sábado, 7 de abril de 2012

Homilia Bento XVI na Vígília Pascal (2012)

Queridos irmãos e irmãs!

A Páscoa é a festa da nova criação. Jesus ressuscitou e nunca mais morre. Arrombou a porta que dá para uma nova vida, que já não conhece doença nem morte. Assumiu o homem no próprio Deus. «A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus»: dissera São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (15, 50). E todavia Tertuliano, escritor eclesiástico do século III, a propósito da ressurreição de Cristo e da nossa ressurreição, não temera escrever: «Tende confiança, carne e sangue! Graças a Cristo, adquiristes um lugar no Céu e no Reino de Deus» (CCL II, 994). Abriu-se uma nova dimensão para o homem. A criação tornou-se maior e mais vasta. A Páscoa é o dia duma nova criação, mas por isso mesmo, neste dia, a Igreja começa a liturgia apresentando-nos a criação antiga, para aprendermos a compreender bem a nova. E assim, na Vigília Pascal, a Liturgia da Palavra começa pela narração da criação do mundo. A propósito desta e no contexto da liturgia deste dia, são particularmente importantes duas coisas. Em primeiro lugar, a criação é apresentada como uma totalidade da qual faz parte o fenômeno do tempo. Os sete dias são imagem duma totalidade que se desenvolve no tempo, aparecendo os dias ordenados até ao sétimo, o dia da liberdade de todas as criaturas para Deus e de umas para as outras. Por conseguinte, a criação está orientada para a comunhão entre Deus e a criatura; a criação existe para que haja um espaço de resposta à glória imensa de Deus, um encontro de amor e liberdade. Em segundo lugar, na Vigília Pascal, a Igreja fixa a atenção sobretudo na primeira frase da narração da criação: «Deus disse: “Faça-se a luz”!» (Gn 1, 3). Emblematicamente, a narração da criação começa pela criação da luz. O sol e a lua são criados somente no quarto dia. A narração da criação designa-os como fontes de luz, que Deus colocou no firmamento do céu. Deste modo, priva-os propositalmente do caráter divino que as grandes religiões lhes tinham atribuído. Não! Não são deuses de modo algum; são corpos luminosos, criados pelo único Deus. Entretanto já os precedera a luz, pela qual a glória de Deus se reflete na natureza do ser que é criado.

Que pretende a narração da criação dizer com isto? A luz torna possível a vida; torna possível o encontro; torna possível a comunicação; torna possível o conhecimento, o acesso à realidade, à verdade. E, tornando possível o conhecimento, possibilita a liberdade e o progresso. O mal esconde-se. Por conseguinte, a luz aparece também como expressão do bem, que é luminosidade e cria luminosidade. É de dia que podemos trabalhar. O fato de Deus ter criado a luz significa que Ele criou o mundo como espaço de conhecimento e de verdade, espaço de encontro e de liberdade, espaço do bem e do amor. A matéria-prima do mundo é boa; o próprio ser é bom. E o mal não vem do ser que é criado por Deus, mas existe em virtude da sua negação. É o «não».

Na Páscoa, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Deus disse novamente: «Faça-se a luz!». Antes tinham vindo a noite do Monte das Oliveiras, o eclipse solar da paixão e morte de Jesus, a noite do sepulcro. Mas, agora, é de novo o primeiro dia; a criação recomeça inteiramente nova. «Faça-se a luz!»:     disse Deus. «E a luz foi feita». Jesus ressuscita do sepulcro. A vida é mais forte que a morte. O bem é mais forte que o mal. O amor é mais forte que o ódio. A verdade é mais forte que a mentira. A escuridão dos dias anteriores dissipou-se no momento em que Jesus ressuscita do sepulcro e Se torna, Ele mesmo, pura luz de Deus. Isto, porém, não se refere somente a Ele, nem se refere apenas à escuridão daqueles dias. Com a ressurreição de Jesus, a própria luz é novamente criada. Ele atrai-nos a todos, levando-nos atrás de Si para a nova vida da ressurreição e vence toda a forma de escuridão. Ele é o novo dia de Deus, que vale para todos nós.

Mas isto, como pode acontecer? Como é possível chegar tudo isto até nós, de tal modo que não se reduza a meras palavras, mas se torne uma realidade que nos envolve? Por meio do sacramento do Batismo e da profissão da fé, o Senhor construiu uma ponte até nós, pela qual o novo dia nos alcança. No Batismo, o Senhor diz a quem o recebe: Fiat lux – faça-se a luz. O novo dia, o dia da vida indestrutível chega também a nós. Cristo toma-te pela mão. Daqui para a frente, serás sustentado por Ele e assim entrarás na luz, na vida verdadeira. Por isso, a Igreja antiga designou o Batismo como «photismos – iluminação».

Porquê? A escuridão que verdadeiramente ameaça o homem é o fato de que ele é, na verdade, capaz de ver e investigar as coisas palpáveis, materiais, mas não vê para onde vai o mundo e donde o mesmo venha; para onde vai a sua própria vida; o que é o bem e o que é o mal. Esta escuridão acerca de Deus e a escuridão acerca dos valores são a verdadeira ameaça para a nossa existência e para o mundo em geral. Se Deus e os valores, a diferença entre o bem e o mal permanecem na escuridão, então todas as outras iluminações, que nos dão um poder verdadeiramente incrível, deixam de constituir somente progressos, mas passam a ser simultaneamente ameaças que nos põem em perigo a nós e ao mundo. Hoje podemos iluminar as nossas cidades de modo tão deslumbrante que as estrelas do céu deixam de ser visíveis. Porventura não temos aqui uma imagem da problemática que toca o nosso ser iluminado? Nas coisas materiais, sabemos e podemos incrivelmente tanto, mas naquilo que está para além disto, como Deus e o bem, já não o conseguimos individuar. Para isto serve a fé, que nos mostra a luz de Deus, a verdadeira iluminação: aquela é uma irrupção da luz de Deus no nosso mundo, uma abertura dos nossos olhos à verdadeira luz.

Por fim, queridos amigos, queria ainda acrescentar um pensamento sobre a luz e a iluminação. Na Vigília Pascal, a noite da nova criação, a Igreja apresenta o mistério da luz com um símbolo muito particular e humilde: o círio pascal. Trata-se de uma luz que vive em virtude do sacrifício: a vela ilumina, consumindo-se a si mesma; dá luz, dando-se a si mesma. Este é um modo maravilhoso de representar o mistério pascal de Cristo, que Se dá a Si mesmo e assim dá a grande luz. Uma segunda idéia, que a reflexão sobre luz da vela nos sugere, deriva do fato de a mesma ser fogo. Ora, o fogo é força que plasma o mundo, poder que transforma; e o fogo dá calor. E aqui se torna novamente visível o mistério de Cristo: Ele, a luz, é fogo; é chama que queima o mal, transformando assim o mundo e a nós mesmos. «Quem está perto de Mim, está perto do fogo»: assim reza um dito de Jesus, que nos foi transmitido por Orígenes. E este fogo é ao mesmo tempo calor: não uma luz fria, mas uma luz na qual vêm ao nosso encontro o calor e a bondade de Deus.

O Precónio, o grande hino que o diácono canta ao início da Liturgia Pascal, de modo muito discreto chama a nossa atenção ainda para outro aspecto. Lembra-nos que o material do círio se fica a dever, em primeiro lugar, ao trabalho das abelhas; e, assim, entra em cena a criação inteira. No círio, a criação torna-se portadora de luz. Mas, segundo o pensamento dos Padres, temos aí também uma alusão implícita à Igreja. Nesta, a cooperação da comunidade viva dos fiéis é parecida com o trabalho das abelhas; constrói a comunidade da luz. Assim podemos ver, no círio, também um apelo dirigido a nós mesmos e à nossa comunhão com a comunidade da Igreja, que existe para que a luz de Cristo possa iluminar o mundo.

Neste momento, peçamos ao Senhor que nos faça sentir a alegria da sua luz, de modo que nós mesmos nos tornemos portadores da sua luz, para que, através da Igreja, o esplendor do rosto de Cristo entre no mundo (cf. LG 1).

A Condecoração de Pilatos

Os partidos dos sacerdotes, dos escribas, dos saduceus e o dos fariseus, com honrosas excepções, decidiram, com o apoio de grande parte do povo, a morte de um Inocente. Mas ela não podia ser executada sem a promulgação de Pôncio Pilatos. Este, reconhecendo embora a inocência de Jesus Cristo, depois de lavar as mãos em gesto de autojustificação, promulga a sentença de morte. O Inocente é torturado com extremos de crueldade, padece a via-sacra, sofre a crucifixão, é morto, depois lanceado no coração e finalmente sepultado, antes das 18h de sexta-feira. Tudo isto nos é relato nos Evangelhos. Mas, como sabemos, e o afirma o Evangelho segundo S. João, eles não nos relatam tudo quanto aconteceu, pois para isso seria necessário um número infindável de livros.

Assim, e à luz, do que conhecemos dos nossos dias e da sua mentalidade reinante, podemos, com plausibilidade, supor que no sábado Pilatos se tenha resolvido, quiçá por influência de sua mulher, a condecorar a Virgem Santa Maria, S. Pedro e os demais Apóstolos. Isto, como reafirmo, tem ares de verossimilhança, tendo em conta aquilo a que a hoje assistimos, e também que a natureza humana, apesar do decorrer da história, não sofre mutabilidade. O que já se me afigura inconcebível, apesar, como é do conhecimento público, da minha fantasia febril e alucinada, é que qualquer uma destas Santas personagens aceitasse a insígnia. Pelo contrário, imagino a possibilidade de serem tomados de uma santa ira, como a de Jesus quando expulsou os vendilhões do Templo ou quando polemizava com os judeus que não acreditavam n’ Ele. Sim!, Jesus era mesmo muito polémico. Só quem não leu os Evangelhos de fio-a-pavio, em particular o segundo S. João, é que pode ignorar esta verdade tão patente.

Mas afinal que é isso a que assistimos, que conhecemos nos tempos que correm? A interrogação é meramente retórica, uma vez que está à vista de todos os portugueses: os partidos dos socialistas, dos comunistas, dos bloquistas e não poucos sociais-democratas e centristas conjurados com grande parte do povo decidiram que se podia executar à morte qualquer pessoa inocente até às 10 semanas de idade, por dá cá aquela palha. Mas esta matança sistemática e organizada não podia ser levada a cabo sem o aval do presidente da república. Aníbal Cavaco Silva, sabendo embora da total inocência e inermidade das diminutas crianças nascituras, promulgou a mortandade geral e arbitrária daqueles de quem Jesus Cristo disse: “Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes.”.  Jesus é pois de novo, e com extremos de impiedade maligna, condenado à tortura imisercordiosa e à morte injusta, sanguinária e atroz.

Toda a pessoa que é gerada o é não principalmente pelo intercâmbio conjugal de seus pais mas por um acto de Deus Criador com o qual os progenitores cooperam. Neste sentido todos somos filhos de Deus porque Suas criaturas. Mas a Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) não é só a nossa origem mas também o nosso destino. Isto é, Deus que é Amor quer-nos, convida-nos, vocaciona-nos e assiste-nos, a todos, para que sejamos ou venhamos a ser Seus filhos num sentido mais profundo e radical tornando-nos participantes da Sua Divindade e da Sua glória.

Assim como a sempre Virgem Maria concebeu e deu à luz o Deus Filho, por virtude do Espírito Santo, que d’ Ela tomou a nossa humanidade de modo semelhante a Igreja acolhendo no seu seio a Palavra, o Verbo de Deus (Jesus Cristo) e o Seu Espírito gera novos filhos de Deus. Que esta Mãe, a Igreja, admita receber uma distinção daquele que tornou possível, cumpliciando-se, a carnificina de tantos cristos é caso para enorme perplexidade e grande espanto. A Igreja é hoje representada, pelos sucessores dos Apóstolos. Em Portugal esses sucessores são o Cardeal Patriarca de Lisboa e os demais Bispos que compõem a Conferência Episcopal. Os nossos Bispos a aceitarem que a Rádio Renascença, propriedade dos sucessores dos Apóstolos, que se apresenta a si mesma como “a emissora católica portuguesa”, seja condecorada pelo presidente da república estão a agir de um modo contrário ao dos Apóstolos. De facto, as distinções ou comendas que estes apreciavam e nas quais se regozijavam eram as flagelações, as lapidações e todo o género de perseguições e martírios.

Tanta coisa podre, em todos os estados, neste reino de Portugal…

Nuno Serras Pereira
07. 04. 2012

"Passar de espectador à ator" - por P. Raniero Cantalamessa

CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 06 de abril de 2012 (ZENIT.org) - Publicamos o texto integral da pregação do padre Raniero Cantalamessa, O.F.M. Cap., pregador da Casa Pontifícia, nesta Sexta-Feira Santa 2012, realizada na Basílica de São Pedro.

Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap.

"Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos”
(Apocalipse 1,18)

Alguns Padres da Igreja colocaram numa imagem todo o mistério da redenção. Imagina, dizem, que aconteceu, no estádio, uma luta épica. Um herói enfrentou o cruel tirano que escravizava a cidade e, com enorme esforço e sofrimento, o venceu. Você estava na arquibancada, não lutou, não se esforçou e nem teve feridas. Mas, se você admira o herói, se se alegra com ele pela vitória, se tece-lhe uma coroa, se anima e exalta a platéia por ele, se se ajoelha com alegria diante do vencedor, beija a sua cabeça e aperta a sua mão direita; em suma, se tanto se exalta por ele, a tal ponto de considerar como sua a vitória dele, eu lhe digo que você terá com certeza parte no prêmio do vencedor.

E tem mais: suponha que o vencedor não tenha nenhuma necessidade do prêmio que conquistou para si, mas que deseje, mais do que qualquer outra coisa, ver o seu admirador honrado e considere que o prêmio da sua luta seja a coroação do seu amigo, em tal caso aquele homem não terá talvez a coroa, mesmo sem ter lutado e sem ter feridas? Claro que vai! (Nicola Cabasilas, Vita in Christo, I, 9 (PG 150, 517).

Dessa forma, dizem esses Padres, acontece com Cristo e conosco. Ele, na cruz, derrotou seu antigo adversário. “As nossas espadas – exclama São João Crisóstomo – não estão sujas de sangue, não estivemos na arena, não temos lesões, nem sequer vimos a batalha, e eis que temos a vitória. Sua foi a luta, nossa a coroa. E porque também nós vencemos, imitemos o que os soldados fazem nesse caso: com vozes de alegria exaltemos a vitória, entoemos hinos de louvor ao Senhor” (S. João Crisóstomo, De coemeterio et de cruce; PG, 49, 596). Não poderia ser explicado melhor o significado da liturgia que estamos celebrando.

***

Mas o que estamos fazendo é, em si, uma imagem, a representação de uma realidade passada, ou é a própria realidade? Ambas as coisas! "Nós – dizia Santo Agostinho ao povo – sabemos e acreditamos com fé certíssima que Cristo morreu só uma vez por nós [...]. Sabeis perfeitamente bem que tudo isto foi feito apenas uma vez e ainda assim a solenidade periodicamente o renova [...]. Verdade histórica e solenidade litúrgica não estão em contradição entre si, como se a segunda fosse falácia e somente a primeira correspondesse à verdade. Do que a história afirma ter acontecido uma só vez na realidade, a solenidade renova muitas vezes a celebração nos corações dos fiéis” (S. Agostinho, Sermone 220; PL 38, 1089).

A liturgia "renova" o evento: quantas discussões, durante cinco séculos até hoje, sobre o sentido desta palavra, especialmente quando é aplicada ao sacrifício da cruz e à Missa! Paulo VI usou um verbo que poderia pavimentar o caminho para uma compreensão ecumênica sobre tal argumento: o verbo “representar”, compreendido no sentido forte de reapresentar, ou seja tornar novamente presente e operante o acontecido”( Cf Paolo VI, Mysterium fidei (AAS 57, 1965, p. 753 ss).

Há uma diferença substancial entre a representação da morte de Cristo e aquela, por exemplo, da morte de Júlio César na tragédia homônima de Shakespeare. Ninguém assiste, estando vivo, o aniversário da própria morte; Cristo sim, porque ressuscitou. Somente Ele pode dizer, como faz no Apocalipse: "Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos” (Ap 1,18). Devemos ter cuidado neste dia, visitando os chamados "sepulcros" ou participando nas procissões do Cristo morto, de não merecermos a censura que o Ressuscitado dirigiu às piedosas mulheres na manhã de Páscoa: "Por que procurais Aquele que vive entre os mortos?" (Lc 24,5).

É uma afirmação ousada, mas verdadeira aquela de certos autores ortodoxos. “A anamnese, ou seja, o memorial litúrgico, faz o evento mais verdadeiro do que quando aconteceu historicamente pela primeira vez". Em outras palavras, mais real e verdadeiro para nós que o revivemos “segundo o Espírito”, do que para aqueles que o viveram "segundo a carne", antes que o Espírito Santo revelasse à Igreja o pleno significado.

Não estamos apenas comemorando um aniversário, mas um mistério. É ainda Santo Agostinho que explica a diferença entre as duas coisas. Na celebração “à maneira de aniversário”, não se pede outra coisa – diz – mais do que “indicar com uma solenidade religiosa o dia do ano no qual cai a lembrança do mesmo acontecimento”; na celebração a modo de mistério (“em sacramento”), “não somente se comemora um acontecimento, mas é feito também de tal forma que se entenda o seu significado e seja acolhido santamente” (Agostinho, Epistola 55, 1, 2; CSEL 34, 1, p. 170)

Isso muda tudo. Não se trata somente de assistir a uma representação, mas de “acolher” o significado, de passar de espectador à ator. Cabe a nós portanto escolher qual parte queremos representar no drama, quem queremos ser: se Pedro, se Judas, se Pilatos, se a multidão, se o Cireneu, se João, se Maria ... Ninguém pode permanecer neutro; não tomar partido, é tomar um bem preciso: aquele de Pilatos que lava as mãos, ou da multidão que de longe "permanecia lá, a olhar " (Lucas 23, 35).

Se voltando para casa, nesta tarde, alguém nos perguntar: "De onde vens? Onde estivestes?", respondamos, portanto, pelo menos em nossos corações: "No Calvário!"

***

Mas nada disso acontece automaticamente, só porque participamos nesta liturgia. Trata-se, dizia Agostinho, de “acolher” o significado do mistério. Isto acontece com a fé. Não há música, onde não há um ouvido que a escute, por mais que a orquestra toque forte; não há graça, onde não há uma fé que a acolha.

Numa homilia de Páscoa do século IV, o bispo pronunciava estas palavras surpreendentemente modernas e, por assim dizer, existenciais: "Para cada homem, o princípio da vida é aquele, a partir do qual Cristo foi imolado por ele. Mas Cristo é imolado por ele quando ele reconhece a graça e se torna consciente da vida que lhe foi dada por aquela imolação”(Homilia pascal do ano 387; SCh 36, p. 59 s.)

Isso aconteceu sacramentalmente no Batismo, mas deve sempre acontecer conscientemente de novo na vida. Devemos, antes de morrer, ter a coragem de fazermos um golpe de audácia, quase como um golpe de mão: apropriar-nos da vitória de Cristo. A apropriação indevida! Uma coisa comum infelizmente na sociedade na qual vivemos, mas com Jesus essa não somente não está proibida, mas é sumamente recomendada. “Indevida” aqui significa que não nos é devido, que não nos é merecido, mas nos é dado gratuitamente, pela fé.

Mas andemos com passos firmes; escutemos um doutor da Igreja. “Eu – escreve São Bernardo - , o que não posso obter por mim mesmo, o aproprio (literalmente, o usurpo!) com confiança do lado aberto do Senhor, porque está cheio de misericórdia. Meu mérito, por isso, é a misericórdia de Deus. Não sou tão pobre de méritos, enquanto ele seja rico de misericórdia. Que se as misericórdias do Senhor são muitas (Sl 119, 156), eu porém terei muitos méritos. E o que acontece com a minha justiça? Ó Senhor, me lembrarei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça de Deus" (cf. 1 Cor 1, 30) (S. Bernardo de Claraval, Sermoni sul Cantico, 61, 4-5; PL 183, 1072).

Talvez esta forma de conceber a santidade tenha feito São Bernardo menos zeloso das boas obras, menos comprometido na aquisição das virtudes? Talvez negligenciasse mortificar o seu corpo e reduzí-lo a escravidão (cf. 1 Cor 9, 27), aquele que, antes de todos e mais do que todos, tinha feita desta apropriação da justiça de Cristo o objetivo da sua vida e da sua pregação (cf. Fl 3, 7-9)?

Em Roma, como infelizmente em todas as grandes cidades, há muitos moradores de rua. Existe um nome para eles em todas as línguas: homeless, clochards, sem-teto: seres humanos que não têm mais do que poucos trapos que carregam e algum objeto que trazem consigo em sacos plásticos. Imaginemos que um dia se espalha a notícia: Na rua Condotti (todos sabemos o que é a rua Condotti em Roma!) há uma boutique luxuosa que, por razões desconhecidas, de interesse ou de generosidade, convida todos os moradores de rua da Estação Termini a virem para o seu negócio; lhes convida a tirar os seus trapos imundos, a tomar um bom banho e depois a escolher o vestido que desejam entre aqueles exibidos e levá-los, assim, de graça.

Todos dizem entre si: “Isto é um conto de fadas, nunca acontece”. Verdadeiríssimo, mas o que nunca acontece entre os homens é o que pode acontecer a cada dia entre os homens e Deus, porque, diante Dele, aqueles moradores de rua somos nós! É o que acontece conosco depois de uma boa confissão: tire as suas roupas sujas, os pecados, receba o banho da misericórdia e levante-se que estás “revestido das vestes da salvação, coberto com um manto de justiça” (Isaías 61, 10).

O publicano da parábola subiu ao templo para orar; disse simplesmente, mas do fundo do coração: "Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!", e "voltou para casa justificado" (Lc 18, 14), reconciliado, feito novo, inocente. O mesmo, se temos a sua fé e o seu arrependimento, se poderá dizer de nós voltando à casa depois desta liturgia.

***

Entre os personagens da paixão que podemos nos identificar percebo que deixei de citar um, que mais do que ninguém, espera quem lhe siga o exemplo: o bom ladrão.

O bom ladrão faz uma confissão completa dos pecados; diz ao seu companheiro que insulta Jesus: “Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de justiça; estamos pagando por nossos atos; mas ele não fez nenhum mal” (Lc 23, 40 ss.). O bom ladrão se mostra aqui um excelente teólogo. Só Deus de fato, se sofre, sofre absolutamente como inocente; qualquer outro ser que sofre deve dizer: "Eu sofro com justiça," porque, embora não seja responsável pela ação imputada, nunca está totalmente sem culpa. Só a dor das crianças inocentes é semelhante àquela de Deus e por isso é tão misteriosa e tão sagrada.

Quantos crimes atrozes que permanecem, nos últimos tempos, sem culpados, quantos casos não resolvidos! O bom ladrão faz um apelo aos responsáveis: façam como eu, venham à luz, confessem a vossa culpa; experimentareis também vós a alegria que eu senti quando ouvi a palavra de Jesus: “Hoje estarás comigo no paraíso!” (Lc 23, 43). Quantos réus confessos podem confirmar que foi assim também para eles: que passaram do inferno ao paraíso no dia que tiveram a coragem de arrepender-se e confessar a sua culpa. Eu também conheci alguns. O paraíso prometido é a paz da consciência, a possibilidade de olhar-se no espelho ou olhar para os próprios filhos sem ter que desprezar-se.

Não carreguem convosco até o túmulo o vosso segredo; encontraríeis uma condenação muito mais temível do que aquela humana. O nosso povo não é cruél com quem errou mas reconhece o mal feito, sinceramente, não somente por algum interesse. Pelo contrário! Está pronto para ter pena e acompanhar o arrependido no seu caminho de redenção (que de qualquer forma, torna-se mais curto). "Deus perdoa muitas coisas, por uma obra boa", diz Lucia ao Inominável no “Os Noivos”. Ainda mais, devemos dizer, que ele perdoa muitas coisas por um ato de arrependimento. Ele prometeu solenemente: “Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim tornar-se-ão como a lã” (Is 1, 18).

Continuemos a fazer o que, como escutamos no início, é a nossa tarefa neste dia: com vozes de alegria exaltemos a vitória da cruz, entoemos hinos de louvor ao Senhor. “O Redemptor, sume carmen temet concinentium"( Hino do Domingo de Ramos e da Missa crismal da Quinta-feira Santa): E vós, ó nosso Redentor, aceite o canto que elevamos para vós.

[Tradução Thácio Siqueira]

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Submission on Marriage - by Cardinal George Pell

In CERC

In response to the subject inquiry, I make the following submissions regarding the nature of marriage and why the laws of the Commonwealth of Australia must continue to recognise and support marriage as meaning the exclusive and permanent union of one man and one woman.

Introduction
 
Catholics hold strong beliefs about the dignity of the human person and the goodness and beauty of marriage as a natural institution between a man and a woman. In response to the subject inquiry, I make the following submissions regarding the nature of marriage and why the laws of the Commonwealth of Australia must continue to recognise and support marriage as meaning the exclusive and permanent union of one man and one woman.

What is marriage?

Marriage is a natural institution whereby a man and a woman give themselves to each other for life in an exclusive sexual relationship that is open to procreation. It is a union that is publicly recognised, honoured and supported because of its unique capacity to generate children and to meet children's deepest needs for the love and attachment of both their father and their mother. In the words of Professor Robert George of Princeton University:
"Marriage is the community formed by a man and a woman who publicly consent to share their whole lives, in a type of relationship oriented toward the begetting, nurturing and educating of children together. This openness to procreation, as the community's natural fulfilment, distinguishes this community from other types."[1]

By contrast, although the community formed by a homosexual couple may involve genuine caring, affection and commitment to one another, it is not an inherently procreative community, because their sexual relationship is not designed to generate children. Marriage is not simply a loving, committed relationship between two people, but a unique kind of physical and emotional union which is open to the possibility of new life.

The definition of marriage as an inherently procreative community does not exclude heterosexual married couples who cannot have children for reasons of age or infertility. They are still married because their sexual union is naturally designed to give life, even if it cannot give life at a particular point in time, or ever. Marriage between a man and a woman always has an inherent capacity for, and orientation towards, the generation of children, whether that capacity is actualized or not.

How does marriage between a man and a woman make a unique contribution to society?

Marriage makes a unique and irreplaceable contribution to society because a stable, loving marriage provides the best conditions for raising children. Through marriage, children are able to grow up knowing that they were created through an act of intimate love and with the knowledge that their mother and father have committed to each other for life. Marriage also contributes uniquely to society in modelling the way women and men live interdependently, recognising the equal dignity, beauty and value of the other, and committing to seek the good of each other. The family based on marriage is also the best social framework for the promotion of inter and intra-generational biological connectivity, which is an important and vital social good.

Marriage: discrimination against same-sex couples?

Unjust discrimination against persons is always wrong, but participation in particular social institutions is not always equally available to all persons within society. Distinguishing between certain groups is essential for the maintenance of the validity of the institution; e.g. university access is based on academic merit and not simply on the desire to attend a university. Women's and girls' only schools and colleges are permitted to deny entry to men, because society recognises that receiving men into the institution would change its essential character.

It is not unjust discrimination against homosexual couples to uphold marriage as being between a man and a woman. Marriage and same-sex unions are essentially different realities. Justice, in fact, requires society to recognise and respect this difference.

Marriage: a basic human right?

"The right to marry and found a family" is affirmed in the Universal Declaration of Human Rights (1948). International law has always understood and affirmed the enduring, unchanging truth that marriage is a life-giving union of a man and a woman. The United Nations Human Rights Committee, which monitors international human rights treaties, has stated that the right to marry "implies, in principle, the possibility to procreate".[2] The right to marry is a fundamental human right. However, to respect this right means to accept the objective reality of marriage as a union of a man and a woman that is inherently procreative.

Why should secular society recognise, structure and encourage marriage?

Secular society has always recognised marriage as a public institution because the marital relationship makes a unique and essential contribution to the common good. Marriage is pre-political and the state has in this sense inherited marriage. The state should not alter and supply different reasons for an institution which it has inherited; rather it can only consider the reasons why this institution has deserved — and still deserves — social recognition and support. The primary reason why nation states have been interested in marriage and why it has attracted public support is because of its procreative aspect, encompassing the generation and raising of children:
"Because married couples ensure the succession of generations and are therefore eminently within the public interest, civil law grants them institutional recognition. Homosexual unions on the other hand, do not need specific attention from the legal standpoint since they do not exercise this function for the common good".[3]

Companionship and love are undoubtedly important, but it is not the role of the state to legislate on the basis of private affections. Procreation, however, constitutes the public reason for marriage, because the creation and raising of children is publicly significant, with immense implications for the common good. The family, based on marriage, is the basic unit on which society and the extended family is built. As such, the state has an interest in and duty to ensure children are raised, as far as possible, by their natural families.[4]

The state cannot grant the legal status of marriage to same-sex unions without failing in its duty to promote and defend marriage as an institution essential to the public good.

While same-sex couples can have children by means of donor sperm or eggs, or through adoption, their relationship does not inherently have the possibility of creating children. For same-sex couples, having a child will always involve the use of one or more persons outside their relationship. This is unjust to children and destructive of their family connectedness. This practice should not be publicly endorsed or encouraged, because it involves a profound loss and deprivation for the child concerned: the loss of a pre eminent and vital relationship with their biological father or mother.

Although it is deeply natural and good to desire children, the child should always be seen as a gift — a person whose rights and dignity must always be respected. As affirmed by international law, children have a right to their biological heritage.[5] It is a grave injustice to deliberately deprive children of the experience of being loved and raised by their natural mother and father[6] and to prevent them from having a developing and ongoing relationship with their biological siblings.

Religious freedom at risk for all Australians

Some proponents of same-sex marriage have argued that in the event of marriage being redefined, the Catholic Church and other religious communities will be "protected" or "exempted" from being required by law to perform same-sex marriages. Such proposals fail to understand the immensely powerful role and influence of the law in our society. Changing the Marriage Act would, in practice, compel Catholics and other faith communities to recognise and accept same-sex marriage in their schools, charities, social welfare, health care and adoption services.

An 'exemption' would only apply to religious celebrants, and would offer no legal protection for the vast majority of Catholics and other Australians with a religious and/or conscientiously-held belief that marriage is a union of a man and a woman.

The Marriage Equality Amendment Bill 2010, with or without any accompanying 'exempting' legislation, poses a grave danger to religious freedom. It would threaten the right of Catholics and all Australians who believe in marriage to live, teach and publicly practise their belief that marriage is a union of a man and a woman.

In March 2012 the European Court of Human Rights handed down a judgment reaffirming its earlier decision that same-sex marriage is not a human right under the European Convention on Human Rights. However, the Court added that:
"Where national legislation recognises registered partnerships between same sex, member states should aim to ensure that their legal status and their rights and obligations are equivalent to those of heterosexual couples in a similar situation."[7]

Mr Neil Addison, an English barrister who specialises in discrimination law, explained that what this means is that:
"Once same-sex marriage has been legalised then the partners to such a marriage are entitled to exactly the same rights as partners in a heterosexual marriage. This means that if same-sex marriage is legalised in the UK it will be illegal for the Government to prevent such marriages happening in religious premises."[8]

Australia is not a party to the European Convention on Human Rights and is not bound by the decisions of the European Court of Human Rights. But this reasoning is likely to be followed by Australian courts and tribunals to read down 'exemptions' intended to protect religious freedom.

The meaning of marriage is important for all of us

The philosopher Ronald Dworkin, himself a supporter of homosexual marriage, explains why there is a strong case for not changing the meaning of marriage. He begins with the premise that the institution of marriage is:

"a unique and immensely valuable cultural resource. Its meaning and hence its value have developed over centuries, and the assumption that marriage is the union of a man and a woman is so embedded in our common understanding that it would become a different institution were that assumption now challenged and lost. Just as we might struggle to maintain the meaning and value of any other great natural or artistic resource, so we should struggle to retain this uniquely valuable cultural resource.
I believe that argument to be the strongest that can be made against gay marriage. It raises a larger and even more important issue. Who should have control, and in what way, over the moral, ethical, and aesthetic culture in which we must all live and that defines the meaning of our social and legal institutions and shapes our lives in many other ways?"[9]

We should not treat lightly those legal and social norms which limit marriage to persons of opposite sex. Often out of a sense of not wanting to unfairly discriminate, we can think that allowing equal status to other forms of unions somehow seems just. However, when we equate same-sex relationships with marriage, it further undermines our understanding of family by wrongly implying that biological connectivity of children with their parents and siblings is not important. In addition, it mistakenly says that having both a mother and a father is an unnecessary and superfluous duplication. Contrary to everything we intuitively and sociologically know about effective parenting, it adds further confusion by saying that mothers can 'father' just as well as men, and that fathers can 'mother' just as well as women.

When we permit same-sex relationships to mimic marriage we also say that a child gains no benefit from the knowledge that they were created through an intimate act of love between their parents. As a result, our understanding of children also changes. Instead of seeing children principally as gifts created in love we begin to treat them as an entitlement.

When legislatures act to change laws, social norms change as a consequence, and these impact on all members of the community. Because marriage is one of the greatest resources of society, one that encourages men and women to commit to each other for life and to love and raise their children together, any change in the definition of marriage away from procreation to simply an emotional union will fundamentally alter society's values. Professors David Tubbs and Robert George explain the impact of a change in the definition of marriage:
"the legal recognition of same-sex partnerships as marriages is likely to further destabilize an institution already damaged by the casual acceptance of cohabitation and unwed childbearing as well as by the high rate of divorce. If a desire to stamp social approval on homosexual conduct and relationships leads to a redefinition of marriage that detaches it not only from biological complementarity and procreation but also from the related norm of sexual exclusivity, what will be left of the institution?"[10]

Legislation similar to the Marriage Equality Amendment Bill 2010 is being considered in the United Kingdom. As the Catholic Bishops of England and Wales stated recently in their letter of 10 March 2012:
"The law helps to shape and form social and cultural values. A change in the law would gradually and inevitably transform society's understanding of the purpose of marriage. It would reduce it just to the commitment of the two people involved. There would be no recognition of the complementarity of male and female or that marriage is intended for the procreation and education of children."[11]

I reiterate strongly the declaration of the English and Welsh bishops that we have a duty to all married couples, and to future generations, to do all we can "to ensure that the true meaning of marriage is not lost".[12] The real and distinctive meaning of marriage — a meaning cherished and preserved for countless generations of the human family — must not be taken away because of a deeply misguided idea that marriage only means any kind of committed relationship between two individuals.

Marriage: our common heritage

Pope Benedict XVI has reminded us that marriage between a man and a woman is a fundamental element of the "common patrimony" of humanity — our most precious heritage as human beings. Marriage is the place where sexuality is truly humanized, where man and woman through their exclusive commitment to each other create a family and pass this love on to their children and to future generations:
"We have a positive idea to offer, that man and woman are made for each other … that marriage develops, first of all as a joyful and blessing-filled encounter between a man and a woman, and then, the family, which guarantees continuity among generations and through which generations are reconciled to each other and even cultures can meet."[13]

I urge you once again to recognise that marriage is an institution between a man and a woman, uniquely designed for the gift of children, and to support the essential and irreplaceable contribution marriage makes to our society.
Thank you for the opportunity to make this submission on such an important matter of national interest.


Endnotes:
  1. Robert P. George, In Defense of Natural Law. Clarendon Press, Oxford, 1999, p.168.
  2. UN Human Rights Committee General Comment No 19.
  3. Congregation for the Doctrine of the Faith, Considerations regarding proposals to give legal recognition to unions between homosexual persons, June 3, 2003.
  4. UN Convention on the Rights of the Child, Article 7(1).
  5. UN Convention on the Rights of the Child, Article 30.
  6. UN Convention on the Rights of the Child, Article 7(1).
  7. "Gay Marriage is not a human rights, according t European ruling" The Telegraph (UK), 21 March 2012.
  8. Ibid.
  9. Ronald Dworkin, "Three Questions for America", The New York Review of Books, September 21, 2006.
  10. David L. Tubbs & Robert P. George, "Redefining Marriage Away", City Journal, Summer 2004.
  11. A Letter on Marriage. Catholic Bishops Conference of England and Wales. 10-11 March 2012.
  12. Ibid.
  13. Press interview with Pope Benedict XVI, Castel Gandolfo, Italy, August 5, 2006.

Bento XVI: Homilia na Missa da Ceia do Senhor - 2012

Amados irmãos e irmãs!

A Quinta-feira Santa não é apenas o dia da instituição da Santíssima Eucaristia, cujo esplendor se estende sem dúvida sobre tudo o mais, tudo atraindo, por assim dizer, para dentro dela. Faz parte da Quinta-feira Santa também a noite escura do Monte das Oliveiras, nela Se embrenhando Jesus com os seus discípulos; faz parte dela a solidão e o abandono vivido por Jesus, que, rezando, vai ao encontro da escuridão da morte; faz parte dela a traição de Judas e a prisão de Jesus, bem como a negação de Pedro; e ainda a acusação diante do Sinédrio e a entrega aos pagãos, a Pilatos. Nesta hora, procuremos compreender mais profundamente alguma coisa destes acontecimentos, porque neles se realiza o mistério da nossa Redenção.


Jesus embrenha-se na noite. A noite significa falta de comunicação, uma situação em que não nos vemos um ao outro. É um símbolo da não compreensão, do obscurecimento da verdade. É o espaço onde o mal, que em presença da luz tem de se esconder, pode desenvolver-se. O próprio Jesus – que é a luz e a verdade, a comunicação, a pureza e a bondade – entra na noite. Esta, em última análise, é símbolo da morte, da perda definitiva de comunhão e de vida. Jesus entra na noite para a superar, inaugurando o novo dia de Deus na história da humanidade.


Pelo caminho, Jesus cantou com os seus discípulos os Salmos da libertação e redenção de Israel, que evocavam a primeira Páscoa no Egito, a noite da libertação. Chegado ao destino Ele, como faz habitualmente, vai rezar sozinho e, como Filho, falar com o Pai. Mas, diversamente do que é costume, quer ter perto de Si três discípulos: Pedro, Tiago e João; são os mesmos três que viveram a experiência da sua Transfiguração – viram transparecer, luminosa, a glória de Deus através da sua figura humana – , tendo-O visto no centro da Lei e dos Profetas, entre Moisés e Elias. Ouviram-No falar, com ambos, acerca do seu «êxodo» em Jerusalém. O êxodo de Jesus em Jerusalém: que palavra misteriosa! No êxodo de Israel do Egipto, dera-se o acontecimento da fuga e da libertação do povo de Deus. Que aspecto deveria ter o êxodo de Jesus, para que nele se cumprisse, de modo definitivo, o sentido daquele drama histórico? Agora os discípulos tornavam-se testemunhas do primeiro trecho de tal êxodo – a humilhação extrema –, mas que era o passo essencial da saída para a liberdade e a vida nova, que o êxodo tem em vista. Os discípulos, cuja proximidade Jesus pretendeu naquela hora de ânsia extrema como elemento de apoio humano, depressa se adormentaram. Todavia ainda ouviram alguns fragmentos das palavras ditas em oração por Jesus e observaram o seu comportamento. Estas duas coisas gravam-se profundamente no espírito deles, que depois as transmitiram aos cristãos para sempre. Jesus chama a Deus «Abbá»; isto significa – como eles adiantam – «Pai». Não é, porém, a forma usual para dizer «pai», mas uma palavra própria da linguagem das crianças, ou seja, uma palavra meiga que ninguém ousaria aplicar a Deus. É a linguagem d’Aquele que é verdadeiramente «criança», Filho do Pai, d’Aquele que vive em comunhão com Deus, na unidade mais profunda com Ele.


Se nos perguntássemos qual era o elemento mais característico da figura de Jesus nos Evangelhos, temos de dizer: a sua relação com Deus. Ele está sempre em comunhão com Deus; estar com o Pai é o núcleo da sua personalidade. Através de Cristo, conhecemos verdadeiramente Deus. «A Deus jamais alguém O viu»: diz São João. Aquele que «está no seio do Pai (…) O deu a conhecer» (1, 18). Agora conhecemos Deus, como Ele é verdadeiramente: Ele é Pai; e Pai com uma bondade absoluta, à qual nos podemos confiar. O evangelista Marcos, que conservou as recordações de São Pedro, narra que Jesus, depois da invocação «Abbá», acrescentou: Tudo Te é possível; Tu podes tudo (cf. 14, 36). Aquele que é a Bondade, ao mesmo tempo é poder, é omnipotente. O poder é bondade e a bondade é poder. Esta confiança podemos aprendê-la a partir da oração de Jesus no Monte das Oliveiras.


Antes de reflectir sobre o conteúdo da súplica de Jesus, devemos ainda fixar a nossa atenção sobre o que os evangelistas nos referem a propósito do comportamento d’Ele durante a sua oração. Mateus e Marcos dizem-nos que «caiu com a face por terra» (Mt 26, 39; cf. Mc 14, 35), assumindo por conseguinte a posição de submissão total, como se manteve na liturgia romana de Sexta-feira Santa. Lucas, por sua vez, diz-nos que Jesus rezava de joelhos. Nos Actos dos Apóstolos, fala da oração de joelhos feita pelos santos: Estêvão durante a sua lapidação, Pedro no contexto da ressurreição de um morto, Paulo a caminho do martírio. Assim Lucas redigiu uma pequena história da oração feita de joelhos na Igreja nascente. Ajoelhando-se, os cristãos entram na oração de Jesus no Monte das Oliveiras. Ameaçados pelo poder do mal, eles ajoelham: permanecem de pé frente ao mundo, mas, enquanto filhos, estão de joelhos diante do Pai. Diante da glória de Deus, nós, cristãos, ajoelhamo-nos reconhecendo a sua divindade; mas, com tal gesto, exprimimos também a nossa confiança de que Ele vence.


Jesus luta com o Pai: melhor, luta consigo mesmo; e luta por nós. Sente angústia frente ao poder da morte. Este sentimento é, antes de mais nada, a turvação que prova o homem, e mesmo toda a criatura viva, em presença da morte. Mas, em Jesus, trata-se de algo mais. Ele estende o olhar pelas noites do mal; e vê a maré torpe de toda a mentira e infâmia que vem ao seu encontro naquele cálice que deve beber. É a turvação sentida pelo totalmente Puro e Santo frente à torrente do mal que inunda este mundo e que se lança sobre Ele. Vê-me também a mim, e reza por mim. Assim este momento da angústia mortal de Jesus é um elemento essencial no processo da Redenção; de facto, a Carta aos Hebreus qualificou a luta de Jesus no Monte das Oliveiras como um acontecimento sacerdotal. Nesta oração de Jesus, permeada de angústia mortal, o Senhor cumpre a função do sacerdotes: toma sobre Si o pecado da humanidade, toma a todos nós e leva-nos para junto do Pai.


Por último, devemos debruçar-nos sobre o conteúdo da oração de Jesus no Monte das Oliveiras. Jesus diz: «Pai, tudo Te é possível; afasta de Mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc 14, 36). A vontade natural do Homem Jesus recua, assustada, perante uma realidade tão monstruosa; pede que isso Lhe seja poupado. Todavia, enquanto Filho, depõe esta vontade humana na vontade do Pai: não Eu, mas Tu. E assim Ele transformou a atitude de Adão, o pecado primordial do homem, curando deste modo o homem. A atitude de Adão fora: Não o que quiseste Tu, ó Deus; eu mesmo quero ser deus. Esta soberba é a verdadeira essência do pecado. Pensamos que só poderemos ser livres e verdadeiramente nós mesmos, se seguirmos exclusivamente a nossa vontade. Vemos Deus como contrário à nossa liberdade. Devemos libertar-nos d’Ele – isto é todo o nosso pensar –; só então seremos livres. Tal é a rebelião fundamental, que permeia a história, e a mentira de fundo que desnatura a nossa vida. Quando o homem se põe contra Deus, põe-se contra a sua própria verdade e, por conseguinte, não fica livre mas alienado de si mesmo. Só somos livres, se permanecermos na nossa verdade, se estivermos unidos a Deus. Então tornamo-nos verdadeiramente «como Deus»; mas não opondo-nos a Deus, desfazendo-nos d’Ele ou negando-O. Na luta da oração no Monte das Oliveiras, Jesus desfez a falsa contradição entre obediência e liberdade, e abriu o caminho para a liberdade. Peçamos ao Senhor que nos introduza neste «sim» à vontade de Deus, tornando-nos deste modo verdadeiramente livres. Amen.

Maternidade de Substituição: Declaração de voto contra nova legislação no Conselho Nacional de Ética


Lisboa, 04 abr 2012 (Ecclesia) – Seis membros do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) votaram contra um parecer que aceita a maternidade de substituição constante em propostas de lei parlamentares, alertando para “problemas potenciais graves e potencialmente irreversíveis”.

Numa declaração conjunta de voto assinada por Michel Renaud, Ana Sofia Carvalho, Agostinho Almeida Santos, Francisco Carvalho Gerra, José Germano de Sousa e Maria do Céu Patrão Neves observa-se que a aprovação da “gestação de substituição” não é tida como “eticamente justificada”.
Os conselheiros aludem à “incidência negativa sobre o interesse, a construção de identidade e o bem-estar físico e psicológico do nascituro, entendido como prevalecente sobre o interesse do «casal beneficiário»”.

O voto contra é “essencialmente justificado pelo facto de se considerar que foi o interesse sempre prioritário e frequentemente exclusivo do casal beneficiário e não o interesse do nascituro que esteve na base da discussão do CNECV”.

O Conselho aceita a maternidade de substituição constante em propostas de lei parlamentares, mas apresenta 13 condições, de acordo com um parecer, aprovado por maioria, que divulgou esta segunda-feira.

O documento prevê que possa ser o tribunal a decidir em prol da criança e recomenda que a mãe que faz a gestação possa sempre recuar na sua decisão até ao momento do parto.

Para os seis conselheiros que votaram contra, “até ao nascimento permanece uma indeterminação intencional quanto à identidade da mãe, quer legal, quer biológica, o que altera o conceito de maternidade”.

Quanto à alteração às práticas de procriação medicamente assistida (PMA), a declaração de voto sustenta que "em princípio, o acesso à PMA devia contemplar apenas problemas de infertilidade e de esterilidade".
OC
 
Documento para download: 1333387293declaraaaodevotoconj.pdf

Priestly heroes of the Titanic


By OSV staff - OSV Newsweekly, 4/15/2012



On April 14/15, 1912, a glittering, technological marvel in the shape of a ship called the RMS Titanic struck an iceberg and sank to the bottom of the sea in the icy waters in the North Atlantic, killing more than 1,500 people and capturing the imaginations of people over the past 100 years. 



Many books, museum exhibits and movies have told the story of the supposedly unsinkable ocean liner, including the 

Oscar-winning 1997 film “Titanic,” recently re-released in theaters in a 3D format. Even the popular PBS series “Downton Abbey,” set in Edwardian England, features the sinking of the Titanic in its plot line. 

Most people know at least the basic story of what happened to the Titanic on her maiden voyage from Southampton, England to New York, but they may not realize the role three Catholic priests — a Lithuanian, a German and an Englishman — played in bringing comfort to passengers of the doomed ship. 

Each celebrated Mass every day while on board the ship, but it was their heroism and the spiritual care they gave to the passengers literally until the end that has been remembered. 
Serving ‘to the very end’



Father Juozas Montvila, 27, a native of Lithuania, boarded at Southampton on a second-class ticket. 
Father Montvila was headed to the United States, where he had family, after suffering at the hands of the Russians, who controlled Lithuania at the time. When it was discovered he was serving Ukrainian Catholics, who were in disfavor with the government of Czar Nicholas II, the Russians prohibited him from performing his priestly ministry. In the United States, Father Montvila believed, he could serve the growing Lithuanian community. 
On the fatal night, Father Montvila was on the boat deck as the 20 lifeboats on board — far too few for the 2,200 passengers aboard — were filled. A survivor reported, “the young Lithuanian priest, Juozas Montvila, served his calling to the very end.” He was offered a place in one of the boats, but he refused to go. His body was never recovered. 

Praying the Rosary


Benedictine Father Joseph Benedikt Peruschitz, 41, also was a second-class passenger on the Titanic.  

He had entered the Benedictine community at Scheyern in 1894. On April 28, 1895, he was ordained a priest by the archbishop of Munich-Freising in the parish church in Scheyern. He made his profession as a Benedictine on Aug. 24, 1895. 

In 1912, he was on his way to join the faculty at St. John’s Abbey — now St. John’s University — in Collegeville, Minn. He spent Holy Week at St. Augustine’s Benedictine house in Ramsgate, England, before boarding the Titanic on April 10 at Southampton. The ocean liner departed later that day, stopping in Cherbourg, France, and Queenstown, Ireland, before crossing the Atlantic. 

Father Peruschitz went among passengers after the ship hit the iceberg, giving absolution. Some people on deck reportedly mocked him and the other priests. But the priests continued to pray with those who asked for prayer, not only Catholics but people of all faiths.  

Father Peruschitz also was offered a place in a lifeboat, but he declined to leave the other passengers. One survivor recalled seeing him shortly before the sinking, leading a group of passengers in the Rosary. Like his Lithuanian counterpart, his body was never recovered. 

At the Scheyern monastery, a plaque memorializes Father Peruschitz’s life and sacrifice. It reads, “Father Joseph Peruschitz, OSB, who sacrificed himself piously on the famous ‘Titanic’ on 15.4.1912 at the age of 42 years in the 17th year of his priesthood and profession.” 

Aiding passengers

Father Thomas Roussel Davids Byles, 42, came from a prominent family in England and was the son of a Congregationalist minister. While at Oxford, he was received into the Church of England. Originally intending to become an Anglican priest, he converted to Catholicism in 1894 and was ordained a Catholic priest in 1902. 


In April 1912, Father Byles was on his way to Brooklyn, N.Y., to officiate at his brother’s wedding. He, too, embarked at Southampton as a second-class passenger. 

On April 14, the day that would end with the accident, Father Byles celebrated Mass twice — once for second-class passengers and a later one for third-class passengers.  

Most third-class passengers were immigrants to America, mainly from Ireland, so they would have understood English. Many others, however, were from continental Europe. Father Byles preached his third-class homily in English and French, and Father Peruschitz followed with a sermon in German and Hungarian. According to a newspaper report at the time, both priests preached about “the necessity of man having a lifeboat in the shape of religious consolation at hand in case of a spiritual shipwreck.” 

When the collision with the iceberg came, Father Byles returned to third-class cabins. Survivors recall that he pointed third-class passengers to exits from lower decks or into the boats. He heard confessions. He prayed with anxious passengers. 

According to newspaper reports, Father Byles too was offered a seat in a departing lifeboat, but he refused to leave the other passengers. He died with the ship and his body was never recovered. 

A memorial to Father Byles was erected at his parish in Chipping Ongar, Essex, England. 

Portions of this piece were adapted from Msgr. Owen F. Campion’s April 17, 2005, In Focus titled “Priestly sacrifice at sea.”



Bento XVI - Homilia Missa Crismal (05. 04. 2012)

Amados irmãos e irmãs!

Nesta Santa Missa, o nosso pensamento volta àquela hora em que o Bispo, através da imposição das mãos e da oração consacratória, nos integrou no sacerdócio de Jesus Cristo, para sermos «consagrados na verdade» (Jo 17, 19), como Jesus pediu ao Pai na sua Oração Sacerdotal. Ele mesmo é a Verdade. Consagrou-nos, isto é, entregou-nos para sempre a Deus, a fim de que, a partir de Deus e em vista d’Ele, pudéssemos servir os homens. Mas somos consagrados também na realidade da nossa vida? Somos homens que actuam a partir de Deus e em comunhão com Jesus Cristo? Com esta pergunta, o Senhor está diante de nós, e nós diante d’Ele. «Quereis viver mais intimamente unidos a Cristo e configurar-vos com Ele, renunciando a vós mesmos e permanecendo fiéis aos compromissos que, por amor de Cristo e da sua Igreja, aceitastes alegremente no dia da vossa Ordenação Sacerdotal?» Tal é a pergunta que, depois desta homilia, será dirigida singularmente a cada um de vós e a mim mesmo. Nela, são pedidas sobretudo duas coisas: uma união íntima, mais ainda, uma configuração a Cristo e, condição necessária para isso mesmo, uma superação de nós mesmos, uma renúncia àquilo que é exclusivamente nosso, à tão falada auto-realização. É-nos pedido que não reivindique a minha vida para mim mesmo, mas a coloque à disposição de outrem: de Cristo. Que não pergunte: Que ganho eu com isso? Mas sim: Que posso eu doar a Ele e, por Ele, aos outros? Ou mais concretamente ainda: Como se deve realizar esta configuração a Cristo, que não domina mas serve, não toma mas dá. Como se deve realizar na situação tantas vezes dramática da Igreja de hoje? Recentemente, num país europeu, um grupo de sacerdotes publicou um apelo à desobediência, referindo ao mesmo tempo também exemplos concretos de como exprimir esta desobediência, que deveria ignorar até mesmo decisões definitivas do Magistério, como, por exemplo, na questão relativa à Ordenação das mulheres, a propósito da qual o beato Papa João Paulo II declarou de maneira irrevogável que a Igreja não recebeu, da parte do Senhor, qualquer autorização para o fazer. Será a desobediência um caminho para renovar a Igreja? Queremos dar crédito aos autores deste apelo quando dizem que é a solicitude pela Igreja que os move, quando afirmam estar convencidos de que se deve enfrentar a lentidão das Instituições com meios drásticos para abrir novos caminhos, para colocar a Igreja à altura dos tempos de hoje. Mas será verdadeiramente um caminho a desobediência? Nela pode-se intuir algo daquela configuração a Cristo que é o pressuposto para uma verdadeira renovação, ou, pelo contrário, não é apenas um impulso desesperado de fazer qualquer coisa, de transformar a Igreja segundo os nossos desejos e as nossas ideias?

Mas o problema não é assim tão simples. Porventura Cristo não corrigiu as tradições humanas que ameaçavam sufocar a palavra e a vontade de Deus? É verdade que o fez, mas para despertar novamente a obediência à verdadeira vontade de Deus, à sua palavra sempre válida. O que Ele tinha a peito era precisamente a verdadeira obediência, contra o arbítrio do homem. E não esqueçamos que Ele era o Filho, com a singular autoridade e responsabilidade de desvendar a autêntica vontade de Deus, para deste modo abrir a estrada da palavra de Deus rumo ao mundo dos gentios. E, por fim, Ele concretizou o seu mandato através da sua própria obediência e humildade até à Cruz, tornando assim credível a sua missão. Não se faça a minha vontade, mas a tua: esta é a palavra que revela o Filho, a sua humildade e conjuntamente a sua divindade, e nos indica a estrada.

Deixemo-nos interpelar por mais uma questão: Não será que, com tais considerações, o que na realidade se defende é o imobilismo, a rigidez da tradição? Não! Quem observa a história do período pós-conciliar pode reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que frequentemente assumiu formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que tornam quase palpável a vivacidade inexaurível da santa Igreja, a presença e a acção eficaz do Espírito Santo. E se olharmos para as pessoas de quem dimanaram, e dimanam, estes rios pujantes de vida, vemos também que, para uma nova fecundidade, se requer o transbordar da alegria da fé, a radicalidade da obediência, a dinâmica da esperança e a força do amor.

Queridos amigos, daqui se vê claramente que a configuração a Cristo é o pressuposto e a base de toda a renovação. Mas talvez a figura de Cristo nos apareça por vezes demasiado alta e grande para podermos ousar tomar as suas medidas. O Senhor sabe-o. Por isso providenciou «traduções» em ordens de grandeza mais acessíveis e próximas de nós. Precisamente por este motivo, São Paulo resolutamente diz às suas comunidades: Imitai-me, mas eu pertenço a Cristo. Ele era para os seus fiéis uma «tradução» do estilo de vida de Cristo, que eles podiam ver e à qual podiam aderir. A partir de Paulo e ao longo de toda a história, existiram continuamente tais «traduções» do caminho de Jesus em figuras históricas vivas. Nós, sacerdotes, podemos pensar numa série imensa de sacerdotes santos que vão à nossa frente para nos apontar a estrada, a começar por Policarpo de Esmirna e Inácio de Antioquia, passando por grandes Pastores como Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno, depois Inácio de Loiola, Carlos Borromeu, João Maria Vianney, até chegar aos sacerdotes mártires do século XX e, finalmente, ao Papa João Paulo II, que, na acção e no sofrimento, nos serviu de exemplo na configuração a Cristo, como «dom e mistério». Os Santos indicam-nos como funciona a renovação e como podemos servi-la. E fazem-nos compreender também que Deus não olha para os grandes números nem para os êxitos exteriores, mas consegue as suas vitórias sob o sinal humilde do grão de mostarda.

Queridos amigos, queria ainda, brevemente, acenar a duas palavras-chave da renovação das promessas sacerdotais, que deveriam induzir-nos a reflectir nesta hora da Igreja e da nossa vida pessoal. Em primeiro lugar, é-nos recordado o facto de sermos – como se exprime Paulo - «dispensadores dos mistérios de Deus» (1 Cor 4, 1) e que nos incumbe o ministério de ensinar (munus docendi), que constitui precisamente uma parte desta distribuição dos mistérios de Deus, onde Ele nos mostra o seu rosto e o seu coração, para Se dar a Si mesmo. No encontro dos Cardeais por ocasião do recente Consistório, diversos Pastores, baseando-se na sua experiência, falaram dum analfabetismo religioso que cresce no meio desta nossa sociedade tão inteligente. Os elementos fundamentais da fé, que no passado toda e qualquer criança sabia, são cada vez menos conhecidos. Mas, para se poder viver e amar a nossa fé, para se poder amar a Deus e, consequentemente, tornar-se capaz de O ouvir correctamente, devemos saber aquilo que Deus nos disse; a nossa razão e o nosso coração devem ser tocados pela sua palavra. O Ano da Fé, a comemoração da abertura do Concílio Vaticano II há 50 anos, deve ser uma ocasião para anunciarmos a mensagem da fé com novo zelo e nova alegria. Esta mensagem, na sua forma fundamental e primária, encontramo-la naturalmente na Sagrada Escritura, que não leremos nem meditaremos jamais suficientemente. Nisto, porém, todos sentimos necessidade de um auxílio para a transmitir rectamente no presente, de modo que toque verdadeiramente o nosso coração. Este auxílio encontramo-lo, em primeiro lugar, na palavra da Igreja docente: os textos do Concílio Vaticano II e o Catecismo da Igreja Católica são os instrumentos essenciais que nos indicam, de maneira autêntica, aquilo que a Igreja acredita a partir da Palavra de Deus. E naturalmente faz parte de tal auxílio todo o tesouro dos documentos que o Papa João Paulo II nos deu e que está ainda longe de ser cabalmente explorado.

Todo o nosso anúncio se deve confrontar com esta palavra de Jesus Cristo: «A minha doutrina não é minha» (Jo 7, 16). Não anunciamos teorias nem opiniões privadas, mas a fé da Igreja da qual somos servidores. Isto, porém, não deve naturalmente significar que eu não sustente esta doutrina com todo o meu ser e não esteja firmemente ancorado nela. Neste contexto, sempre me vem à mente o seguinte texto de Santo Agostinho: Que há de mais meu do que eu próprio? E no entanto que há de menos meu do que o sou eu mesmo? Não me pertenço a mim próprio e torno-me eu mesmo precisamente pelo facto de me ultrapassar a mim próprio e é através da superação de mim próprio que consigo inserir-me em Cristo e no seu Corpo que é a Igreja. Se não nos anunciamos a nós mesmos e se, intimamente, nos tornamos um só com Aquele que nos chamou para sermos seus mensageiros de tal modo que sejamos plasmados pela fé e a vivamos, então a nossa pregação será credível. Não faço publicidade de mim mesmo, mas dou-me a mim mesmo. Como sabemos, o Cura d’Ars não era um erudito, um intelectual. Mas, com o seu anúncio, tocou os corações das pessoas, porque ele mesmo fora tocado no coração.

A última palavra-chave, a que ainda queria aludir, designa-se zelo das almas (animarum zelus). É uma expressão fora de moda, que hoje já quase não se usa. Nalguns ambientes, o termo «alma» é até considerado como palavra proibida, porque – diz-se – exprimiria um dualismo entre corpo e alma, cometendo o erro de dividir o homem. Certamente o homem é uma unidade, destinada com corpo e alma à eternidade. Mas isso não pode significar que já não temos uma alma, um princípio constitutivo que garante a unidade do homem durante a sua vida e para além da sua morte terrena. E, enquanto sacerdotes, preocupamo-nos naturalmente com o homem inteiro, incluindo precisamente as suas necessidades físicas: com os famintos, os doentes, os sem-abrigo; contudo, não nos preocupamos apenas com o corpo, mas também com as necessidades da alma do homem: com as pessoas que sofrem devido à violação do direito ou por um amor desfeito; com as pessoas que, relativamente à verdade, se encontram na escuridão; que sofrem por falta de verdade e de amor. Preocupamo-nos com a salvação dos homens em corpo e alma. E, enquanto sacerdotes de Jesus Cristo, fazemo-lo com zelo. As pessoas não devem jamais ter a sensação de que o nosso horário de trabalho cumprimo-lo conscienciosamente, mas antes e depois pertencemo-nos apenas a nós mesmos. Um sacerdote nunca se pertence a si mesmo. As pessoas devem notar o nosso zelo, através do qual testemunhamos de modo credível o Evangelho de Jesus Cristo. Peçamos ao Senhor que nos encha com a alegria da sua mensagem, a fim de podermos servir, com jubiloso zelo, a sua verdade e o seu amor. Amen.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Parecer do CNECV sobre as Alterações à Lei da PMA - por Pedro Vaz Patto


O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu parecer sobre as propostas de alteração à lei da procriação medicamente assistida.  Nele se afirma que não há uma justificação eticamente válida para negar o acesso a essas técnicas a pessoas sós ou que vivam em união homossexual (sobretudo se o fazem com os seus próprios recursos). E nele se aceita a maternidade de substituição (aí designada por “gestação” de substituição”), sob um conjunto de condições tendentes a eliminar ou reduzir os seus possíveis malefícios.
           
Invoca-se o direito à parentalidade de quaisquer candidatos, sem discriminação, e alega-se que não se justifica privilegiar uma forma de família em relação a outras e que o risco de instrumentalização do filho não depende do facto de os progenitores serem, ou não, um casal heterossexual.
           
Contra esta tese, há, porém, que invocar a primazia do bem do filho sobre as pretensões dos candidatos. De outro modo, o filho seria instrumentalizado como objecto de um direito que se reivindica (não há um “direito ao filho”). E o bem do filho exige, por um lado, que ele seja fruto de uma relação de amor, não de uma afirmação individual. E exige que tenha um pai e uma mãe (cada um deles único e os dois complementares), não só um pai, só uma mãe, dois pais ou duas mães.
           
Quanto à “gestação de substituição”, o parecer reflecte o propósito (louvável) de acautelar uma série ampla de riscos que essa prática tem suscitado nos países onde foi legalizada. Um propósito que, pelo contrário, os proponentes das alterações em discussão parlamentar têm descurado. Mas as soluções indicadas (como outras que poderiam ser alvitradas) serão sempre insatisfatórias e não eliminam esses riscos, que só a efectiva proibição dessa prática elimina. Mesmo com todas essas (ou outras) cautelas, não deixamos de estar perante uma instrumentalização da criança que nasce e da mulher gestante. A esta continuará a ser sempre imposta por contrato a obrigação de abandonar o ser que acolheu dentro de si e com quem partilhou aquela que é talvez a experiência mais íntima, intensa e marcante da vida de uma mulher.
           
Indica o parecer que à mulher gestante deve ser reconhecida a faculdade de mudar de ideias e assumir a maternidade até ao início do parto. E porque não logo a seguir, ou enquanto amamenta (uma questão – a de saber quem amamenta - que o parecer também indica como necessário objecto do contrato)? E, se não o fizer, fica privada do direito de visitar a criança no futuro? E, nesse caso, em que a mulher gestante muda de ideias e assume a maternidade, ficam os pais genéticos privados de qualquer direito, sendo eles pais genéticos?. Quem será, nesse caso, o pai da criança (se é que o tem)? Mudando de ideias, a mulher fica obrigado a indemnizar os pais genéticos (qual o sentido da sua vinculação)?
           
Indica, por outro lado, o parecer que a mãe gestante deve ser saudável e o contrato deve conter disposições para o caso de malformação ou doença fetal. Mas em que sentido devem ser essas disposições (obrigação de abortar, possibilidade de o casal beneficiário se desvincular e abandonar a criança)? Se a mãe gestante não for, afinal, saudável, ou vier a revelar-se uma sua doença durante a gravidez, que responsabilidade tem perante o casal beneficiário? Este pode, por isso, desvincular-se e abandonar a criança?
           
Pretende o parecer que seja garantida a avaliação da motivação altruísta da mãe gestante e a impossibilidade de subordinação económica desta em relação ao casal beneficiário. Mas a realidade é o que é e o direito não pode ilusoriamente pretender modificá-la: só o desespero de graves carências económicas leva mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (é assim na Índia e em muitos países). De forma oculta ou indirecta, as contrapartidas económicas hão-de verificar-se. E as pressões que tal situação de carência suscita tornam vãs quaisquer cautelas e garantias jurídicas. Com tais pressões, a mulher gestante pode acabar, na prática, por sujeitar-se àquilo que o parecer pretende afastar (como a imposição de regras de conduta durante a gravidez pelo casal beneficiário).
           
Talvez só a ligação familiar entre a mãe gestante e o casal beneficiário possa garantir a motivação altruísta daquela. Mas os problemas que essa ligação acarreta (porque muito mais difícil será que a mãe gestante se desligue da criança e mais fácil e mais complexa a possível “concorrência” entre as duas “mães”) tornam-na desaconselhável a vários títulos.
            
Todos estes riscos são inelimináveis se a prática não for proibida. Nenhuma das possíveis alternativas para as situações indicadas é isenta de malefícios e quase todas têm uma faceta chocante. É assim porque na “maternidade de substituição” (“barriga de aluguer”, “gestação de substituição” –chame-se o que se quiser), com todas as possíveis regulações jurídicas, a criança nunca deixa de ser tratada como um objecto de um contrato (uma mercadoria) e a gestação como uma qualquer prestação de serviços (como se a mulher gestante fosse uma máquina incubadora).