Alcance do projeto-lei em discussão
Foi aprovado na generalidade o
projeto-lei nº 278/XII, que permite a coadoção em uniões homossexuais, ou seja,
a adoção por uma pessoa casada com outra do mesmo sexo (ou a ela unida de
facto) quando em relação a esta já esteja estabelecida a filiação, natural ou
adotiva.
Deve,
desde já, salientar-se que a alteração legislativa proposta permitirá tornear
facilmente a atual proibição da adoção conjunta por pares do mesmo sexo, deixando
«entrar pela janela aquilo a que se
fechou a porta»: basta que uma das pessoas adote singularmente, ou (os
casos mais frequentes na prática) que uma mulher recorra à procriação
artificial num país que não a proíba, e depois o seu cônjuge, companheira ou
companheiro, solicite a coadoção.
Dizem os apoiantes do projeto que se trata
apenas de proteger situações já existentes. Mas função de uma qualquer lei não
é reconhecer factos consumados ou regular situações já existentes, ela vigora
para o futuro e abre (ou não) as portas a novas situações. Aqui, trata-se da
possibilidade de alcançar, pela via indicada, alguns dos resultados a que
chegaria através da legalização da adoção conjunta por pares homossexuais. É
bom ter presente este facto para não cair na ilusão de que o projeto aprovado
difere substancialmente de outros que foram rejeitados e que admitiam a adoção
conjunta por pares do mesmo sexo. Trata-se de uma opção estratégica de alcançar
o mesmo resultado de forma gradual e menos ostensiva.
Isso
mesmo (que se trata de um passo a que logicamente se seguirá outro) resulta com
clareza da exposição de motivos do projeto-lei em discussão, onde se afirma:
«Não se trata,
portanto, para já, de revisitar temas como o do alargamento do instituto
da adoção a todas as pessoas, solução que, a bem da verdade, tudo incluiria,
mas de …» (sublinhado meu).
E nessa exposição de motivos também
se faz referência explícita às duas situações acima referidas (a adoção
singular e o recurso à procriação artificial), em relação às quais a codaoção
permitirá contornar a proibição da adoção conjunta. Um objetivo que nem está
muito escondido, pois.
Deve também sublinhar-se, na mesma
linha, que o projeto-lei serve, sobretudo, um propósito de afirmação ideológica
de uma nova configuração da família (de acordo com a chamada ideologia do género), mais do que o de
resolução pragmática de situações concretas de desproteção jurídica.
A eventual desproteção tem sido
grandemente exagerada pelos proponentes e partidários da alteração legislativa
proposta. Ao contrário do que por vezes quase se dá a entender, as crianças em
questão, tendo já estabelecida a filiação quanto a um dos progenitores, em nada
ficam limitadas nos seus direitos de acesso à saúde ou educação (a diferença
que a este respeito pode verificar-se com a coadoção é apenas a de que as
decisões tomadas nesses âmbitos passam a ser partilhadas pelos dois
progenitores). Tanto assim é que, atualmente, na maior parte dos casos de
segundo casamento de uma pessoa viúva com filhos menores não se verifica a
coadoção pelo cônjuge.
Em caso de morte do progenitor, a
criança não será certamente abandonada ou entregue a uma instituição (como
parecem dar a entender os proponentes e partidários do projeto em discussão). O
companheiro ou cônjuge do falecido poderá adotar singularmente, ou poderá
ser-lhe confiada a criança a outro título.
Não pode esquecer-se que há muitas
formas de proteção da criança que não passam pela adoção, a qual supõe a rutura
do vínculo com o progenitor natural e a criação de um vínculo o mais possível
semelhante ao da filiação natural.
Não pode esquecer-se que, de acordo
com o artigo 1986º do Código Civil, a coadoção supõe a rutura com o progenitor
natural, eventualmente já falecido, e com a sua família (os avós e tios,
eventualmente ainda vivos), o que acentua o absoluto cancelamento da figura do
progenitor natural (pai ou mãe), situação particularmente problemática quando o
adotante não for do mesmo sexo do falecido (não podendo, pois, substitui-lo
simbolicamente).
A possibilidade de coadoção proposta
não é, pois, necessária para resolver questões concretas de desproteção (há
outras formas de o fazer) e, sobretudo, cria outros problemas, como veremos de
seguida.
Abre a porta a situações em tudo
equiparáveis às de adoção conjunta nos casos de adoção singular por parte de
uma pessoa homossexual (não excluída pela legislação vigente) seguida da
coadoção pelo cônjuge, companheiro ou companheira, ou de recurso por uma mulher
homossexual à procriação artificial num país estrangeiro, seguida da coadoção
pela companheira.
Neste último caso, a fraude à lei (a
obtenção de um efeito não querido pelo legislador sem violação direta da lei,
deixando que «entre pela janela aquilo a
que se fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não quis ao
proibir a adoção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a procriação
artificial fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim é, e porque
é evidente que outro passo da estratégia global a que assistimos também passa
pela abolição desta proibição, justifica-se que adiante se faça uma referência
a esta outra proposta.
As objeções à adoção conjunta por
pares homossexuais estendem-se, pois, ao projeto-lei em discussão (relativo à
codaoção) e, por isso, serão, de seguida, expostas tais objeções.
Por outro lado, mesmo para as
situações de crianças filhas naturais de uma pessoa que vive numa união
homossexual, a coadoção causa sérios danos à construção da sua identidade
psíquica, como veremos de seguida. Não é o mesmo, por um lado, ser reconhecido
como filho de uma pessoa (pai ou mãe) que pode viver com outra do mesmo sexo e,
por outro lado, ser reconhecido (com toda a força social e simbólica da lei)
como filho de dois pais (e nenhuma mãe), ou de duas mães (e nenhum pai). Também
analisaremos de seguida esta questão mais em profundidade.
As
finalidades e o espírito do instituto da adoção
O
superior interesse da criança
Afirma-se recorrentemente que a legalização
da adoção por pares do mesmo sexo é uma exigência do princípio da igualdade e
não discriminação em função da orientação sexual.
No entanto, a adoção não pode ser encarada
como direito dos candidatos, mas como direito da criança. Não são os candidatos
à adoção que têm direito a adotar, são as crianças órfãs ou abandonadas que têm
o direito a ser adotadas. Estas não podem ser objeto ou instrumento de
direitos ou de reivindicações dos candidatos à adoção. São sujeitos de
direitos, não objeto de direitos de outrem. O bem das crianças prevalece sempre
sobre os interesses dos candidatos à adoção, mesmo que daí decorra um tratamento
diferenciado desses candidatos (porque não é um direito destes que está em
causa), seja em razão da saúde, das capacidades económicas ou da orientação
sexual.
É esse bem que justifica a inadmissibilidade
da adoção por pares do mesmo sexo, porque essa adoção priva as crianças da
figura paterna ou materna, quando ambas são imprescindíveis e insubstituíveis
para o seu crescimento harmonioso.
O princípio da igualdade supõe o tratamento
igual do que é igual e o tratamento diferente do que é diferente. E, na perspetiva
do bem da criança, é diferente que seja educada por um pai e uma mãe ou por
dois pais ou duas mães.
Sempre presidiu ao regime da adoção a ideia
de que esta visa criar entre adotantes e adotado não quaisquer laços de afeto,
mas aqueles que mais se aproximam dos que são próprios da filiação natural (ver
artigo 1974º, nº 1, b), do Código Civil)
Por isso, exige-se um certo desnível etário entre adotantes e adotado,
por exemplo. Entre avós e netos haverá o mais intenso dos afetos, mas não o
relacionamento que é próprio da filiação (e, por isso, não podem aqueles adotar
estes). Entre duas pessoas de idades próximas poderá certamente haver relações
de afeto, mas não o relacionamento próprio da filiação (e, por isso, não poderá
uma deles adotar a outra). A adoção visa, pois, criar entre adotantes e adotado
laços que se aproxima o mais possível da filiação natural (de acordo com um
velho brocardo: adoptio imitat natura).
Ora, a filiação natural supõe sempre um pai e uma mãe.
Para além disso, qualquer criança adotada
enfrenta a problemática da aceitação da adoção («de onde venho?»; «quem são os
meus pais?»), uma prova muito mais difícil de superar quando os adotantes
têm características radicalmente diferentes das dos pais naturais e
habituais.
Criar “novas
formas de família”, suscitar experimentalismos sociais é o que há de mais
contrário às finalidades da adoção. Esta pretende (na medida do possível) que a
criança adotada em nada se distinga da que vive com os progenitores naturais. É
compreensível que muitos pais adotantes procuram que seja pouco divulgado
(designadamente junto de outras crianças) que o seu filho é adotado: porque
este não deve sentir-se diferente dos outros por isso. Ora, isso nunca será
possível em caso de adoção por pares do mesmo sexo.
A importância das figuras materna e paterna,
a imprescindibilidade e insubstituibilidade de uma e outra, sempre foi
salientada pelos estudos de psicologia do desenvolvimento infantil e só a
polémica em torno da adoção por pares homossexuais deu origem a afirmações
contrárias a tal ideia. O que sempre se afirmou em estudos de desenvolvimento
da psicologia infantil (em “tempo não suspeito”, sem qualquer relação com a
polémica em causa) não pode agora ser ignorado. De resto, essas conclusões são
confirmadas pela intuição e bom senso de qualquer pessoa.
Sempre se reconheceram os danos que podem
acarretar a ausência da mãe e a ausência do pai no desenvolvimento de uma
criança e um jovem. Sempre se salientou a necessidade de filhos de pais
separados não perderem a ligação com o pai, porque a mãe, por muito competente
que seja, nunca substitui o pai (e, por isso, se vem generalizando o regime de
guarda conjunta).
Afirma, por exemplo, Trayce Hansen, psicóloga
com prática cínica e forense na Califórnia[1] :
«O amor
materno e o amor paterno, ainda que igualmente importantes, são
qualitativamente distintos e dão lugar a relações paterno-filiais diferentes.
Especificamente, a combinação do amor de mãe, que mostra uma devoção
incondicional, e o amor de pai, que põe condições, resulta essencial para o
crescimento de um filho. Qualquer destas formas de amor pode ser problemática
sem a outra. Porque aquilo de que um filho necessita é de um equilíbrio
complementar que proporcionam ambos os tipos de amor e relação.
Só os pais
heterossexuais oferecem aos filhos a oportunidade de estabelecer relações com o
progenitor do mesmo sexo e o de sexo contrário. As relações com ambos os sexos,
na etapa inicial da vida fazem com que se torna mais fácil para um filho
relacionar-se com ambos os sexos mais tarde. Para uma menina, isso significa
que entenderá melhor e interagirá de forma mais adequada com o mundo masculino,
e que se sentirá mais confortável no mundo das mulheres. E para o rapaz, a
inversa será verdadeira. Ter uma relação com “o outro” (o progenitor do outro
sexo) também incrementa a probabilidade de que um filho seja mais empático e
menos narcisista. (…)
Um progenitor
do sexo oposto ajuda o seu filho ou filha, conforme os casos, a controlar as
sua próprias inclinações naturais, ensinando-lhe, com a palavra e de forma não verbal,
o valor das tendências contrárias. Este ensino não só facilita a moderação,
como amplia também o mundo de cada filho, ajudando-o a ver mais além do seu
próprio e limitado ponto de vista.»
O crescimento da criança faz-se por etapas e
essas etapas exigem umas mais da mãe e outras mais do pai.
A relação da criança com a mãe é
essencial nos primeiros anos de vida (quem o poderá negar, e com base em que
estudos?). A mãe tem uma maior sintonia com as delicadas necessidades dos seus
filhos e entende melhor as suas emoções, sendo, por isso, mais adequada a sua
capacidade de resposta a tais necessidades e emoções. A ausência da mãe nessa
fase é traumática e pode gerar comportamentos antissociais no futuro.
Mas, da mesma forma que a relação com a mãe
é essencial nos primeiros anos de vida, é essencial mais tarde a relação com o
pai, para que a criança se ‘desapegue’ da mãe e assim cresça como pessoa autónoma.
Não bastam os afetos para crescer, para tal são necessárias regras e autoridade
(corretamente entendida, esta significa isso mesmo: ajudar a crescer). O papel
da figura paterna acentua este aspeto. Em relação aos rapazes, o papel do pai
ajuda-os a controlar os impulsos agressivos e sexuais (o que a mãe não pode
fazer, porque não os experimenta da mesma forma). Não é por acaso que a ausência
do pai está na origem de muitos dos problemas de delinquência juvenil, por
exemplo.
A importância dos papéis materno e paterno
não decorre de uma rígida, tradicional e ultrapassada divisão de tarefas entre
homem e mulher. A dualidade das dimensões masculina e feminina da realidade
humana vai muito para além dessa divisão tradicional, não se confunde com ela,
mas existe e representa uma riqueza.
Dois pais ou duas mães não é, pois, o mesmo
que um pai e uma mãe. Se assim, fosse, se fosse suficiente o afeto, porque
deveriam ser dois (e não um), ou só dois, os progenitores? São dois porque um é
diferente em relação ao outro, não é uma fotocópia do outro, completa e
enriquece, com a sua especificidade, a pessoa e a tarefa do outro. Um dá uma
riqueza que o outro não tem.
Afirma, nesta linha, o filósofo
francês Xavier Lacroix[2] que «todos
crescemos num duplo jogo de identificação e diferenciação, todos recebemos o
amor segundo estas duas cores e estas duas vozes, masculina e feminina», pois
nenhuma delas esgota a riqueza do humano. Assumir legalmente a filiação por
duas pessoas do mesmo sexo é, de acordo com a filósofa francesa Sylviane
Agacinsky[3] «negar violentamente a
incompletude e finitude de cada um do sexos em relação ao outro, é simbolizar,
aos olhos dos visados e de toda a sociedade, a negação da limitação de cada um
dos sexos» e, consequentemente, a negação da riqueza da dualidade sexual.
Diz-se que
interessa apenas a competência parental,
e não o sexo dos progenitores, e que as pessoas homossexuais não são, nesse
aspeto, inferiores às pessoas heterossexuais. Mas a mais competente das mães
nunca poderá substituir um pai, tal como o mais competente dos pais nunca
poderá substituir a mãe.
Nenhum de nós
tem como referência dois progenitores indiferenciados (o progenitor A e o progenitor B,
como passou a constar de documentos oficiais em países que legalizaram a adoção
por pares do mesmo sexo), mas a sua mãe (que é única, não uma de entre uma
série de mães A e B) e o seu pai (que é único, não um de
entre uma série de pais A e B). E quem foi privado de alguma dessas
referências não deixa de lamentar profundamente esse facto.
Também há quem
alegue que a criança educada por dois pais ou duas mães não deixa de manter
relacionamentos com pessoas de sexo diferente do dos progenitores (avós, tios,
professores, etc.). Mas o
relacionamento com o pai e a mãe é único e insubstituível (sabe-o bem quem
passa pela trágica experiência da perda de um deles). Traduz-se numa presença
constante e marcante no plano da construção da identidade, De modo algum a
ausência da mãe (designadamente na fase inicial da vida) pode ser suprida pelo
relacionamento com outras mulheres. De modo algum a ausência do pai
(designadamente em caso de separação dos progenitores, ou na fase da
adolescência) pode ser suprida pelo relacionamento com outros homens. Se assim
fosse, poucos danos teria a institucionalização de crianças (danos tantas vezes
invocados pelos partidários da adoção por pares do mesmo sexo), quando esta a
priva do relacionamento com um pai e uma mãe únicos e irrepetíveis, sem a
privar necessariamente do relacionamento com pessoas de ambos os sexos.
Também se alega com frequência que há
crianças educadas (e bem educadas) por um só progenitor. É verdade que muitas
crianças são educadas por um só progenitor. Mas essa não é a situação ideal,
como, mais do que quaisquer outras pessoas, sabem os progenitores que
involuntariamente se veem nessa situação. De qualquer modo, também serão
diferentes a situação de uma criança educada só por uma mãe e a situação de uma
criança educada por duas mães, com o que isto significa de quebra da relação
única e irrepetível com a mãe (“mãe só há
uma”).
Isso mesmo pode responder-se à alegação de
que se a lei vigente não obsta à adoção singular por uma pessoa homossexual,
não se vê por que deverá obstar à adoção conjunta por pares homossexuais (ou à
coadoção). Na perspetiva do bem da criança, pode sempre dizer-se que a adoção
conjunta (por um pai e uma mãe) é preferível à adoção singular
(independentemente da orientação sexual do adotante). E, por outro lado, é
diferente ser reconhecido como filho de um pai ou de uma mãe (independentemente
da orientação sexual destes) e ser reconhecido como filho de dois pais ou duas
mães. Esta é uma questão que não se coloca na adoção singular, mas se coloca na
adoção conjunta e na coadoção (como veremos melhor de seguida).
Uma última questão deve ser salientada.
Independentemente do dado objetivo da
necessidade de um pai e uma mãe para o crescimento harmonioso da criança
adotada, se esta for adotada por pares do mesmo sexo poderá ser encarada
com estranheza pelas outras crianças e pela sociedade em geral, poderá ser
marginalizada ou estigmatizada. As pessoas que assumem publicamente a sua
homossexualidade assumem as consequências negativas (eventualmente injustas)
que daí possam advir no plano da sua imagem social. Estão no seu direito de o
fazer. Mas não têm o direito de forçar crianças a sofrer consequências desse
tipo. As crianças não podem ser transformadas em bandeiras de reivindicações
das pessoas homossexuais. Seria uma forma de as instrumentalizar, e o instituto
da adoção não pode servir para isso.
Pessoas que justamente denunciam a homofobia
(no sentido do desrespeito, discriminação e marginalização das pessoas
homossexuais) ainda presente na nossa sociedade parecem esquecer-se desse
fenómeno quando reivindicam o pretenso direito de adoção por pares
homossexuais. E muitas vezes até invocam a naturalidade com que são encaradas
nas escolas e outros ambientes crianças educadas em uniões homossexuais, que a
todos se apresentam como tendo dois pais ou duas mães. Mas isso significaria
que a homofobia já tinha desaparecido
da nossa sociedade, o que essas mesmas pessoas recusam categoricamente para
outros efeitos.
Este dano para a criança também é agravado com a coadoção. Apresentar-se
como filho de uma pessoa que vive com outra do mesmo sexo (num relacionamento
cuja natureza homossexual até poderá ser deixada ao âmbito da privacidade) é
uma coisa, apresentar-se (com a dimensão pública do registo civil) como filho
de dois pais ou duas mães é, no plano do eventual estigma social (que agora
analisamos, mas também de outros, que adiante analisaremos), outra.
Também se diz, a este respeito, que é a criança que, nestes casos, já
considera ter duas mães, ou dois pais, limitando-se o registo a consagrar isso
mesmo, uma realidade já existente. No entanto, e como é óbvio, nunca é a
criança que espontaneamente passa a considerar como mãe a companheira da mãe
biológica (ou adotiva), ou como pai o companheiro do pai biológico (ou
adotivo). Ela fá-lo, obviamente, porque assim foi ensinada. Ninguém lhe
perguntou a opinião e ninguém lhe deu alternativa.
Aliás, o particular cuidado com o bem da criança que exige qualquer
decisão (legislativa ou judicial) em matéria de adoção, a sempre aconselhável
precaução, e o objetivo de proporcionar à criança uma família igual às outras
(fora de qualquer experimentalismo social), tudo isso tem especial justificação
precisamente porque se trata de uma decisão de adultos em regra (salvo o caso
de crianças maiores de catorze anos, de acordo como disposto no artigo 1981º,
nº 1, a), do Código Civil) sem o consentimento da criança visada
Em
suma, e regressando à questão inicial da exigência da igualdade, não pode em
nome da igualdade dos adultos candidatos à adoção (igualdade em função da
orientação sexual) originar-se uma desigualdade das crianças adotadas (em
função das quais é concebido o instituto da adoção): desigualdade entre, por um
lado, as crianças que são educadas por um pai e uma mãe, e, por outro lado, as
crianças que, deliberada e intencionalmente, são privadas de uma dessas
insubstituíveis figuras.
Os danos da
coadoção em uniões homossexuais na perspetiva do bem da criança
Já acima se salientou que o projeto-lei em
discussão permitirá contornar, também numa perspetiva de futuro, a proibição da
adoção conjunta por pares homossexuais. Não se trata, pois, e apenas, ao
contrário do que vem sendo salientado por proponentes e partidários desse
projeto, de dar proteção jurídica a situações já existentes (até porque, como
já vimos, essa proteção nem sempre é necessária, ou pode ser obtida de outra
forma).
Mas mesmo para situações já existentes de
crianças filhas naturais de uma pessoa que vive numa união homossexual, a
coadoção causa sérios danos à construção da sua identidade psíquica. Não é o
mesmo ser reconhecido como filho de uma pessoa (pai ou mãe) que pode viver com
outra do mesmo sexo e ser reconhecido (com toda a força social e simbólica da
lei e do registo civil) como filho de dois pais (e nenhuma mãe), ou de duas
mães (e nenhum pai).
Para a construção dessa identidade, a criança necessita sempre de um pai
e de uma mãe, mesmo que algum destes exista apenas na sua memória ou na sua
imaginação, exista apenas no plano da sua representação mental. Mas a
eliminação legal de uma dessas duas figuras, com o reconhecimento de dois pais
ou duas mães, vem obstaculizar, artificial e violentamente, a possibilidade
dessa representação mental.
O
pedopsiquiatra e psicanalista françês Christian Flavigny (ouvido pela
Assembleia Nacional francesa a propósito da legalização do casamento e adoção
homossexuais) salienta (em Je veux papa
et maman – «père- et- mère» congédiés par la loi, Salvator, 2013) como a
identidade da criança se constrói a partir da noção de que foi gerada pela
união entre o pai e a mãe. Isso é possível quando ela é adotada por um homem e
uma mulher, que sempre poderiam ser seus pais biológicos, mas nunca quando é
adotada por duas pessoas do mesmo sexo, ou coadotada por uma pessoa do mesmo
sexo do progenitor, que nunca poderiam ser seus pais biológicos, como ela sabe.
Neste caso, a adoção serve de ficção legal falsificadora e geradora de uma
confusão prejudicial à construção dessa identidade. Convenhamos que será difícil
explicar a essa criança (numa nova versão da “história da cegonha”) como é que
na sua origem pode estar uma relação entre pessoas do mesmo sexo…
Vejamos
mais em profundidade o que afirma Christian Flavigny na obra referida:
A
questão da sua origem inquieta a criança desde muito cedo, não como questão
técnica, mas como questão existencial. «Porque
é que eu estou aqui? Será que eu sou uma boa resposta àqueles que me trouxeram
ao mundo? Ele orienta a sua busca para a diferença de sexos dos seus progenitores,
em relação à qual ele sabe ser a chave. É a chave afetiva que lhe interessa;
como é que a diferença dos sexos suscitou a atração entre eles? Esta atração
explica a sua vinda ao mundo; a questão agita o seu desperta afetivo (…)
(pg. 48)
Quando
a criança vive num ambiente homossexual o sentimento dos adultos e a vida
afetiva da criança separam-se; separam-se porque a vida afetiva homossexual é
alheia à geração. A criança sabe bem que a geração entre pessoas do mesmo sexo
é inconcebível (ao contrário da geração entre pais adotivos de sexo diferente).
«É, então, pedido ao progenitor um
esforço de clarificação afetiva no interesse do seu filho; se o seu
companheiro, ou companheira, de vida homossexual não embarcam no estatuto de
segundo progenitor, mesmo que desempenhem o mais precioso dos papéis
educativos, então a criança pode orientar-se na sua situação e não a considerar
consequência de um erro por si cometido, ou um defeito que o tenha atingido. Aí
reside o essencial para a sua vida psíquica; se assim não for, se o progenitor
mistura a ligação ao filho com a sua vida afetiva homossexual, essa orientação
complica-se, a situação da criança baralha-se. E deve acrescentar-se o
seguinte: o caráter desastroso para a criança decorrerá sobretudo da pretensão
das leis de descarregar sobre ela esta baralhação, esta confusão deliberada da
vida afetiva dos adultos que não está na origem da geração e da ligação filial
da criança; assim se opera uma ação funesta para com ela» (pg. 65)
«Toda a criança focaliza a vinda ao mundo das
crianças na união pai-mãe, toda a criança sabe que a união homem-mulher conduz
à vinda ao mundo das crianças, que a geração é menos uma noção biológica do que
psicológica e afetiva. Reclamar a integração do companheiro ou companheira de
vida homossexual enquanto segundo progenitor, é, portanto, forçar pela via
jurídica o que não deriva da vida afetiva.» (pg. 87)
«Se as leis tentam fazer avalizar o
inconcebível, elas frustram a reflexão da criança através de uma legalização
artificial: isso é uma placagem filiativa. Legalizar o segundo progenitor em
união homossexual, é um truque legislativo para satisfazer os adultos; a
criança em questão terá, por causa disso, a sua vida psíquica complicada. È
impor-lhe que acredite no inconcebível; a legalização de uma falsidade que
há-de ser uma armadilha para essa criança.» (pg. 90)
«A
questão não é que uma pessoa homossexual eduque uma ou mais crianças, é impedir
qualquer confusão para a criança envolvida; que um companheiro ou uma
companheira homossexual sejam considerados como um segundo progenitor,
reclamação das associações, falsificaria o vínculo de filiação. É fundamental
para a criança envolvida numa vida relacional dos adultos sem a união pai-mãe,
que permaneçam distintos a sua vida afetiva (homossexual, ou ausente, etc.) e o
vínculo filial com a sua mãe; mais raramente é o seu pai, mas a questão é a
mesma. Infringir isso através de novas leis introduziria uma modificação da
natureza da adoção; ela é concebida como uma forma de geração credível, que
permite à criança estabelecer a sua razão de ser a partir da sua família
adotiva. Abri-la àqueles e àquelas cuja união coloca num beco sem saída a
geração é alterar esse seu princípio básico.» (pg. 96).
Assim,
e em conclusão, independentemente de o projeto-lei em discussão abrir as portas
a resultados equiparáveis aos que resultariam da eliminação da proibição da
adoção conjunta, mesmo para as situações já existentes de crianças com filiação
estabelecida em relação a um dos progenitores que vive numa união homossexual,
a coadoção, longe de beneficiar essas crianças, para elas acarreta graves
danos. Danos que afetam o núcleo essencial do seu direito à identidade pessoal
(artigo 26º, nº 1, da Constituição da República).
Consenso
científico?
Já acima se salientou que a importância de
uma mãe e de um pai sempre foi afirmada pelos estudos de psicologia do
desenvolvimento infantil e só a polémica em torno da adoção por pares homossexuais
deu origem a afirmações contrárias a tal ideia.
Mas não pode ignorar-se a recorrente alusão a
estudos que alegadamente comprovam que as crianças educadas por pares
homossexuais não revelam diferenças ou danos psicológicos particulares em
relação a outras crianças. A American
Psychological Association assumiu tal posição com base numa compilação
desses estudos efetuada em 2005. Há quem fale, por isso, em “consenso
científico” a respeito desta questão.
Pode, porém, e antes de mais, ser contestada a metodologia usada em
muitos desses estudos, tal como a conclusão que deles se retira.
As
razões dessa contestação têm a ver com a pouca representatividade dos números;
o facto de os estudos em causa incidirem, sobretudo, em crianças com laços de
filiação biológica a um dos membros do “casal” (o que não deixa de ser, nalguns
aspetos, diferente de uma adoção conjunta); o facto de se basearem na
comparação entre crianças educadas por pares de lésbicas, por um lado, e
crianças a cargo de mães celibatárias heterossexuais, mas sempre na ausência do
pai, por outro lado; o facto de se fazer a comparação entre, por um lado, um
grupo de pessoas homossexuais de nível social e cultural predominantemente
superior ao da população em geral e, por outro lado, um grupo de pessoas
heterossexuais representativo da população em geral; o facto de as
consequências a mais largo prazo ainda não terem sido estudadas; o facto de os
casos serem selecionados entre militantes do direitos dos homossexuais, e não
de forma aleatória, e de os dados recolhidos assentarem, em grande medida, nas
declarações destes[4];
e o facto de os entrevistados homossexuais conhecerem a agenda política
subjacente ao estudo[5].
Vários desses estudos, baseados nas declarações dos “progenitores”
homossexuais, concluem, até, pela vantagem para as crianças, do comportamento
homossexual por eles assumido, o que naturalmente suscita suspeitas a respeito
da objetividade e imparcialidade desses estudos.
Um estudo que não enferma desses vícios (pela sua extensão, por não
conter distorções de níveis sociais e culturais dos entrevistados, por se
basear em declarações de jovens adultos educados por pares homossexuais, por
comparar estas situações com as de famílias heterossexuais compostas por um pai
e uma mãe não separados), dirigido pelo professor da Universidade do Texas Mark
Regnerous[6], demonstra o contrário. Em quinze de entre quarenta parâmetros de
bem-estar emotivo e relacional, os filhos educados por casais heterossexuais
compostos por um pai e uma mãe não separados apresentam vantagens em relação a
crianças educadas por pares homossexuais.
Que não se verifica alguma espécie de “consenso científico” resulta bem
evidente, por exemplo, da discussão desta questão ocorrida recentemente em
França. Na Assembleia Nacional foram ouvidos psiquiatras, psicólogos e
psicanalistas com opiniões radicalmente diferentes[7]. Vários especialistas nas
áreas da pediatria, da psicologia e da pedopsiquiatria subscreveram o manifesto
Ne touchez pas papa et maman,
publicado no Le Monde, de oposição à adoção por pares homossexuais[8].
Numa situação em que se dividem os peritos, deve reger o princípio da precaução (“mais vale prevenir do que remediar”; há
que “jogar pelo seguro”): porque
há-de prevalecer sempre o bem das crianças candidatas à adoção e porque estas
(que muitas vezes já sofreram suficientes traumas e privações) não podem ser
“cobaias” e objetos de experiências de resultados incertos e arriscados.
Não pode esquecer-se que temos em
confronto, de um lado, uma experiência de milénios no âmbito das culturas mais
variadas (uma experiência que demonstra que o pai e a mãe biológicos são, em
regra, quem de forma mais adequada educa os filhos) e, do outro lado, uma
experiência limitada no número de pessoas envolvidas, no espaço e no tempo.
Uma
última observação se impõe.
Quando
se invoca o pretenso “consenso científico”, parece que se quer, em nome de um
cientismo dogmático, encerrar o debate, como se a Americam Psychologial Association impedisse as sociedades e os
Parlamentos de todo o mundo, de divergir da sua opinião. Ora, não podem ser
canceladas as dimensões antropológica, ética, política e jurídica da questão.
Afirma, a este respeito, Xavier Lacroix (in
La confusion…, cit, pg. 117 e
118): «Os desafios da paternidade, como
os da maternidade, tal como a noção de saúde e de bem- estar, não relevam apenas
do âmbito da verificação; relevam da ética, isto é, da preocupação pelo
crescimento do humano. É, de qualquer modo, paradoxal, aplicar métodos médicos
a questões fundamentais. Refugiar-se por detrás da aparente objetividade do
quantitativo é evitar colocar as questões do sentido e do valor. Há aí uma
opção deliberada segundo a qual qualquer avaliação moral, qualquer julgamento
normativo, surgem como literalmente insuportáveis»
A adoção e a institucionalização das crianças
É também recorrente a alegação de que a
adoção por pares homossexuais será preferível à institucionalização de
crianças, desta forma privadas do precioso afeto de uma família
É enganoso apresentar a adoção por pares
homossexuais como uma solução para a institucionalização de crianças, como se
fosse essa possibilidade a solução para ‘esvaziar’ as instituições que
recolhem crianças abandonadas ou maltratadas. Não há falta de casais heterossexuais
candidatos à adoção e os pares homossexuais candidatos à adoção são em número muito
pouco significativo (bastante inferior ao do próprio universo dos pares
homossexuais).
O problema da institucionalização de
crianças poderia ser debelado, não com a abertura à adoção por pares homossexuais,
mas com o esforço de superar a seletividade revelada pelas intenções de muitos
dos candidatos a adotantes, que pretendem apenas a adoção de crianças
recém-nascidas, saudáveis e da mesma raça que eles. Esse esforço passa por uma
maior generosidade dos candidatos, mas também por mais apoios a estes. Nada tem
a ver com a adoção por pares homossexuais.
A necessidade de evitar a
institucionalização de crianças não pode levar a prescindir da exigência dos
requisitos da adoção, como se a adoção em quaisquer condições fosse sempre
preferível à institucionalização de crianças. A adoção não pode ser apenas um mal menor para a criança, tem de ser um bem para ela. As crianças mais
problemáticas, que mais privações sofreram e sofrem, carecem, ainda mais do que
as outras, de um crescimento harmonioso e equilibrado, para o que são
importantes um pai e uma mãe.
De qualquer modo, a reivindicação da
possibilidade de adoção por pares homossexuais nunca é apresentada como um
último recurso para evitar a institucionalização de crianças, a considerar
apenas quando a adoção por casais heterossexuais não fosse possível. É sempre
apresentada como um direito das pessoas em uniões homossexuais em pé de
igualdade com os casais heterossexuais. Assim, de acordo com essa reivindicação,
nunca seria possível, na adoção de uma criança, com o fundamento de que tal
seria por si só melhor para ela, dar preferência a um casal formado por um pai
e uma mãe em relação a uma união formada por dois pais ou duas mães.
Jurisprudência
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Tem
sido recentemente invocado, com insistência, em apoio da possibilidade de
coadoção em uniões homossexuais, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem proferido no caso X e outros contra
Áustria (1901/07)[9], onde se considerou
contrário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem o regime austríaco que, em
matéria de coadoção, distingue as situações de uniões de sexo diferente e
uniões do mesmo sexo, e em cuja fundamentação se faz uma referência expressa a
Portugal como um dois países onde vigora o mesmo tipo de discriminação alegadamente
contrária a tal Convenção.
Deve,
porém considerar-se o seguinte.
O
acórdão em questão produz efeitos apenas no caso concreto nele apreciado e não
corresponde a uma jurisprudência uniforme. Contém sete votos de vencido (contra
nove favoráveis), sendo particular motivo de divergência o facto de a coadoção aí
em causa, pela companheira da mãe biológica, fazer cessar os vínculos com o pai
biológico, que está vivo e nunca deixou de cumprir os seus deveres de alimentos
para com o filho (situação que não encontraria cobertura no regime proposto
pelo projeto-lei em apreço, que exclui a coadoção quando estão vivos ambos os
progenitores naturais).
O acórdão não corresponde a uma
jurisprudência uniforme porque podem ser invocados outros em sentido contrário.
Assim, o acórdão, também recente (de 15 de março de 2012) proferido no caso Gas Dubois contra França (25951/07)[10]. Neste,
o Tribunal não considerou contrário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
o regime, então vigente em França, que negou a possibilidade de coadoção à
companheira de uma mulher que havia recorrido à procriação artificial na
Bélgica (sendo que tal recurso não era admitido pela lei francesa). Uma
situação semelhante a outras, já acima referidas, não permitidas pela lei
portuguesa vigente e a que o projeto-lei em apreço abre as portas, como vimos.
Em
suma, também não foi o acórdão proferido no caso X e outros contra Áustria que encerrou este debate.
O regime da procriação artificial, o
próximo passo?
Com
acima se salientou, o projeto-lei em apreço abre a porta à possibilidade de
recurso por uma mulher homossexual à procriação artificial num país estrangeiro
onde tal seja legal, seguido da coadoção pela companheira. Neste caso, a fraude
à lei (a obtenção de um efeito não querido pelo legislador sem violação direta
da lei, deixando que «entre pela janela
aquilo a que se fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não
quis ao proibir a adoção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a
procriação artificial fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim
é, e porque é evidente que outro passo da estratégia global a que assistimos
também passa pela abolição desta proibição, justifica-se que se faça uma
referência a esta proposta.
Já
foram apresentados entre nós projetos-lei de alteração da regulação da
procriação medicamente assistida, no sentido de garantir o acesso a essa
técnica a mulheres sós ou numa relação homossexual, independente do diagnóstico
de infertilidade. Essa proposta chegou a ser saudada por representar uma quebra
da «desigualdade ancestral que reduz as
mulheres a apêndices dos homens»[11], isto é, a que exige
necessariamente o contributo destes para a procriação.
O
alcance antropológico e ético da alteração proposta merece atenção e
aprofundamento.
Na
verdade, não se verifica uma desigualdade a este respeito. A natureza colocou,
neste aspeto, homens e mulheres em estrito pé de igualdade: as mulheres não
procriam sem os homens, mas os homens também não procriam sem as mulheres.
Ninguém é mãe sozinha e ninguém é pai sozinho. Não se trata de um desígnio a
corrigir ou anular, como se não tivesse sentido. Cada um dos sexos não pode
deixar de reconhecer, assim, a importância do outro. Assim se exprime a
estrutural relacionalidade da pessoa humana, que se realiza na comunhão com o
outro. Essa comunhão está na origem da vida a partir da unidade da diversidade
mais elementar: a que distingue homens e mulheres. Da riqueza da dualidade
sexual nasce a vida. Associar a geração da vida à comunhão e ao amor (a vida é
fruto do amor e o do amor nasce a vida), e à riqueza da dualidade sexual, não é
um “engano” da natureza, mas um desígnio maravilhoso a aceitar e acolher.
A
alteração proposta pretende consagrar uma visão radicalmente diferente: a
procriação como instrumento de realização de um projeto individual, e não
relacional. O filho tende, assim, muito mais, a ser encarado como espelho do
único progenitor, e já não como dom a acolher na sua alteridade e unicidade.
Passa a ser visto como objeto de um direito que se reivindica. É o “direito à parentalidade” que está em
jogo - afirma-se em defesa da proposta em questão.
A
procriação medicamente assistida tem sido encarada, à luz da lei vigente (que
não deixa de ser também merecedora de críticas, por outras razões) como forma
de suprir a infertilidade, não como simples alternativa à procriação natural
(ver artigo 4º da Lei nº 32/2006, de 26 de julho). Não é (como, num plano
semelhante, não o é a adoção) um instrumento de “experimentalismo social” ou de “engenharia
social” ao serviço de “novas formas
de família”. A criança gerada através de procriação medicamente assistida,
como a criança adotada, tem o direito a uma família como as outras, a uma
família tanto quanto possível próxima da que tem origem na procriação natural.
Não
se trata de impor um modelo de família ou uma forma de encarar a maternidade.
Trata-se de dar primazia ao bem do filho, que não pode ser coisificado como objeto de um direito. Não há um direito ao filho; o filho é um dom. O bem do filho exige que ele seja
fruto de uma relação, e não de um projeto individual. E exige que ele não seja
intencionalmente privado de uma mãe ou de um pai. É ele que tem direito, não
tanto a um progenitor indiferenciado (como pretende a ideologia do género, ao pretender que se fale em “parentalidade”), mas a uma mãe e a um
pai, por todas as razões acima indicadas.
O
que se propõe é que da procriação artificial nasçam crianças sem pai (sempre
haverá um pai genético, necessariamente anónimo, mas apenas isso), já não por
acidente inevitável, mas de forma intencional e programada.
O
projeto-lei em apreço, não sendo relativo ao regime da procriação artificial,
vem, por via indireta e como vimos, facilitar e incentivar o recurso, (ainda)
proibido à face da legislação portuguesa, a tais técnicas fora do âmbito do
objetivo de suprimento de situações patológicas de infertilidade. Tais técnicas
deixam de ser (contra o que pretende a lei vigente- ver o referido artigo 4º da
Lei nº 32/2006) um método subsidiário de procriação e passam a ser um método
alternativo de procriação.
Numa
fase seguinte, pretender-se-á que homens homossexuais possam recorrer à
maternidade de substituição para que nasçam crianças sem mãe (ou com uma mãe a
quem é, de forma violenta e desumana, negada a maternidade por imposição
contratual e legal). Ainda não foram apresentados em Portugal projetos nesse
sentido (foram apenas no sentido de por essa via ser suprida uma situação
patológica de infertilidade), mas tal passo já foi dado noutros países.
Todos
estes passos vão no sentido da instrumentalização do filho como objeto de um
pretenso “direito à parentalidade”. O
que contraria o princípio da dignidade da pessoa humana em que assenta a
República portuguesa (artigo 1º da Constituição).
Pedro Maria Godinho Vaz Patto
[2] in Nouvelle Cité, nº560, março-abril 2013, pg. 25.
[3]
in L´Osservatore Romano, 4-5/2/2013.
[4] Afirma a propósito Xavier
Lacroix (in La confusion des genres –
Réponses à certaines demandes homosexuelles sur le mariage et l´adoption;
Bayard, Paris, 2005, pg 111), citando Caroline Eliacheff in «Malaise dans la psychanalyse», Esprit nº 273, março-abril 2001, pg. 74,
que quando se sabe que um médico não pode emitir um certificado de aptidão para
a prática desportiva sem ter examinado a criança, «é de espantar a liberdade que tomam os investigadores norte-americanos
de dizer o que quer que seja sobre crianças que nunca viram».
[5] Ver, a respeito destas falhas metodológicas, Loren
Marks, «Same sex parenting and children´s outcomes: a closer examination of the
Americam Psychological Association´s brief on lesbian and gay parenting», in Social Science Research, vol. 41, 4,
julho de 2012, pgs. 735-751 (especificamente sobre os estudos invocados pela American Psychological Association);
Richard Fitzgibbons, «Same sex adoption is not a game», in www.mercatornet.com, 18/11/2011; e Xavier Lacroix, La confusion…, cit., pgs 109 a 118.
[6] «How different are the adult children of
parents who have same-sex relationships. Findings from the New Family Structures» in Study Social Science Research vol 41,
4, julho 2012, pgs,752-770, acessível em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0049
089 X12000610)
[7]
ver www.la-croix.com,
16/11/2012
[8]
Ver www.avvenire.it., 26/4/2013
[9]
Acessível em in http://hudoc.echr.coe.int.
[10]
Também acessível em in http://hudoc.echr.coe.int.
[11]
São José Almeida in Público de
24/12/2011.