20. 12. 2013
Casado há 35 anos tinha uma
ranchada de filhos que eram o seu orgulho, o seu tesouro. Sentia-se profundamente
reconhecido à sua mulher a quem amava mais do que a si mesmo, tal como Cristo
que deu a vida pela Sua esposa, a Igreja. Ela era o seu fascínio, aquela que o
fazia sair de si mesmo, que o centrifugava e o arrojava para as ignotas e
aventurosas periferias, a que nunca se aventuraria por si mesmo e onde se prodigalizava
derramando-se em generosidades que pensaria não só improváveis mas mesmo impossíveis.
Era um milagre! Já há muitos anos, quando ainda era noivo, um Padre a quem
tinha feito uma confissão geral, num santuário internacional, lhe dissera
exactamente isso: “Tu, és um milagre!!”.
Tempos houve na sua juventude em
que tinha renegado a Fé na qual tinha sido baptizado, educado e crescido, tanto
em família como na Paróquia e nos colégios que frequentara. Esta abjuração fora
precedida, acompanhada e seguida de influências emburrecidas, abestalhadas,
mesmo malignas, quer por companhias quer por leituras a que então não poucos
prestavam uma veneração imbecil; e, pior ainda, pelos pecados multiplicados, não
só correspondentes como excedentes das bestiagas que acenderam o rastilho
daquela explosão bronca e demoníaca. “Desprogramou-se” então a si mesmo de modo
a desmanchar sofregamente a sua identidade como pessoa, que tinha recebido do
Criador ao ser gerado (a Moral Natural, segundo a razão), e a expulsar as
Graças que lhe tinham sido comunicadas, ao longo dos anos, principalissimamente,
pelos Sacramentos, mas também pelo ambiente familiar e colegial.
Esse frenesim vertiginoso a que
se entregara era pois uma inversão inteira – a generosidade transformou-se em
latrocínio; a castidade em promiscuidade, a luxúria mulheril em verriondez com
machos quase tão lúbricos como ele; a sobriedade mutou-se em embriaguez
quotidiana; o amor familiar em ódio entranhado; a Fé em esoterismos e
ocultismos diabólicos; a modéstia numa soberba desmedida; a adoração a Deus em
idolatria de si mesmo, ávida de sequazes fanáticos que lhe prestassem latria, não
se coibindo de recorrer ao hipnotismo para subjugar as mentes e vontades
alheias, subjugando-as aos seus propósitos luciferinos.
Um viripotente mulherico, por ele
totalmente dominado, satisfazia-lhe, quando mais ninguém estava disponível, várias
vezes ao dia, a sua volúpia libidinosa e desenfreada. Ora, os pais dessa vítima
corrompida, tinham em casa, onde às suas ocultas sucediam estas orgias
asquerosas, um quadro a cores do Sagrado Coração de Jesus. Era uma daquelas cópias
de uma pintura ou desenho que se encontram às centenas senão mesmo aos milhares
espalhados pelos lares cristãos das gentes pobres deste país. Enfim, uma possidoneira
intolerável para quem tinha sido educado segundo os padrões estéticos próprios
dos mais sofisticados museus e Catedrais. E, no entanto, tinha dificuldade em
evitar aquela doçura mansa e humilde que se lhe apresentava à vista quando
distraidamente calhava pousar o olhar naquela gravura. Incomodado com aquele
esguardo, cravava então num desafio rebelde, insubmisso, os seus olhos naqueles
olhos, provocatoriamente desfiando mentalmente afrontas, impropérios, mesmo blasfémias.
Para seu enorme espanto e desconcerto aqueles olhos que pareciam verdadeiramente
vivos conservavam, ou melhor, como que intensificavam o Seu amor por ele. E
isto permaneceu ao longo de muitos meses, pelo menos de um par de anos. Supunha
então que aquele quadro aparentemente reprodução de tantos outros
manifestamente pirosos tinha sido dotado, por algum artista matreiro e gerigoto,
de subtilezas magnéticas destinadas a endrominar as almas simples e incautas.
Sucedeu, entretanto, que uma cascata
de acontecimentos galopantes totalmente imprevisíveis, como se se tratara de um
Misterioso desígnio, ou “conspiração”, sobrenatural, o reconduzira a Deus, a
Jesus Cristo, à Virgem Maria, à Igreja. Sentiu-se e soube-se completamente
renovado e restaurado pelos Sacramentos da Confissão e da Eucaristia – matara o
“homem velho” e renascera o “homem novo”. Quase sem se dar conta foi
transformado num ardente apóstolo (enviado) arrebatando, para sua grande confusão,
uma multidão de almas ao demónio e ganhando-as para Jesus Cristo. Foi
transfigurado numa brasa, num engatatão fascinante, num sedutor, não como antes,
que o fora primeiro de moças e depois de mancebos, mas de almas para Cristo.
Por engano, confundindo-a com a recente
namorada, que mal conhecia, de um amigo, acolheu exuberantemente uma jovem vinda
em camioneta de um retiro. Esse equívoco passageiro foi porém suficiente para
se deixar encantar por aquela fádica imprevista que correspondeu efusivamente ao
seu acolhimento festivo. Depois veio uma amizade que prestes se tornou namoro,
mais tarde em noivado e veio a dar em casamento. Este foi abençoado com uma
fecundidade abundante patente não só nos oito filhos gerados mas também na
influência benigna exercida sobre os amigos deles, e na repartição generosa de
bens espirituais e materiais por todos aqueles necessitados que podiam
socorrer.
Tinham passado dez anos das bodas
de prata, celebradas pelo Padre que tinha presidido ao seu matrimónio, quando alguns
dias antes do Natal foi convidado com os seus para um jantar em casa daquela
família que tinha numa das divisões o quadro, acima referido, representando o
Sagrado Coração de Jesus. Os pais do seu antigo amigo e vítima, felizmente também
ele recuperado em Cristo para a sua verdadeira humanidade, já tinham sido
chamados à presença do Senhor. Os cinco irmãos com as famílias respectivas
estavam todos. A anfitriã era a irmã mais nova, a única que quis ficar com a casa.
Ficou contente ao ver um grande e maravilhoso presépio musgoso que dava o tom
ao tempo que se celebrava. O Menino Jesus, desproporcionadamente grande em
relação a todas as outras figuras, olhava-os de braços abertos, como que a
pedir colo. Durante os aperitivos pretextando uma lavagem das mãos dirigiu-se
em direcção à casa de banho que ficava perto do quarto onde estava dependurada
a imagem. Acendeu a luz, olhou-a, nela atentou, remirou-a de ângulos e
perspectivas diferentes, observou-a novamente. Não havia dúvida, não passava de
uma reprodução igualzinha a milhares de outras disseminadas pelos casarios
deste pequeno país. O olhar não tinha nada de especial, não havia doçura ou
amor particular nem tinham a vida que neles topara tão repetidamente tantos
anos antes - aquela Vida que, apesar da sua recusa obstinada em aceitá-la,
teimou em derramar o Seu Amor sobre ele…
Regressado à sala, a mulher
espantada do seu ar absorto e macambúzio dá-lhe uma ligeira cotovelada e
dispara: que tens tu para estares assim tão demudado? Ainda agora estavas tão
alegre e extrovertido…
- Não é nada, filha, adiantou ele
forçando um sorriso. Só que me dói um pouco a cabeça, deve ser deste ar pesado.
Isto já passa.
No seu alheamento, chegada a hora
da refeição, deixou-se ficar para trás contemplando o presépio. No peito do
Menino surgiu num repente um coração abrasado em fogo vivo, palpitando de amor,
e os Seus olhos faiscaram uma enorme benignidade. Estremecendo de alegria
pensou é o Senhor! Foi também Ele então para me preparar para o Seu renascimento,
o Seu Natal em mim.