Nuno Serras Pereira
29. 01. 2009
Nos dias de hoje entrou uma mentalidade selectiva em numerosos membros da Igreja que só conhecem ou só citam determinadas passagens da Sagrada Escritura truncando desse modo a sua inteireza. Ao fazê-lo, independentemente das suas intenções subjectivas, distorcem-na e pervertem a sua interpretação. Esta gente admirável tem uma predilecção singular em classificar os denunciadores do mal e do pecado como descaridosos.
Uma pessoa assim, na iminência de um brutamontes rachar a cabeça da mulher à machadada, o mais que faz é segredar-lhe gentilmente ao ouvido que o seu acto é eticamente reprovável, dando depois um passo atrás por respeito às convicções do malvado e assistindo impávido ao desfecho fatal. Quando a multidão em magote acorre aos gritos ele limitar-se-ia a dizer que o assassino era um pobre coitado, sem culpa alguma, que tinha agido de acordo com a sua consciência. Sendo totalmente incapaz de acusá-lo de falta de caridade. E se fosse um sacerdote que tinha de celebrar a Missa ali ao lado e a polícia demorasse, daria com o maior dos à-vontades a Sagrada Comunhão, caso ele se abeirasse dela, a ele e ao cúmplice que ele tinha visto entregar o machado ao homicida sabendo e concordando com o que ele ia fazer. Se, porém, um outro estivesse presente e bramisse contra o homem do machado: minha besta ou paras quieto ou levas um enxerto de pancada! Seria imediatamente arguido de falta de caridade, mesmo que conseguisse impedir o homicídio e a acção pecaminosa do agressor.
Este tipo de cristãos parece não só descompreender o que seja a caridade, como é, ao que parece, incapaz de perceber que a mais grave injúria ou acusação que se pode fazer a alguém é a de ser descaridoso. Essa censura é imensamente maior do que o arremesso de quantos adjectivos depreciativos contenham todos os dicionários da nossa língua. No entanto, é usada com uma leviandade verdadeiramente temerária. Muitos dos que não ousam emitir o mais leve juízo sobres os promotores ou perpetradores dos crimes mais hediondos e abomináveis não têm o menor pejo em acusar de falta de caridade um seu irmão na fé que procura, não obstante os seus pecados e fraquezas, evangelizar ou apostolizar recorrendo a expressões e atitudes de personagens bíblicas, incluída a do próprio Jesus Cristo.
Se é verdade que o único que pode julgar da responsabilidade subjectiva da pessoa é Deus, só Ele conhece os corações, não é menos verdade que uma desculpabilização sistemática e total é sintoma de um olhar errado sobre o ser humano, pois dá-o como privado de razão e de liberdade e excluído dos auxílios daquela graça, necessária à salvação, que Deus concede a todos, mesmo quando n’ Ele não acredita.
Por outro lado aqueles cristãos acham que o amor, que Deus é, e a que nos chama, deve reverter sobre tudo e sobre todos. E nisso estão muito enganados pois o amor que é devido a todos não o é a tudo. Pelo contrário, o cristão tem uma obrigação precisa e inescapável de odiar o mal e o pecado. É a própria Sagrada Escritura que o ensina. Por exemplo, o título deste artigo é parte de uma citação do Salmo 97, 4: “O Senhor ama os que odeiam o mal …”. Se lermos os Evangelhos verificamos como a vida de Jesus foi um combate contínuo com o mal e o Maligno.
Verificamos também que Aquele que nos deu o mandamento do amor, e do amor aos inimigos, não viu contradição nenhuma entre isso que ensinou e o modo aparentemente descaridoso como, tantas vezes, o pôs em prática: “ Ele (Jesus), porém, voltando-se, disse a Pedro: «Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo …” (Mt 16, 23); “Vós (escribas e fariseus) tendes por pai o diabo, e quereis realizar os desejos do vosso pai. Ele foi assassino desde o princípio, e não esteve pela verdade, porque nele não há verdade. Quando fala mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira.” (Jo 8, 44).
Felizmente, não estava presente nenhum destes cristãos de hoje que têm sempre engatilhada a palavra amor ou caridade para as metralhar. Não é preciso um grande esforço para imaginar o escândalo e o repúdio que esta gente sentiria para com o Mestre manso e humilde de coração que rejeita um chamando-lhe Satanás e aos outros apelida-os de filhos do diabo, desejosos de ser assassinos e mentirosos como ele. E no entanto é evidente que isto foram expressões e atitudes do Seu amor por eles, assim como aquando da Sua santa ira quando expulsou os vendilhões do Templo.
Quem conhece o resto do Novo Testamento e a história da Igreja, sabe que estes exemplos de Cristo foram seguidos pelos Seus discípulos - somente no livro do Apocalipse, que também é Palavra de Deus, encontramos 40 vezes a palavra Besta para designar aquela realidade a que eu me referi num texto recente.
Combatei (ou odiai) o pecado, amai o pecador, dizia Santo Agostinho. Mas como toda a Tradição da Igreja ensina e hoje está muito presente em movimentos como os alcoólicos e os narcóticos anónimos o amor não é lamechice, e por vezes tem não só de ser firme mas também duro.