part in recent discussions here in Rome with a view to establishing a clear and consistent approach to these matters. It is imperative that the child safety norms of the Church in Ireland be continually revised and updated and that they be applied fully and impartially in conformity with canon law.

Only decisive action carried out with complete honesty and transparency will restore the respect and good will of the Irish people towards the Church to which we have consecrated our lives. This must arise, first and foremost, from your own self-examination, inner purification and spiritual renewal. The Irish people rightly expect you to be men of God, to be holy, to live simply, to pursue personal conversion daily. For them, in the words of Saint Augustine, you are a bishop; yet with them you are called to be a follower of Christ (cf. Sermon 340, 1). I therefore exhort you to renew your sense of accountability before God, to grow in solidarity with your people and to deepen your pastoral concern for all the members of your flock. In particular, I ask you to be attentive to the spiritual and moral lives of each one of your priests. Set them an example by your own lives, be close to them, listen to their concerns, offer them encouragement at this difficult time and stir up the flame of their love for Christ and their commitment to the service of their brothers and sisters.

The lay faithful, too, should be encouraged to play their proper part in the life of the Church. See that they are formed in such a way that they can offer an articulate and convincing account of the Gospel in the midst of modern society (cf. 1 Pet 3:15) and cooperate more fully in the Church’s life and mission. This in turn will help you once again become credible leaders and witnesses to the redeeming truth of Christ.

12. To all the faithful of Ireland

A young person’s experience of the Church should always bear fruit in a personal and life-giving encounter with Jesus Christ within a loving, nourishing community. In this environment, young people should be encouraged to grow to their full human and spiritual stature, to aspire to high ideals of holiness, charity and truth, and to draw inspiration from the riches of a great religious and cultural tradition. In our increasingly secularized society, where even we Christians often find it difficult to speak of the transcendent dimension of our existence, we need to find new ways to pass on to young people the beauty and richness of friendship with Jesus Christ in the communion of his Church. In confronting the present crisis, measures to deal justly with individual crimes are essential, yet on their own they are not enough: a new vision is needed, to inspire present and future generations to treasure the gift of our common faith. By treading the path marked out by the Gospel, by observing the commandments and by conforming your lives ever more closely to the figure of Jesus Christ, you will surely experience the profound renewal that is so urgently needed at this time. I invite you all to persevere along this path.

13. Dear brothers and sisters in Christ, it is out of deep concern for all of you at this painful time in which the fragility of the human condition has been so starkly revealed that I have wished to offer these words of encouragement and support. I hope that you will receive them as a sign of my spiritual closeness and my confidence in your ability to respond to the challenges of the present hour by drawing renewed inspiration and strength from Ireland’s noble traditions of fidelity to the Gospel, perseverance in the faith and steadfastness in the pursuit of holiness. In solidarity with all of you, I am praying earnestly that, by God’s grace, the wounds afflicting so many individuals and families may be healed and that the Church in Ireland may experience a season of rebirth and spiritual renewal.

14. I now wish to propose to you some concrete initiatives to address the situation.

At the conclusion of my meeting with the Irish bishops, I asked that Lent this year be set aside as a time to pray for an outpouring of God’s mercy and the Holy Spirit’s gifts of holiness and strength upon the Church in your country. I now invite all of you to devote your Friday penances, for a period of one year, between now and Easter 2011, to this intention. I ask you to offer up your fasting, your prayer, your reading of Scripture and your works of mercy in order to obtain the grace of healing and renewal for the Church in Ireland. I encourage you to discover anew the sacrament of Reconciliation and to avail yourselves more frequently of the transforming power of its grace.

Particular attention should also be given to Eucharistic adoration, and in every diocese there should be churches or chapels specifically devoted to this purpose. I ask parishes, seminaries, religious houses and monasteries to organize periods of Eucharistic adoration, so that all have an opportunity to take part. Through intense prayer before the real presence of the Lord, you can make reparation for the sins of abuse that have done so much harm, at the same time imploring the grace of renewed strength and a deeper sense of mission on the part of all bishops, priests, religious and lay faithful.

I am confident that this programme will lead to a rebirth of the Church in Ireland in the fullness of God’s own truth, for it is the truth that sets us free (cf. Jn 8:32).

Furthermore, having consulted and prayed about the matter, I intend to hold an Apostolic Visitation of certain dioceses in Ireland, as well as seminaries and religious congregations. Arrangements for the Visitation, which is intended to assist the local Church on her path of renewal, will be made in cooperation with the competent offices of the Roman Curia and the Irish Episcopal Conference. The details will be announced in due course.

I also propose that a nationwide Mission be held for all bishops, priests and religious. It is my hope that, by drawing on the expertise of experienced preachers and retreat-givers from Ireland and from elsewhere, and by exploring anew the conciliar documents, the liturgical rites of ordination and profession, and recent pontifical teaching, you will come to a more profound appreciation of your respective vocations, so as to rediscover the roots of your faith in Jesus Christ and to drink deeply from the springs of living water that he offers you through his Church.

In this Year for Priests, I commend to you most particularly the figure of Saint John Mary Vianney, who had such a rich understanding of the mystery of the priesthood. "The priest", he wrote, "holds the key to the treasures of heaven: it is he who opens the door: he is the steward of the good Lord; the administrator of his goods." The Curé d’Ars understood well how greatly blessed a community is when served by a good and holy priest: "A good shepherd, a pastor after God’s heart, is the greatest treasure which the good Lord can grant to a parish, and one of the most precious gifts of divine mercy." Through the intercession of Saint John Mary Vianney, may the priesthood in Ireland be revitalized, and may the whole Church in Ireland grow in appreciation for the great gift of the priestly ministry.

I take this opportunity to thank in anticipation all those who will be involved in the work of organizing the Apostolic Visitation and the Mission, as well as the many men and women throughout Ireland already working for the safety of children in church environments. Since the time when the gravity and extent of the problem of child sexual abuse in Catholic institutions first began to be fully grasped, the Church has done an immense amount of work in many parts of the world in order to address and remedy it. While no effort should be spared in improving and updating existing procedures, I am encouraged by the fact that the current safeguarding practices adopted by local Churches are being seen, in some parts of the world, as a model for other institutions to follow.

I wish to conclude this Letter with a special Prayer for the Church in Ireland, which I send to you with the care of a father for his children and with the affection of a fellow Christian, scandalized and hurt by what has occurred in our beloved Church. As you make use of this prayer in your families, parishes and communities, may the Blessed Virgin Mary protect and guide each of you to a closer union with her Son, crucified and risen. With great affection and unswerving confidence in God’s promises, I cordially impart to all of you my Apostolic Blessing as a pledge of strength and peace in the Lord.

From the Vatican, 19 March 2010, on the Solemnity of Saint Joseph

BENEDICTUS PP. XVI

Prayer for the Church in Ireland

God of our fathers,
renew us in the faith which is our life and salvation,
the hope which promises forgiveness and interior renewal,
the charity which purifies and opens our hearts
to love you, and in you, each of our brothers and sisters.

Lord Jesus Christ,
may the Church in Ireland renew her age-old commitment
to the education of our young people in the way of truth and goodness, holiness and generous service to society.

Holy Spirit, comforter, advocate and guide,
inspire a new springtime of holiness and apostolic zeal
for the Church in Ireland.

May our sorrow and our tears,
our sincere effort to redress past wrongs,
and our firm purpose of amendment
bear an abundant harvest of grace
for the deepening of the faith
in our families, parishes, schools and communities,
for the spiritual progress of Irish society,
and the growth of charity, justice, joy and peace
within the whole human family.

To you, Triune God,
confident in the loving protection of Mary,
Queen of Ireland, our Mother,
and of Saint Patrick, Saint Brigid and all the saints,
do we entrust ourselves, our children,
and the needs of the Church in Ireland.

Amen.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A Primazia do Amor em S. Boaventura


Papa Bento XVI

Queridos irmãos e irmãs:

Nesta manhã, continuando com a reflexão da quarta-feira passada, eu gostaria de aprofundar convosco em outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele foi um eminente teólogo, que merece ser colocado junto a outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo Santo Tomás de Aquino. Ambos escrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, nesse fecundo diálogo entre fé e razão que caracteriza o Medievo cristão, convertendo-a em uma época de grande vivacidade intelectual, além de fé e renovação eclesial, frequentemente pouco evidenciada.

Outras analogias os unem: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes, que, com seu frescor espiritual, como recordei nas catequeses anteriores, renovaram a Igreja inteira no século XIII e atraíram muitos seguidores. Os dois serviram a Igreja com diligência, paixão e amor, até o ponto de serem convidados a participar do Concílio Ecumênico de Lyon de 1274, o mesmo ano em que morrerem: Tomás, enquanto se dirigia a Lyon, Boaventura durante a celebração do mesmo concílio. Também na Praça de São Pedro, as estátuas dos dois santos estão paralelas, colocadas precisamente no começo da Colunata, partindo da fachada da Basílica Vaticana: uma no Braço da esquerda e outra no Braço da direita. Apesar de todos estes aspectos, podemos distinguir nos dois santos duas aproximações diferentes da investigação filosófica e teológica, que mostram a originalidade e profundidade do pensamento de um e de outro. Eu gostaria de destacar algumas destas diferenças.

Uma primeira diferença se refere ao conceito de teologia. Ambos os doutores se perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. Santo Tomás reflete sobre duas possíveis respostas contrárias. A primeira diz: a teologia é reflexão sobre a fé e o objeto da fé é que o homem chegue a ser bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, o fim da teologia deveria ser o de guiar pelo caminho correto, bom; em consequência, esta, no fundo, é uma ciência prática. A outra postura diz: a teologia tenta conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir, opera em nosso agir correto. Portanto, trata-se substancialmente não do nosso agir, mas de conhecer Deus, não do que fazemos. A conclusão de Santo Tomás é: a teologia envolve ambos os aspectos: é teórica – tenta conhecer Deus cada vez mais – e é prática: tenta orientar nossa vida ao bem. Mas há uma primazia do conhecimento: devemos sobretudo conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (Summa Theologiae Ia, q. 1, art. 4). Esta primazia do conhecimento frente à práxis é significativa para a orientação fundamental de Santo Tomás.

A resposta de São Boaventura é muito parecida, mas os acentos são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em uma e em outra direção, como Santo Tomás, mas, para responder à pergunta sobre se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma tripla distinção – amplia, portanto, a alternativa entre teórica (primazia do conhecimento) e prática (primazia da práxis), acrescentando uma terceira postura, que chama de “sapiencial”, e afirmando que a sabedoria abraça ambos os aspectos. E depois prossegue: a sabedoria busca a contemplação (como a mais alta forma de conhecimento) e tem como intenção ut boni fiamus – que sejamos bons, sobretudo isso: que sejamos bons (cfr Breviloquium, Prologus, 5). Depois acrescenta: “A fé está no intelecto, de tal maneira que provoca o afeto. Por exemplo: conhecer que Cristo morreu ‘por nós’ não fica apenas no conhecimento, mas se converte necessariamente em afeto, em amor” (Proemium in I Sent., q. 3).

Na mesma linha, move-se sua defesa da teologia, isto é, da reflexão racional e metódica da fé. São Boaventura recolhe alguns argumentos contra o fazer teologia, talvez difundidos também em uma parte dos frades franciscanos e presentes também em nossa época: a razão esvaziaria a fé, seria uma postura violenta com relação à Palavra de Deus; devemos escutar e não analisar a Palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo Antônio de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o santo responde: é verdade que existe uma forma arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se coloca acima da Palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da verdadeira e da boa teologia tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez mais e melhor o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e a pesquisa motivada pela soberba, mas sed propter amorem eius cui assentit – é motivada pelo amor Àquele a quem deu seu consentimento (Proemium in I Sent., q. 2) – e quer conhecer melhor o Amado: esta é a intenção fundamental da teologia. Para São Boaventura, é determinante no final, portanto, a primazia do amor.

Em consequência, Santo Tomás de Aquino e São Boaventura definem de maneira diferente o destino último do homem, sua felicidade plena: para Santo Tomás, o fim supremo ao qual nosso desejo se dirige é ver Deus. Neste simples ato de ver Deus, todos os problemas encontram solução: somos felizes, não precisamos de mais nada.

Para São Boaventura, o destino último do homem é, por outro lado, amar a Deus: o encontro e a união do seu amor e do nosso. Esta é, para ele, a definição mais adequada da nossa felicidade.

Nesta linha, poderíamos dizer também que a categoria mais alta, para Santo Tomás, é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errôneo ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade também é o bem e o bem também é a verdade; ver Deus é amar e amar é ver. Trata-se, portanto, de acentos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os acentos formaram tradições diferentes e espiritualidades variadas e, assim, mostraram a fecundidade da fé, una na diversidade das suas expressões.

Voltemos a São Boaventura. É evidente que o acento específico da sua teologia, do qual somente dei um exemplo, explica-se a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, muito além dos debates intelectuais da sua época, havia mostrado, com toda a sua vida, a primazia do amor: era um ícone vivente e enamorado de Cristo e assim fez presente, no seu tempo, a figura do Senhor: convenceu seus contemporâneos não com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, também em suas obras científicas, de escola, vemos e encontramos esta inspiração franciscana, isto é, percebe-se que ele pensa partindo do encontro com o Pobrezinho de Assis. Mas, para entender a elaboração concreta do tema “primazia do amor”, devemos ter presente também uma outra fonte: os escritos do chamado Pseudo-Dionísio, um teólogo siríaco do século VI que se escondeu sob o pseudônimo de Dionísio o Areopagita, indicando, com esse nome, uma figura dos Atos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo havia criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística e havia falado amplamente das diversas ordens dos anjos. Seus escritos foram traduzidos ao latim no século IX; na época de São Boaventura – estamos no século XIII –, aparecia uma nova tradição, que provocou o interesse do santo e de outros teólogos do seu século. Duas coisas atraíam em particular a atenção de São Boaventura:

1. O Pseudo-Dionísio fala de 9 ordens dos anjos, cujos nomes ele havia encontrado na Escritura e depois havia organizado à sua maneira, desde os simples anjos até os serafins. São Boaventura interpreta estas ordens de anjos como degraus na aproximação da criatura de Deus. Assim, podem representar o caminho humano, a subida até a comunhão com Deus. Para São Boaventura, não existe dúvida alguma: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, isto é, era puro fogo de amor. E assim deveriam ter sido os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação de Deus não pode ser inserido em um ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da ordem franciscana é mais modesta, mais realista, mas deve ajudar os membros a se aproximarem cada vez mais de uma existência seráfica de puro amor. Na última quarta-feira, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e na ação de São Boaventura.

2. São Boaventura, no entanto, encontrou nos escritos do Pseudo-Dionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e com o coração, era a última categoria do conhecimento, o Pseudo-Dionísio dá um passo além: na subida até Deus, pode-se chegar a um ponto em que a razão já não enxerga mais. Porém, na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê o que permanece inacessível para a razão. O amor se estende muito além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura ficou fascinado com esta visão, que ia ao encontro da sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite escura da cruz, aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não enxerga mais, o amor vê. As palavras conclusivas do seu “Itinerário da mente em Deus”, em uma leitura superficial, podem parecer como a expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; lidas, no entanto, à luz da teologia da cruz de São Boaventura, são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana: “Se agora desejas saber como isso acontece (isto é, a subida até Deus), interroga a graça, não a doutrina; ao desejo, não ao intelecto; ao gemido da oração, não ao estudo da letra; (...) não a luz, mas ao fogo que inflama e transporta tudo em Deus” (VII, 6). Tudo isso não é anti-intelectual nem tampouco antirracional: supõe o caminho da razão, mas o transcende no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudo-Dionísio, São Boaventura se coloca nos inícios de uma grande corrente mística, que elevou e purificou muito a mente humana: é um cume na história do espírito humano.

Esta teologia da cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudo-Dionísio e a espiritualidade franciscana, não deve nos fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor à criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito, sobre este ponto, uma frase do primeiro capítulo do “Itinerário”: “Aquele (...) que não vê os esplendores imensuráveis das criaturas está cego; aquele que não desperta por suas muitas vozes está surdo; quem não louva Deus por todas estas maravilhas está mudo; quem, com tantos sinais, não se eleva ao primeiro princípio é néscio” (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.

Toda a nossa vida é, portanto, para São Boaventura, um “itinerário”, uma peregrinação, uma subida até Deus. Mas somente com as nossas forças não podemos subir até a altura de Deus. O próprio Deus deve nos ajudar, deve “conduzir-nos” para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – assim diz o santo – é a mãe e a origem da elevação: sursum actio, ação que leva ao alto. Concluo, por isso, com a oração com que Boaventura inicia seu “Itinerário”: “Oremos, portanto, e digamos ao Senhor nosso Deus: ‘Conduzi-me, Senhor, em vosso caminho e eu caminharei em vossa verdade. Que o meu coração se alegre ao temer o vosso nome’” (I, 1).


quarta-feira, 17 de março de 2010

O franciscano São Boaventura e o sentido da história

Papa Bento XVI

10. 03. 2010

Queridos irmãos e irmãs:

Na semana passada, falei sobre a vida e a personalidade de São Boaventura de Bagnoregio. Nesta manhã, eu gostaria de prosseguir com sua apresentação, detendo-me em uma parte da sua obra literária e da sua doutrina.

Como eu já dizia, São Boaventura, entre seus muitos méritos, teve o de interpretar autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, venerado e estudado por ele com grande amor. De modo particular, na época de São Boaventura, uma corrente de Frades Menores, chamados “espirituais”, sustentava que com São Francisco se havia inaugurado uma fase totalmente nova da história, teria aparecido o “Evangelho eterno” de que falava o Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a Igreja já tinha esgotado seu papel histórico e que seu lugar era ocupado por uma comunidade carismática de homens livres, guiados interiormente pelo Espírito, isto é, os “franciscanos espirituais”.

Na base das ideias deste grupo, estavam os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em 1202. Em suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da história. Considerava o Antigo Testamento como a era do Pai, seguida pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Seria preciso esperar a terceira era, a do Espírito Santo. Toda a história era assim interpretada como uma história de progresso: da severidade do Antigo Testamento à relativa liberdade do tempo do Filho, na Igreja, até a plena liberdade dos filhos de Deus, no período do Espírito Santo, que teria sido também, finalmente, o período da paz entre os homens, da reconciliação dos povos e das religiões. Joaquim de Fiore teria suscitado a esperança de que o início do novo tempo teria vindo de um novo monaquismo. Assim, é compreensível que um grupo de franciscanos acreditasse reconhecer em São Francisco de Assis o iniciador do tempo novo e, em sua ordem, a comunidade do período novo – a comunidade do tempo do Espírito Santo, que deixava para trás a Igreja hierárquica para iniciar a nova Igreja do Espírito, já não ligada às velhas estruturas.

Existia, portanto, o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem de São Francisco, da sua humilde fidelidade ao Evangelho e à Igreja, e este equívoco comportava uma visão errônea do cristianismo em seu conjunto.

São Boaventura, que em 1257 se converteu em ministro geral da ordem franciscana, encontrou-se frente a uma grande tensão dentro de sua própria ordem, precisamente por causa dos que sustentavam a mencionada corrente dos “franciscanos espirituais”, que se remetia a Joaquim de Fiore.

Precisamente para responder a esse grupo e voltar a dar unidade à ordem, São Boaventura estudou com cuidado os escritos autênticos de Joaquim de Fiore e os atribuídos a ele e, levando em consideração a necessidade de apresentar corretamente a figura e a mensagem do seu amado São Francisco, quis expor uma visão correta da teologia da história. São Boaventura enfrentou o problema precisamente em sua última obra, uma recopilação de conferências aos monges do estúdio parisiense, que ficou incompleta e que foi terminada através das transcrições dos ouvintes, intitulada Hexaëmeron, isto é, uma explicação alegórica dos 6 dias da criação. Os Padres da Igreja consideravam os 6 ou 7 dias do relato sobre a criação como profecia da história do mundo, da humanidade. Os 7 dias representavam para eles 7 períodos da história, mais tarde interpretados também como 7 milênios. Com Cristo, teríamos entrado no último, isto é, no sexto período da história, ao que seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta interpretação histórica da relação dos dias da criação, mas de uma forma muito livre e inovadora. Para ele, dois fenômenos da sua época tornam necessária uma nova interpretação do curso da história:

O primeiro: a figura de São Francisco, o homem totalmente unido a Cristo até a comunhão dos estigmas, quase um alter Christus; e, com São Francisco, a nova comunidade criada por ele, diferente do monaquismo conhecido até então. Este fenômeno exigia uma nova interpretação, como novidade de Deus aparecida nesse momento.

O segundo: a postura de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um período totalmente novo da história, indo muito além da revelação do Novo Testamento, exigia uma resposta.

Como ministro geral da ordem dos franciscanos, São Boaventura havia visto imediatamente que, com a concepção espiritualista, inspirada em Joaquim de Fiore, a ordem não era governável, mas caminhava logicamente rumo à anarquia. Para ele, havia duas consequências:

A primeira: a necessidade prática de estruturas e de inserção na realidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, precisava de um fundamento teológico, também porque os demais, os que seguiam a concepção espiritualista, mostravam um aparente fundamento teológico.

A segunda: ainda levando em conta o realismo necessário, não se podia perder a novidade da figura de São Francisco.

Como São Boaventura respondeu à exigência prática e teórica? Da sua resposta, só posso dar aqui um resumo muito esquemático e incompleto em alguns pontos:

1. São Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é um para toda a história e não se divide em 3 divindades. Por conseguinte, a história é uma, ainda que seja um caminho e – segundo São Boaventura – um caminho de progresso.

2. Jesus Cristo é a última palavra de Deus; n’Ele, Deus disse tudo, doando a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus não pode dizer nem dar. O Espírito é Espírito do Pai e do Filho. O próprio Cristo diz do Espírito Santo: “... Ele vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14, 26), “tomará do que é meu e vos comunicará” (Jo 16, 15). Portanto, não existe outro Evangelho mais alto, não existe outra Igreja a esperar. Por isso, também a ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja, em sua fé, em seu ordenamento hierárquico.

3. Isso não significa que a Igreja é imóvel, fixa no passado e que não possa haver novidades nela. Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt: as obras de Cristo não voltam atrás, não diminuem, mas progridem, diz o santo na carta De tribus quaestionibus. Assim, São Boaventura formula explicitamente a ideia do progresso e está é uma novidade com relação aos Padres da Igreja e a grande parte dos seus contemporâneos. Para São Boaventura, Cristo já não é, como era para dos Padres da Igreja, o final, mas o centro da história; com Cristo, a história não acaba, mas começa um novo período.

Outra consequência é a seguinte: até aquele momento, dominava a ideia de que os Padres da Igreja eram o cume absoluto da teologia; todas as gerações seguintes poderiam somente ser suas discípulas. Também São Boaventura reconhece os Padres como mestres para sempre, mas o fenômeno de São Francisco lhe dá a certeza de que a riqueza da Palavra de Deus é inesgotável e que também nas novas gerações podem aparecer novas luzes. A unicidade de Cristo garante também a novidade e renovação em todos os períodos da história.

Certamente, a ordem franciscana – assim sublinha – pertence à Igreja de Jesus Cristo, a Igreja apostólica, e não pode ser construído um espiritualismo utópico. Mas, ao mesmo tempo, é válida a novidade desta ordem com relação ao monaquismo clássico, e São Boaventura – como comentei na catequese anterior – defendeu esta novidade contra os ataques do clero secular de Paris: os franciscanos não têm um mosteiro fixo, podem estar presentes em todos os lugares para anunciar o Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade característica do monaquismo a favor de uma nova flexibilidade restituiu à Igreja o dinamismo missionário.

Neste ponto, talvez seja útil dizer que também hoje existem visões segundo as quais toda a história da Igreja no segundo milênio teria sido um ocaso permanente; alguns veem o ocaso imediatamente depois do Novo Testamento. Na verdade, Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt, as obras de Cristo não voltam atrás, mas progridem. O que seria da Igreja sem a nova espiritualidade dos cistercienses, dos franciscanos e dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de Ávila ou de São João da Cruz...? Também hoje vale esta afirmação: Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt, seguem adiante. São Boaventura nos ensina o conjunto do necessário discernimento, também severo, do realismo sóbrio e da abertura aos novos carismas dados por Cristo, no Espírito Santo, à sua Igreja.

E enquanto se repete esta ideia do ocaso, há também outra ideia, este “utopismo espiritualista”, que se repete. Sabemos, de fato, que após o Concílio Vaticano II, alguns estavam convencidos de que tudo seria novo, de que haveria outra Igreja, de que a Igreja pré-conciliar tinha acabado e de que teríamos totalmente “outra”. Um utopismo anárquico! E, graças a Deus, os sábios timoneiros da barca de Pedro, o Papa Paulo VI e o Papa João Paulo II, por um lado, defenderam a novidade do Concílio e, por outro, ao mesmo tempo, defenderam a unicidade e a continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de pecadores e sempre lugar da Graça.

4. Neste sentido, São Boaventura, como ministro geral dos franciscanos, adotou uma linha de governo na qual estava muito claro que a nova ordem não poderia, como comunidade, viver a mesma “altura escatológica” de São Francisco, em que ele vê antecipado o mundo futuro, mas que – guiado, ao mesmo tempo, por um realismo sadio e pelo valor espiritual – deveria aproximar-se o máximo possível da realização plena do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi “a” regra, ainda levando em consideração os limites do homem, marcado pelo pecado original.

Vemos assim que, para São Boaventura, governar não era simplesmente fazer, mas sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo, encontramos sempre a oração e o pensamento; todas as suas decisões são resultado da reflexão, do pensamento iluminado pela oração. Seu contato íntimo com Cristo acompanhou sempre seu trabalho de ministro geral e, por isso, ele compôs uma série de escritos teológico-místicos, que expressam o ânimo do seu governo e manifestam a intenção de guiar interiormente a ordem, isto é, de governar não somente mediante mandatos e estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando a Cristo.

Desses escritos seus, que são a alma do seu governo e que mostram o caminho a ser percorrido, seja individualmente ou como comunidade, eu gostaria de mencionar apenas um, sua obra-prima, Itinerarium mentis in Deum, que é um “manual” de contemplação mística. Este livro foi concebido em um lugar de profunda espiritualidade: o Monte La Verna, onde São Francisco recebeu os estigmas.

Na introdução, o autor ilustra as circunstâncias que deram origem a este escrito seu: “Enquanto meditava sobre as possibilidades da alma de ascender a Deus, apresentou-se a mim, por outro lado, este acontecimento admirável ocorrido naquele lugar ao beato Francisco, isto é, a visão do Serafim alado em forma de Crucificado. E, meditando sobre isso, imediatamente percebi que esta visão me oferecia o êxtase contemplativo do próprio Padre Francisco e, ao mesmo tempo, o caminho que conduz a ele” (Itinerario della mente in Dio, Prologo, 2, em Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici /1, Roma 1993, p. 499).

As seis asas do Serafim se converteram, assim, no símbolo de seis etapas que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da observação do mundo e das criaturas e através da exploração da própria alma com suas faculdades, até a união gratificante com a Trindade por meio de Cristo, a exemplo de São Francisco de Assis.

As últimas palavras do Itinerarium de São Boaventura, que respondem à pergunta sobre como se pode alcançar esta comunhão mística com Deus, pareciam descer ao profundo do coração: “Se agora desejas saber como isso acontece [a comunhão mística com Deus], interroga a graça, não a doutrina; ao desejo, não ao intelecto; ao gemido da oração, não ao estudo da letra; ao esposo, não ao professor; a Deus, não ao homem; à névoa, não à claridade; não à luz, mas ao fogo que inflama tudo e transporta a Deus com as fortes unções e os afetos ardentíssimos... Entremos, portanto, na névoa, silenciemos os afãs, as paixões e os fantasmas; passemos, com Cristo crucificado, deste mundo ao Pai, para que, após tê-lo visto, digamos com Felipe: Isso me basta” (ibid., VII, 6).

Queridos amigos, acolhamos o convite que nos dirige São Boaventura, o Doutor Seráfico, e entremos na escola do Mestre divino: escutemos sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no íntimo da nossa alma. Purifiquemos nossos pensamentos e nossas ações, para que Ele possa habitar em nós e nós possamos compreender sua voz divina, que nos atrai à felicidade verdadeira.

É preciso desconhecê-lo completamente


Ele há pessoas com psicopatias e outros distúrbios mentais e espirituais dotadas de imensa inteligência, de habilidades invulgares e de aptidões excepcionais capazes de enganar durante muito tempo quase toda a gente. É o caso por exemplo do P. Maciel, “fundador” dos Legionários de Cristo, cujo comportamento sexual era tão depravado que não só fornicou com várias mulheres como sodomizou alguns dos filhos que teve delas. Este monstro hipócrita, que também abusou de alguns seminaristas, depois de ter enganado um ror de gente só foi parado, com toda a prontidão e determinação, pelo então Cardeal Ratzinger, mesmo contra a vontade do então Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Sodano, que, iludido, acreditava na inocência do sequaz de Satanás.

Josef Ratzinger, o actual Papa Bento XVI, nunca pactuou com encobrimentos e silêncios hipócritas em nome do bem da Igreja. Muito pelo contrário, sempre entendeu que a justa crítica pública dos pecados e dos males que a assediam é um serviço eminente que se presta a Jesus Cristo, cooperando com Ele na purificação da mesma. Isto aprendeu-o dos Profetas, dos Apóstolos, dos Padres da Igreja e de muitos outros grandes Santos. Não foi por acaso que há alguns anos, já como Sumo Pontífice, elogiou num encontro com o clero as críticas feitas por duas Santas aos Bispos e mesmo ao Papa.

A consciência de Deus, da Divindade de Cristo e da Igreja como obra Sua é nele tão firme, tão certa, tão amorosa que não suporta, para usar uma expressão sua, a “porcaria” e a perversão que querem degradar e deformar a beleza da Verdade e do Amor que da Igreja irradia.

Insinuar, como a comunicação social tem feito repetidamente, que este Santo Papa esteja implicado ou envolvido em manobras indecorosas compactuando com os servos do diabo só se pode explicar por ela mesma estar dominada por aquele Lúcifer maquiavélico que procura em vão destruir a Igreja e a sua credibilidade. Não o conseguirão porque “as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” e a garantia visível de que isso não sucederá está e continuará a estar no Sucessor de Pedro e Vigário de Cristo na Terra.

Nuno Serras Pereira

17. 03. 2010