«Não deve, porém, confundir-se escola pública e serviço público de educação, pois que este tanto pode ser prestado por instituições públicas como por instituições privadas...»
(Marçal Grilo e Guilherme de Oliveira Martins, ex-ministros da Educação em Governos PS)
por
Mário Pinto
In Revista Nova Cidadania
1. A Lei de Bases do Sistema Educativo não privilegia a escola pública contra a escola privada
Se quisermos saber se existe, e qual é, o sistema educativo nacional estabelecido legalmente pelo Estado, em cumprimento da Constituição, então a fonte própria mais autorizada é naturalmente a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), a que a própria Constituição deu tanta importância que a incluiu na «reserva absoluta de competência legislativa» da Assembleia da República (art. 164º). O regime em vigor consta originariamente da Lei nº 46/86, republicada com poucas alterações como anexa à Lei nº 49/2005; e constitui um diploma que tem sido objecto de larguíssimo consenso nacional ao longo de um quarto de século.
Trata-se de uma boa lei; a sua execução pelos Governos é que tem sido má, desobedecendo-lhe e mantendo o antigo monopólio estatal da escola pública, quando a verdade é que a discriminação da escola privada é contra a Constituição, contra a LBSE e contra as leis estatutárias do ensino privado — a própria LBSE diz que «[o] ensino particular e cooperativo rege-se por legislação e estatuto próprio, que devem subordinar-se ao disposto nesta lei» (nº 2 do art. 57º).
O intento deste breve texto é precisamente o de evidenciar que a LBSE não atribui à escola estatal o monopólio de um serviço público de ensino escolar; e que, no quadro constitucional e legal do «sistema educativo» em Portugal, é proibido discriminar o ensino privado.
Para se compreender melhor a LBSE, convém antes recordar os dispositivos constitucionais fundamentais, em matéria de liberdades de ensino e de escola. Vejamos então, muito em resumo, o regime da nossa «Constituição Educativa»; depois o seu desenvolvimento na Lei de Bases do Sistema Educativo e nas leis estatutárias da liberdade de ensino privado.
I - A Constituição Educativa
2. Direitos fundamentais de educação
Das normas constitucionais que, desde as revisões de 1982 e 1989, estruturam a nossa actual Constituição Educativa, basta aqui destacar que, no art. 43º da CRP, está expressamente garantida a liberdade de escola privada como liberdade fundamental de aprender e de ensinar. E que os arts. 73º e 74º atribuem o direito à educação e ao ensino literalmente a «todos». É especialmente expressivo e denso o nº 1 do art. 74º, que diz: «todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar». Nestes termos, a Constituição reconhece um direito social, como direito individual de acesso ao ensino, enfaticamente atribuído a «todos»; e acrescenta ainda: «com garantia do direito à igualdade de oportunidades…».
Como é evidente, nestas disposições fundamentais não se encontra nem vestígios da ideia de que a escola pública possa ser obrigatória para gozar do direito social ao ensino e do direito à igualdade de oportunidades. E o mesmo se pode dizer da longa lista de incumbências constitucionais impostas ao Estado, «na realização da política de ensino», que constam das dez alíneas do nº 2 do mesmo artigo 74º (que por brevidade aqui não comentamos).
3. A rede escolar nacional
E quanto à rede escolar? Quanto a esta questão (que, note-se bem, constitui simples matéria de «recursos materiais» — a Lei de Bases do Sistema Educativo é que assim o diz), o famigerado art. 75º da Constituição deixou de consagrar (como fazia na redacção de 1976) o monopólio da rede pública e o carácter supletivo da rede privada, passando actualmente, em vez disso, a impor ao Estado [1] a criação de uma rede de estabelecimentos públicos e [2] o reconhecimento de uma rede privada («ensino particular e cooperativo»). Depois das revisões sofridas, o art. 75º trata apenas da rede escolar; não conforma nem os direitos de liberdade nem os direitos sociais. É esta a sua actual redacção: «o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população» (nº 1); e «o Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei» (nº 2). É evidente que, nesta disposição, a Constituição impõe ao Estado a obrigação de garantir uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que tenha suficiente capacidade para satisfazer toda a procura efectiva, porque o Estado não pode obrigar os cidadãos a criar escolas privadas. Mas, do mesmo passo que se compromete a criar escolas públicas, conta também, de facto e de direito, com as privadas (que livremente poderão ser criadas e procuradas) — e é por isso mesmo que, logo ali no artigo que precisamente trata da garantia de rede escolar, a Constituição reconhece juridicamente «o ensino particular e cooperativo».
4. Proibição constitucional do Estado Educador: o Estado não tem direito de educar
Resta acrescentar, para que tudo fique ainda mais iluminado, que a Constituição estabelece uma proibição expressa do Estado Educador. Diz assim o nº 2 do art. 43º da Constituição: «[o] Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológica ou religiosas».
Eis aqui uma norma extraordinária, que nunca é mencionada pelos defensores do privilégio da «escola pública» e da prioridade da intervenção do Estado na educação. Esta limitação constitucional do Estado em matéria de educação vigora desde o texto primitivo da Constituição de 1976, foi aprovado na Assembleia Constituinte pelo PS, PPD e CDS, durante o verão quente de 1975, quando se tornava visível um desígnio de controlo educativo e cultural por parte do poder político revolucionário de então. E — pasme-se — o acrescento do inciso da educação foi proposto pelo Deputado do PS, Mário Sottomayor Cardia, porque a norma que já tinha sido aprovada só se referia à cultura. Portanto, o Estado pode criar escolas; mas não pode programar nem dirigir o seu projecto educativo e a sua actividade educativa, para além do direito de regulação geral do ensino e de fiscalização e tutela de entes públicos autónomos. As escolas estatais têm de ter autonomia perante o Estado: científica, pedagógica, curricular, etc. Como por exemplo têm as universidades públicas.
5. Prioridade do direito dos pais na escolha da educação dos filhos
A outra face do princípio que proíbe o Estado Educador é o direito fundamental de os pais educarem os filhos e o dever de o Estado cooperar com os pais na educação dos filhos: «[o]s pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação…» (nº 1 do art. 68º CRP); «[i]ncumbe, designadamente ao Estado […] cooperar com os pais na educação dos filhos» (al b) do nº 2 do art. 67º CRP). Aliás, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, recebida na nossa Constituição (art. 16º), consagra expressamente que: «aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos (nº 3 do art. 26º).
Assim, a acção do Estado em matéria de educação (para além do dever geral de regular o exercício das liberdades para as garantir) é apenas financeira e organizativa de recursos materiais, sendo-lhe vedada qualquer opção educativa e devendo respeitar e apoiar o dever e o direito de liberdade educativa dos pais.
II - A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE)
6. Função e estrutura do sistema educativo nacional
A LBSE abre com os seguintes dizeres: «a presente lei estabelece o quadro geral do sistema educativo» (nº 1 do art. 1º). E logo define a função e a estrutura do sistema educativo (estas são conceituações da própria lei). Quanto à função, diz assim: «o sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação que se exprime pela garantia de uma permanente acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade» (nº 2 do art. 1º) — note-se bem a função instrumental relativamente ao direito (pessoal) à educação. E quanto à estrutura, diz assim: «o sistema educativo desenvolve-se segundo um conjunto organizado de estruturas e de acções diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas» (nº 3 do art. 1º).
Em resumo: a função do sistema educativo nacional é concretizar o direito (pessoal) à educação; e a sua organização e estrutura é pluralista de entidades e escolas públicas e privadas.
7. Princípios gerais e organização do sistema educativo
Logo nos artigos seguintes, a LBSE concretiza melhor os «princípios gerais» (art. 2º) e os «princípios organizativos» do sistema educativo» nacional (art. 3º). Por brevidade, não se transcrevem aqui inteiramente estas disposições, mas destaca-se que eles repetem e desenvolvem os princípios constitucionais, em termos que não deixam dúvidas:
[1] de garantia de «uma efectiva igualdade de oportunidades» no acesso ao ensino;
[2] de garantia do «respeito pelo princípio da liberdade de aprender e de ensinar com tolerância para com as escolhas possíveis, tendo em conta, designadamente, [que] o Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas»;
[3] de não confessionalidade do ensino público;
[4] de que «[é] garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas»;
[5] de que «[a] educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista…»;
[6] de «assegurar o direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projectos individuais da existência…»;
[7] de «[d]escentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e acções educativas…».
8. Recursos materiais: as redes escolares, pública e privada
Vem depois um largo desenvolvimento da «organização do sistema educativo», onde nunca se faz coincidir o sistema educativo com a escola pública (estatal). E o mesmo se diga para a regulação dos «recursos humanos». Quanto aos «recursos materiais», a LBSE trata primeiro da «rede de estabelecimentos públicos» (art. 40º ss); e depois do «ensino particular e cooperativo» (art. 57º ss).
9. O ensino privado: estatuto, reconhecimento e integração no sistema educativo
Quanto trata especialmente do ensino privado, em capítulo próprio, a LBSE estabelece bases claras da sua legitimidade e do seu papel no sistema educativo, que não permitem a sua discriminação do serviço público escolar. Resumindo:
[1] afirma que ele se rege «por legislação e estatuto próprios» — o que tem de entender-se como remissão legitimadora para a Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (lei nº 9/79) e o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (DL nº 553/80), ambos em vigor à data da LBSE;
[2] reconhece-o expressamente como liberdade de aprender e como liberdade dos pais;
[3] integra-o na rede escolar;
[4] afirma-lhe o apoio do Estado, pedagógico, técnico e financeiro.
Vejamos.
10. Reconhecimento do ensino privado
Diz assim, no art. 57º da LBSE, sob a rubrica «Especificidade»: «É reconhecido pelo Estado o valor do ensino particular e cooperativo, como uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos».
Nesta disposição, merece ser sublinhado o reconhecimento do ensino privado não apenas como «uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar», mas também como «direito da família a orientar a educação dos filhos». Assim, do mesmo passo que se proclama a liberdade de ensino privado, esta liberdade é articulada com a liberdade dos pais escolherem o ensino e a escola — e já vimos que a Constituição garante a prioridade do direito dos pais relativamente a outras autoridades educativas, e mormente perante o Estado que não tem direito de educar. Portanto, a LBSE faz uma interpretação constitucional das liberdades de educação e do dever e direito dos pais na escolha da educação dos filhos — o qual inclui a liberdade de escolha da escola, pública ou privada, obviamente sem discriminação.
11. Integração do ensino privado no sistema educativo
E a LBSE diz ainda mais o seguinte, no art. 58º: «Os estabelecimentos do ensino particular e cooperativo que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo são considerados parte integrante da rede escolar». Este é um princípio muito claro. E por ser tão claro, o mesmo artigo continua dizendo assim: «No alargamento ou no ajustamento da rede, o Estado terá também em consideração as iniciativas e os estabelecimentos particulares e cooperativos, numa perspectiva de racionalização de meios, de aproveitamento de recursos e de garantia de qualidade».
Eis um programa legal inequívoco, que o actual Governo Sócrates não executa e antes pretende contrariar, como se vê pelo recente DL nº 138-C/2010. E contudo, a Lei de Bases do Sistema Educativo é uma lei de valor reforçado, que o Governo não pode revogar por Decreto Lei.
12. Apoios do Estado ao ensino privado
A LBSE é expressa quanto a esta matéria, desautorizando os frequentes ditos primários de que em Portugal o ensino privado é livre mas quem o escolher deve pagá-lo. Diz assim: «[o] Estado apoia financeiramente as iniciativas e os estabelecimentos de ensino particular e cooperativo quando, no desempenho de uma função de interesse público, se integrem no plano de desenvolvimento da educação…» (art. 61º). Esta norma de princípio só exclui dos apoios do Estado o ensino privado que não tenha interesse público e se exclua do plano de desenvolvimento da educação — plano este que não é um plano político-partidário do Governo da maioria, mas sim o plano da própria LBSE, das leis estatutárias do ensino privado e da lei da gratuitidade do ensino. Ora, estas leis estatutárias e da gratuitidade são claríssimas: quer quanto ao reconhecimento de interesse público ao ensino privado; quer quanto à inclusão do ensino privado nos apoios do Estado, e em especial o seu financiamento. Como veremos adiante.
13. Conclusões sobre o sistema educativo da Lei de Bases
Em conclusão: em respeito e desenvolvimento da Constituição, a LBSE estabelece as bases de um sistema educativo que tem a função de servir os direitos fundamentais dos cidadãos, que são primacialmente os direitos de liberdade de aprender e de ensinar e de igualdade de oportunidades na garantia de acesso ao ensino escolar; sistema muito diversificado, aberto às prestações da sociedade civil e das entidades públicas, sendo todo ele, e não apenas na parte da sua rede estatal, objecto de uma política de coordenação a cargo do Estado — diz a lei: «a coordenação da política relativa ao sistema educativo, independentemente das instituições que o compõem, incumbe a um ministério especialmente vocacionado para o efeito» (nº 5 do art. 1º). Reconhece expressamente o ensino privado como expressão de liberdade e de livre escolha dos pais; reconhece o seu estatuto especial consagrado em legislação estatutária própria; integra-o no sistema educativo; e atribui-lhe o direito de ser apoiado pelo Estado, inclusive financeiramente. Em nenhum lugar da LBSE se atribui qualquer privilégio ou monopólio à escola estatal.
Bastaria portanto ler e interpretar sem preconceito a LBSE, para resolver o assunto e permitir a conclusão de que o actual Governo segue uma política contra a Constituição e contra a Lei quando discrimina a escola privada, como agora fez com o DL nº 138-C/2010.
14. Outras leis que desenvolvem a LBSE
Mas acresce que as leis estatutárias do ensino privado e a lei da gratuitidade do ensino obrigatório confirmam e desenvolvem, por sua vez, a Constituição e a própria LBSE, segundo a interpretação que aqui defendemos.
Muito brevemente, destacamos apenas três regimes legais em vigor: o da gratuitidade, o da rede escolar; e o das principais proibições de discriminação do ensino privado.
III - Leis estatutárias e da gratuitidade do ensino privado
15. Lei da gratuitidade nas escolas privadas
A Lei da gratuitidade do ensino obrigatório (DL nº 35/90) diz expressamente: «O presente diploma aplica-se aos alunos [não diz às escolas] que frequentem o ensino não superior em estabelecimentos de ensino oficial, particular ou cooperativo» (art. 1º). E acrescentou: «[o] cálculo dos encargos decorrentes da aplicação do presente diploma ao ensino particular e cooperativo e a assumir por conta das dotações do Estado será feito com base nos custos relativos ao ensino oficial» (art. 25º). Esta disposição do art. 25º foi agora revogada pelo Decreto Lei inconstitucional do Governo Sócrates, bem como o art. 28º, que contém duas normas: a que permite uma aplicação gradual do regime do diploma e a que remete essa aplicação para a base do regime dos contratos com as escolas privadas estabelecido no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, DL nº 553/80.
16. Lei da rede escolar
Quanto ao desenvolvimento da rede escolar, além da norma da Lei de Bases do Sistema Educativo, acima transcrita, vigora ainda o DL nº 108/88, que repete: «As escolas particulares e cooperativas passam a fazer parte integrante da rede escolar, para efeitos de ordenamento desta» (nº 1 do art. 1º). E ainda: «[é] atribuída prioridade na construção de escolas públicas, de acordo com as necessidades da rede escolar dependente do Ministério da Educação, em zonas onde não existam escolas particulares e cooperativas...» (art. 3º).
17. Proibição de discriminar a escola privada em favor da escola pública
Em terceiro lugar, e quanto às específicas disposições legais que proíbem o Estado de discriminar desfavoravelmente a escola privada, temos várias leis a citar. Talvez não haja no regime português nenhuma outra matéria de liberdades fundamentais e de direitos sociais com tantas e tão explícitas declarações legais proibindo a concorrência discriminatória do Estado contra as iniciativas privadas.
18. Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo
Podemos começar historicamente pela Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, de 1979. Partindo da situação de facto, em que as escolas públicas eram ao tempo totalmente financiadas pelo Estado, e as privadas não, estabeleceu essa lei: «...são atribuições do Estado: […] conceder subsídios e celebrar contratos para o funcionamento das escolas particulares e cooperativas, de forma a garantir progressivamente a igualdade de condições de frequência com o ensino público nos níveis gratuitos e a atenuar as desigualdades existentes nos níveis não gratuitos» (al. d) do nº 2 do art. 6º). «Os contratos de trabalho dos professores do ensino particular e cooperativo e a legislação relativa aos profissionais de ensino, nomeadamente nos domínios salarial, de segurança social e assistência, devem ter na devida conta a função de interesse público que lhes é reconhecida e a conveniência de harmonizar as suas carreiras com as do ensino público» (art. 12º). «Aos alunos das escolas particulares e cooperativas, estejam ou não sob regime de contrato, são reconhecidos e concedidos, sem quaisquer discriminações, os benefícios e regalias previstos para os alunos das escolas oficiais no âmbito da Acção Social Escolar» (art. 16º). «O Governo promoverá anualmente a introdução no Orçamento Geral do Estado dos dispositivos adequados à execução desta lei» (art. 18º).
19. Lei da Liberdade de ensino
É extraordinário que a Assembleia da República de 1979 não se tenha dado por satisfeita com estas normas tão claras e incisivas da Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, e tenha aprovado, poucos meses depois, uma nova Lei, chamada da Garantia da Liberdade do Ensino, a Lei nº 65/79, com praticamente apenas três pontos.
O primeiro, para declarar enfaticamente que o Estado tem de respeitar a prioridade do direito dos pais escolherem o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções: «[a] liberdade do ensino compreende a liberdade de aprender e de ensinar consagrada na Constituição, é expressão da liberdade da pessoa humana e implica que o Estado, no exercício das suas funções educativas, respeite os direitos dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos seus filhos em conformidade com as suas convicções» (art. 1º).
O segundo, para garantir que as escolas privadas são expressão da liberdade de ensino; proibir qualquer discriminação «de natureza económica, social ou regional»; e afirmar a «ausência de qualquer tipo de discriminação, nomeadamente ideológica ou política, na autorização, financiamento e apoio por parte do Estado às escolas particulares e cooperativas...»: «[a] liberdade do ensino exerce-se, […] designadamente, por […] [e]xistência progressiva de condições de livre acesso aos estabelecimentos públicos, privados e cooperativos […] sem discriminações de natureza económica, social ou regional [e com] [a]usência de qualquer tipo de discriminação, nomeadamente ideológica ou política, na autorização, financiamento e apoio por parte do Estado às escolas particulares e cooperativas […] (art. 2º).
E o terceiro, para criar o «Conselho para a Liberdade do Ensino»: «[é] criado junto da Assembleia da República o Conselho para a Liberdade do Ensino, com a atribuição de velar pelo respeito da liberdade do ensino e de apreciar quaisquer infracções à mesma, nos termos da presente lei» (art. 3º ss.) — até hoje não implementado.
IV - Breves notas críticas conclusivas
20. Não há qualquer base constitucional ou legal que permita a discriminação da escola privada
Há monopolização estatal do serviço público escolar quando se reserva exclusivamente para as escolas estatais (com exclusão das escolas privadas, ainda que legalmente reconhecidas de interesse público) o financiamento público em ordem à satisfação dos direitos constitucionais fundamentais de acesso ao ensino com direito de igualdade de oportunidades.
Ora, depois da leitura que fizemos das bases constitucionais e legais na matéria, conclui-se sem dificuldade que não há nenhuma base, nem constitucional nem legal, para se poder defender um monopólio de Estado no serviço público escolar. Pelo contrario, o que se lê bem claramente é uma proibição de discriminação do ensino privado.
No texto constitucional de 1976, antes da primeira revisão constitucional, de 1982, podia falar-se de um monopólio de Estado quanto à rede escolar de escola pública. O ensino privado era qualificado como supletivo e a própria garantia de liberdade de criação de escola privada tinha sido omitida no elenco das liberdades fundamentais. Mas depois das revisões constitucionais de 1982 e de 1989 o texto constitucional mudou radicalmente. Como vimos, as várias leis estatutárias que interpretam e densificam o regime da Constituição (designadamente a LBSE e a lei da gratuitidade do ensino obrigatório) confirmam claramente que não é hoje possível discriminar os alunos das escolas privadas nos apoios estaduais ao ensino, designadamente financeiros.
21. A rede pública é um bem colectivo, mas não tem monopólio do serviço público
A existência de uma rede de escolas estatais, à disposição de todos os que as quiserem utilizar, é um bem colectivo que não ofende os direitos fundamentais. Pelo contrário. Por isso, não é contestável. Que seja garantida a sua gratuitidade universal, durante o ensino obrigatório, é constitucional. Mas o que não tem justificação é que a rede estatal tenha o monopólio do serviço público de ensino, com a exclusividade do seu financiamento pelo Estado, em concorrência inimiga e desleal com as escolas privadas — que constituem, em si e a partir de si, exercício de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. São esses exclusivos, e apenas esses (não a rede estatal em si), que se perfilam como contrários à garantia constitucional (jurídica e fáctica) bem entendida dos direitos fundamentais. Como defendem Marçal Grilo e Guilherme de Oliveira Martins, dois ex-ministros da educação em Governos PS: «não deve […] confundir-se escola pública e serviço público de educação, pois que este tanto pode ser prestado por instituições públicas como por instituições privadas...».
22. Jorge Miranda e Rui Medeiros: conteúdo da garantia constitucional de liberdade de educação
Vai neste sentido a interpretação de Jorge Miranda e Rui Medeiros, no seu Comentário à Constituição. Estes conhecidos professores de Direito Constitucional ensinam que «a liberdade de escola compreende: […] o direito de acesso a qualquer escola [...]; o direito de escolha da escola mais adequada ao projecto educativo ou cultural que se pretenda realizar, designadamente da escola mais adequada à formação moral, religiosa, filosófica, intelectual ou cívica dos filhos [...]; o direito de criação de escolas distintas das escolas do Estado...».
23. Relação entre escolas públicas e privadas
Quanto à relação entre as escolas estatais e as escolas privadas, Jorge Miranda e Rui Medeiros vêem aí um valor de liberdade: «…a liberdade de escolas não estatais [...] salvaguarda também a própria liberdade dentro das escolas estatais: até para que nestas escolas haja liberdade frente ao poder político, importa que em escolas não estatais possa haver opções de fundo, programas, métodos, livros diferentes dos das escolas do Estado ou que os complementem».
24. A liberdade de escola privada não é apenas liberdade económica
Muito importante é que Jorge Miranda e Rui Medeiros enfatizem que, «[…] embora o direito de criação de escolas particulares e cooperativas implique — pela necessidade de reunir os bens materiais indispensáveis — iniciativa económica (artigo 61º), ele deve ser entendido não como mera expressão dessa iniciativa económica, mas sim como expressão de liberdade de iniciativa cultural ou de concretização de projectos educativos». Portanto, como exercício de liberdade cultural, educativa, de comunicação, de expressão do pensamento, de liberdade religiosa, entre outras.
25. As liberdades de educação não estão funcionalizadas a objectivos de Estado
Como direitos individuais fundamentais constitucionalmente garantidos, as liberdades de aprender e de ensinar, bem como a liberdade de escola privada, enquanto direitos subjectivos, não podem ser diferenciadas, quanto à sua valorização constitucional, por uma prevalente opção institucional ou funcional-democrática favorável à escola de titularidade estatal, como é a interpretação publicamente conhecida de Vital Moreira. Pelo contrário, mantêm-se plenamente entendidas na referência ao seu titular pessoal, e daí que a pluralidade de alternativas, designadamente entre escola estatal e escola privada, seja uma garantia da própria liberdade individual, permitindo «o direito de escolha da escola mais adequada ao projecto educativo ou cultural que se pretenda realizar». É algo de homólogo ao que acontece na comunicação social.
26. As liberdades fundamentais de ensino privado são garantidas e apoiadas pelo Estado
Finalmente, e com toda a lógica: «para que [a] liberdade de escolha seja efectiva, têm de ser assegurados, a quem deseja frequentar um ou outro tipo de escola, os indispensáveis meios económicos». — isto é, tem o Estado de financiar o ensino quer nas escolas estatais quer nas escolas privadas (como estabelece a lei da gratuitidade). Esta não discriminação dos cidadãos em função da escolha da escola tem um carácter geral: o sistema de ensino, cuja democratização se pretende promover, abrange escolas de qualquer titularidade e escolas de todo os graus. Por conseguinte, a incumbência de estabelecimento progressivo de gratuitidade alarga-se até às escolas universitárias particulares e cooperativas, sob pena de incoerência e de inaceitável discriminação.
27. O conceito de direitos sociais
De acordo com a moderna concepção do Estado de Direito Democrático, os direitos sociais correspondem a direitos subjectivos dos cidadãos a prestações, como garantias fácticas de uma igualdade de oportunidades para o exercício efectivo dos direitos fundamentais de liberdade — efectividade esta que é a ideia essencial do «Estado Social». Não pode por isso o Estado conformar essas prestações fácticas à medida das suas opções partidárias de Governo, negando ou desviando a satisfação das liberdades individuais (liberdades de escolha). Por outras palavras, o Estado não tem legitimidade para optar por bens colectivos que contrariem os direitos fundamentais de liberdade apenas por razões ideológicas de Estado (como alegadamente seria o bem público do monopólio estatal da rede escolar). Se tanto escolas estatais como escolas privadas podem prestar o serviço público de ensino e satisfazer os direitos sociais, não há razão política para negar o direito de escolha, porque até não fica mais caro por isso ao Estado, e antes pelo contrário.
28. Inconstitucionalidade do recente diploma legislativo do Governo Sócrates
Assim, a execução político-administrativa e financeira do Estado, quando monopoliza o financiamento público do ensino na escola estatal, discriminando negativamente dos apoios financeiros os alunos das escolas privadas, vai contra a nossa «Constituição Educativa» e contra a legislação que a desenvolve e densifica, contra o estatuto constitucional e legal do ensino privado.
Neste sentido, é inconstitucional a machadada legislativa que, com o recente e polémico Decreto-Lei nº 138-C/2010, o Governo Sócrates veio dar recentemente no ensino privado. Diploma que não apenas reduz o montante do financiamento, como sobretudo precariza os contratos de associação e revoga normas jurídicas da lei da gratuitidade e da rede escolar — modificando assim, por simples Decreto Lei do Governo, organicamente inconstitucional, o estatuto jurídico do ensino privado.
Aliás, para evidenciar esta política inimiga das liberdades de escola privada, basta atentar no discurso político da Ministra da Educação, nos termos e modos como sempre ataca o ensino privado e sempre defende a escola pública — como se não tivesse o dever institucional de tutelar todo o ensino, público e privado. Nunca nenhum Ministro da Educação tratou tão mal o ensino privado, desde o PREC.