Maria Manuel  Serras Pereira foi dada à luz em Abrantes no dia 11 de Fevereiro de 1917. O dia  do seu nascimento é o de Nossa Senhora de Lurdes e o ano, do mesmo, o das  aparições de Fátima e da revolução comunista na Rússia. Todos saberemos que a  Virgem Maria, revelando-Se como a Imaculada Conceição, apareceu a Bernardette em  Lurdes fazendo desse santuário um lugar de acolhimento e cura de enfermos. Maria  Manuel foi toda a vida doente parecendo ter-lhe sido concedida a Graça de  participar nos sofrimentos de Cristo em favor da salvação do mundo. Foi sempre  muito devota de Nossa Senhora e uma acérrima inimiga do comunismo. Deus chamou-a  para Si no dia da Natividade de Maria Santíssima, 8 de Setembro do corrente ano,  no hospital de Abrantes, dando a impressão que a Virgem a veio buscar. Nasceu  para o Céu no dia em a Mãe de Deus nasceu para este mundo.
 Filha de David e  de Maria Guilhermina Serras Pereira, viu-se órfã de pai pelos vinte anos de  idade. Tinha como irmãos mais novos a Maria de Jesus (Májú) e o João Nuno. A  irmã partiu muitos anos antes dela, o irmão é vivo e conta 90  anos.
 Desde cedo amou a  vida com intensidade, vendo nela um dom precioso de Deus, e foi dotada de um  espírito de aventura, talvez raro para uma mulher naquele tempo. Gostava muito  de equitação, cavalgando por montes e vales, e aos 18 anos já a vimos feliz  voando naqueles aviões como os da primeira guerra mundial (1925).
 Na sua mocidade  dedica-se ao apostolado e evangelização tendo liderado a juventude católica  feminina em Abrantes. Quando vai a férias em Coimbra a casa do tio João Serras e  Silva, Lente da Universidade, trabalha com as noelistas e as criaditas dos  pobres, ajudando no cuidado dos mesmos e dos enfermos.
 Durante a segunda  guerra mundial funda a “Malta Brava” organizando acampamentos, na quinta de  família na Venda Nova, perto do Sardoal, acompanhada de uma amiga e do seu irmão  João Nuno. A malta brava era composta de rapazes, mais novos, que ela procurava  educar na Fé cristã. Como alguns eram dotados de forte agressividade uns para  com os outros ensinou-os a dirigi-la para o demónio, de modo que em vez de se  escavacarem entre si, exerciam um autodomínio, uma contenção, que significava um  espancamento do diabo. Cada vez que não faziam o que ele queria mas sim a  vontade de Deus isso correspondia a uma tareia no mafarrico. Como era dotada de  uma autoridade natural, sem ponta de autoritarismo, nunca precisou, para pôr a  malta na ordem, de bater em algum. Lembro-me de há alguns anos caminhando com  ela nas ruas de Abrantes, quando a sua memória já se delia e tinha dificuldade  em reconhecer algumas pessoas, de alguns homens se aproximarem cumprimentando-a  e dizendo “Eu sou fulano, da malta brava”. Descobri depois, acompanhando como  sacerdote peregrinações de jovens a Fátima, que numa terra entre Alcanena e  Minde, Moitas Vendas, existia um grupo denominado com o mesmo nome, seguramente  organizado por um desses rapazes que tinha passado pelo original.
 Maria Manuel  matrimoniou-se com Fernando Côrte-Real Alves Amaro, oficial de cavalaria, vindo  a enviuvar aos 13 anos de casada, devido a uma acidente de automóvel, perto de  Almeirim. Para grande desgosto dos dois não puderam ter filhos. Aconteceu, por  isso, que nós os sobrinhos viemos a ser tratados como se fôramos  tais.
 Quando a tia Maria  Manuel tentava ensinar a sua sobrinha mais velha, a Margarida (Begui), com pouco  menos de dois anos, a pronunciar o seu nome esta não conseguia senão articular a  palavra Mená, pelo que a partir daí a Maria Manuel, em família, passou a ser  tratada por esse nome.
 Foi a Mená que me  preparou, juntamente com o filho mais velho do jardineiro, o Armando, para a  primeira Comunhão. Lembro a Fé o carinho com que o fez e em especial o facto de  me ter dito que quando comungasse a minha alma ficaria mais branca do que o  Sacrário, o que me pareceu algo de verdadeiramente extraordinário e só possível  por milagre. Naquele tempo o Sacrário era reconhecido como tal, isto é, como o  lugar onde verdadeira e realmente está Deus humanado e, por isso, era imponente  como o Santo dos Santos de um templo e rodeado de todas a reverências e  adorações. Hoje, com o que para aí anda de pechisbeque, irreverências e  indiferenças parece quase impossível que os católicos ainda acreditem na  Presença real de Jesus na Eucaristia.
 Esta “catequese”  que então me proporcionou continuou com o exemplo da sua vida, pois ia  diariamente ao hospital da Misericórdia ajudar as Irmãs enfermeiras, levando-me  algumas vezes consigo, e não poucas vezes a acompanhei a visitar enfermos pobres  a quem levava consolo e cabazes de alimento.
 Uma das vezes em  que me levou ao hospital obrigou-me a ver, com grande repugnância minha, o  tratamento nas urgências de uma moça, mais ou menos da minha idade, com o corpo  todo queimado devido ao descuido com uma lareira. Foi um verdadeiro acto de amor  não me deixar ir embora nem virar a cara porque tanto eu como meus irmãos  tínhamos o costume temerário de brincar com o fogo da lareira quando apanhávamos  os adultos desprevenidos. Ora naquela região havia muitas crianças que morriam  por causa dos descuidos com as lareiras. Ficou-me de lição.
 A tia Mená,  juntamente com a sua mãe e minha Avó, e durante algum tempo o tio Fernando,  educou e formou, durante largos períodos, nove sobrinhos e uma catrefada de  sobrinhos netos. Na nossa meninice, adolescência e parte da juventude ora por  motivos de dificuldades de emprego do pai ora pelas férias de Natal, da Páscoa e  as intermináveis (mais de três meses) de Verão passávamos o tempo em Abrantes.  
 A sua relação  connosco embora fosse de grande afectividade nunca teve nada de lamechas, coisa  aliás a que era completamente alérgica. Dotada de uma imaginação prodigiosa e de  um “magnetismo” singular contava-nos narrações coloridas, cromáticas,  embevecedoras, cheias de peripécias e graças que nos faziam mergulhar num mundo  outro, fantástico. A mais das vezes eram histórias dos “nossos amigos” - um  grupo de animais - de fazer inveja ao Walt Disney, ou do castelo dos anões que  havia na Venda Nova, outras vezes “delírios” que nos faziam susto com os seus  fantasmas, como o “Padre das batatas”, assim chamado pelos altos que tinha na  cabeça, antigo vizinho, já falecido, mas cujos passos e rumores se ouviam ainda  por noite dentro, ou o lobisomem que corria sete serras vagueando por  Alcaravela, Vila de Rei e mais além.
 Sendo uma  entusiasta de S. Francisco de Assis com quem se identificava muito no seu amor à  natureza e aos animais (pelo contrário, tinha uma dificuldade grande com a  espiritualidade de S. João da Cruz) tinha com estes uma relação extraordinária.  Parece que não havia bicho que ela não encantasse ou “hipnotizasse”. Os cães  mais ferozes e bravos amansavam diante da sua voz maviosa e do seu olhar doce,  para grande espanto dos seus donos que a precaviam com sérias admoestações.  Domesticou, e teve em casa, raposas, ouriços-cacheiros, mochos, corujas,  coelhos, gatos, cães e, para grande horror da minha avó, um rato – no jardim, e  as aranhas do quintal a que dava festinhas sem que elas fugissem ou a picassem.  Sempre que íamos a Abrantes era certo haver uma ninhada de gatinhos que nos  deliciava e com que brincávamos. Uma vez que morreu a mãe de uma ninhada a tia  Mená conseguiu que a bigodaças, uma coelha que se passeava pela casa em  companhia de um cão fox-terrier e dos gatos, amamentasse a ninhada órfã, e assim  esta sobreviveu.
 Connosco tinha um  enorme bom humor, até nos ralhetes ou castigos que nos dava. Às vezes, para nos  pôr na ordem, dizia pausadamente, com voz grave uma frase de Aquilino Ribeiro:  olhem que “eu bato com o malho no talho, deito a carvalhosa abaixo e como melros  e melráchos.” Na sua voz nunca havia agressividade ou desdém embora raramente  pudesse haver alguma irritação. Se nos portávamos mal à mesa mandava vir um  alguidar da cozinha, virava-o ao contrário e punha-nos a comer no fundo do  alguidar, como se fora uma grande humilhação, mas sempre temperada de muito bom  humor. Tinha uma vergasta com que nos ameaçava mas que só usava quando  ultrapassávamos todos os limites. Então dava-nos com ela na barriga das pernas  de modo a que doesse um bocadinho mas não magoasse verdadeiramente. Que limites  eram esses? Dou dois exemplos para que se perceba: uma vez deu connosco debaixo  da cama do nosso pai, que estava para Lisboa, fazendo uma fogueira, a brincar  aos índios…; outra: como tantas vezes acontecia avisaram que a água ia faltar  por dois ou três dias. Como era costume enchiam-se jarros, alguidares,  lavatórios e banheiras. Pois foi dar connosco esvaziando alegremente as águas  armazenadas – eu tinha dois anos e já ajudava à festa. 
 No seu quarto  tinha guardado, numa gaveta, a “trela russa” que era uma espécie de correia ou  chicote entrelaçado reservada para os “grandes” castigos. Quando acontecia  apanharmos, coisa raríssima, com ela era com a mesma debilidade com que nos dava  com a vergasta, nem uma mínima marca ficava, nem ligeiro rubor, mas a solenidade  do nome dava um peso maior ao acontecimento. Mas o pior dos castigos era a “sova  fora do rabo”. Isso sim era terrível. Combinada com as empregadas domésticas  ameaçava-nos com a sova fora do rabo e elas numa aflição gritada e gesticulada  clamavam: “Ó minha senhora, isso não! Tudo menos isso! Dê-lhes antes com o  cavalo-marinho!” Mas a tia Mená implacável punha-nos em cima da sua cama de rabo  para o ar e com quantas forças tinha batia rijamente no colchão palmadas  medonhas. E nós chorosos pela crueldade dos tormentos e dos  tratos…
 Quando nos  armávamos em inteligentes com a idiotia presunçosa da adolescência logo nos  desarmava dizendo “Ai que tenho um sobrinho estaburro (sic), animal de cabresto,  habitante do pocilgo”. 
 Mas uma vez dado o  raspanete ou o castigo não voltava ao assunto, nem repisava, nem humilhava, mas  dava-nos rédea solta para andarmos à vontade.
 E tantas vezes nos  acompanhou na doença e a mim na quase morte quando estive em coma por vários  dias.
 A Mená foi o único  jornalista português presente no Concílio Ecuménico Vaticano II – escrevia  crónicas para o jornal A Voz e o Diário da Manhã. Aí conheceu e  entrevistou muitos Bispos e Cardeais, entre os quais, Karol Wojtylia, futuro  Papa João Paulo II, o Irmão Roger, fundador de Taizé, com quem depois se  carteou, o então jovem teólogo Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, o  Patriarca de Alexandria que lhe falou num português correctíssimo, para grande  espanto dela, pois era um admirador e leitor assíduo do Eça de Queirós, etc.  Ouvi-lhe muitas histórias muitas vezes sobre esses tempos que passou em Roma, o  que viu, as conversas que teve, as personagens e prelados que conheceu, tantas  coisas que soube interessantíssimas. (Há vários anos, creio que há oito, falei a  uma jornalista de RR nesta minha tia. Pelos vistos não houve interesse em  conhecê-la e ouvi-la sobre esses tempos, agora é tarde.). Ficou fascinada com  Roma e com a Itália em geral: Assis, Sena, Florença, Veneza, etc.  
 Depois como  aventureira que era viajou por França e pela Suíça de onde nos trazia uns  chocolates magníficos – naquele tempo não havia nem por sombras a variedade de  chocolates que agora se encontram em qualquer hipermercado, tanto quanto me  lembro havia duas ou três das quais só uma era comestível.
 Mais tarde, devido  aos desmandos pós Conciliares, feitos em nome do Concílio Vaticano II mas  cujo intuito real era o de destruir a Igreja, ignorar a Tradição e subverter as  verdades de Fé insere-se, para além da Acção Católica, a que já pertencia, em  grupos e movimentos de resistência e fidelidade a Santo Padre, à Igreja, a Fé  verdadeira.
 Impelida por um  desejo missionário resolveu-se a ir a Moçambique onde passou largos meses  ajudando as freiras nos seus trabalhos. Em outra altura foi também a Angola.  Como o dinheiro lhe escasseava não o tinha para pagar essas viagens como um  passageiro normal. Mas uma vez que era viúva de militar concediam-lhe que  apanhasse boleia nos aviões militares a hélice. Apanhou alguns sustos com  grandes poços de ar e tempestades, mas como sempre foi muito corajosa não se  deixou atemorizar.
 Mais tarde virá a  ser crítica de programas da então Emissora Nacional. Embora ganhasse um magro  ordenado servia-lhe de ocupação e entretenimento.
 Depois que Deus  chamou a si a sua mãe e minha Avó  resolveu-se a ir morar no Sardoal. A casa era mais pequena, mais aconchegada, e  em virtude da população ser menor sentia-se mais em família, tanto mais que ali  tinha muitas raízes.
 Para prover ao seu  sustendo, começou a meter-se em negócios de venda e urbanização de terrenos que  por aqueles sítios tinha herdado. Ao princípio a família temeu, uma vez que,  exceptuando um dos meus irmãos, parecia que havia como que uma sina genética, de  ambos os lados, para o desastre em matéria de negociações. Depois, a sua idade  era tão avançada que esperava-se o pior. Para surpresa geral teve bom sucesso  assegurando a autonomia, que sempre muito estimou.
 As suas  enfermidades que a acompanharam toda a vida foram-se agravando e as suas forças  debilitando. Apesar disso teimou sempre em continuar a viver sozinha. Que não  lhe falassem em ir viver com a família para Lisboa e em lares muito menos. No  entanto, pelo Natal vinha de boa vontade e com muita alegria passar essa festa  em casa do irmão ou da sobrinha Marta.
 Como ela outrora  correu levando-nos ao hospital, normalmente por cabeças partidas, nestes últimos  anos de vida também nós a levámos inúmeras vezes ao hospital e consultas, pois  sempre que cá vinha apanhava alguma pneumonia ou outra maleita.
 No último ano de  vida, para além da sua Anabela que a servia como fosse sua filha, com enorme  dedicação, muito lhe valeu o seu primo António João e sua mulher Pilar, que  foram incansáveis e de uma generosidade sem limites. Também vários sobrinhos e  sobrinhos netos a acompanharam com muito amor nos últimos tempos.
 Depois de uma  queda no Sardoal a sua decadência física foi-se agravando velozmente. Ainda foi  ao jantar dos 90 anos do seu irmão meu pai a 16 de Julho. Os últimos tempos,  passou-os quase sempre no hospital de Abrantes, onde foi muito bem tratada.  
 Confessei-a, e o  seu Pároco, o Padre Carlos, deu-lha a Santa Unção. Mais tarde rezei com ela,  dei-lhe de novo a absolvição e a indulgência plenária. Nunca desistiu da vida  apesar de tanta maleita mas aceitou com grande paz quando Nossa Senhora a veio  buscar. Sempre soube e nos ensinou que a vida, esse esplêndido dom de Deus, vale  a pena ser vivida, mesmo com sofrimento e tribulações, mas que ela é sinal e  caminho para aquela Vida eterna, que Deus quer para todos, onde encontraremos a  felicidade absoluta e reencontraremos os nossos que nos precederam. “À medida  que o exterior se vai degradando o interior se vai renovando”, poderia ela  repetir com S. Paulo.
 Teve os seus  pecados, defeitos e limitações. Mas arrependia-se, confessava-se e andava para a  frente não desistindo nunca. Agora, como dizia numa carta que nos deixou para  ser lida após a sua partida, está junto a Deus com a “trela russa” olhando por  nós e se for preciso pedirá ao Senhor que a deixe usar para nos corrigir. É sem  dúvida alguma a tia a que todos estamos mais ligados, a que mais estimamos e a  que deixa mais saudades. Foi a melhor tia do mundo.
Nuno Serras  Pereira
 21. 09. 2010