quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Eleições: limitar crueldades e perversões?

1. O Episcopado português alertou os cristãos para que não traíssem as suas consciências no acto de votar nas próximas eleições. Admitir a possibilidade dessa aleivosia ou deslealdade é o mesmo que confessar a existência de uma verdade objectiva, reconhecida pela consciência, que não é compatível com determinadas escolhas partidárias.

2. No espectro político português existe um consenso generalizado em relação a um número significativo de direitos humanos, por exemplo, direito à saúde, à habitação, ao emprego, etc. No entanto, essa unanimidade não se verifica quanto aos modos de alcançar ou possibilitar o exercício desses direitos. Uns cuidam que se consegue de uma maneira e outros de outra. Os cristãos, perante a complexidade destas questões, podem legitimamente divergir entre si sem que traiam a verdade inscrita nas suas consciências. Tudo depende do juízo prudencial que cada um é chamado a exercitar com um profundo sentido de responsabilidade.

3. Todos sabemos, pela comunicação social, que há partidos políticos que têm programas e modos de acção totalmente incompatíveis com a verdade objectiva, à qual a consciência se deve conformar, do valor absoluto (absoluto relativo ao Absoluto) da dignidade de toda a pessoa humana. Os direitos a que nos referimos no nº 2 são pretensões que derivam dessa dignidade. No entanto, a dignidade da pessoa humana tem outras exigências que esses partidos repudiam mas das quais nunca se pode abdicar: o direito à vida desde a concepção até à morte natural – que se opõe ao aborto, à experimentação em pessoas na sua etapa embrionária, à clonagem, ao suicídio assistido e à eutanásia; o direito a constituir família, fundada no matrimónio entre um varão e uma mulher, até que a morte os separe, à sua protecção e promoção – que se opõe ao divórcio, ao “casamento” entre pessoas do mesmo sexo e à reprodução artificial; o direito à liberdade de ensino e de educação – que se opõe, por exemplo, à educação sexual obrigatória nas escolas.

4. Se há várias forças políticas que não só aceitam como agridem a verdade que a consciência cristã testemunha outras haverá que a defendem e propugnam. Porém, o cristão poderá deparar-se com situações que lhe coloquem um dilema. Por exemplo, pode existir um partido mais conforme à verdade integral que a consciência testemunha mas que não tem possibilidade de chegar ao poder; enquanto um outro, embora inquinado, poderá, caso tenha os votos suficientes, limitar a crueldade e as perversões daqueles que as têm legislado e as querem alargar ainda mais. Neste caso não poderemos dizer que seja ilícito votar nesse partido maior uma vez que o eleitor não escolhe votar nas suas iniquidades mas sim no poder que ele tem de evitar males maiores. Não se escolhe por isso o mal menor mas sim o bem possível naquela circunstância. Pode não só ser lícito mas até uma obrigação moral, caso seja certa sua eficácia real em reduzir danos tamanhos. Numa situação dessas, alguns pequenos partidos poderiam mesmo, caso o entendessem, convidar os seus adeptos a votarem noutra força partidária. Todavia importa muito notar que houve imensa gente, por exemplo, que votou Cavaco Silva precisamente com essa convicção e ele afinal acabou por fazer ainda pior que os outros.

Nuno Serras Pereira

24. 09. 2009

Carta ao amigo Luiz Bassuma de Hermes Rodrigues Nery

São Bento do Sapucaí, 23 de setembro de 2009

Caríssimo amigo LUIZ BASSUMA,

No dia 17 de setembro, o Partido dos Trabalhadores, outrora defensor da liberdade de expressão e de opinião e dos princípios democráticos, emergiu a face sombria, orwelliana, contida em toda estrutura dominada pelo afã de poder, que já não leva em conta a dignidade da pessoa humana (princípio fundamental da nossa Carta Magna, art. 1º, III), mas os pérfidos interesses de uma lógica de poder que se volta contra o ser humano.

O Partido dos Trabalhadores que outrora criticou FHC, o "príncipe dos sociólogos" por ter dito "esqueçam o que escrevi", agora age com mais pragmatismo, por conta das exigências desse mesmo poder que espolia a alma humana, vitimando as sãs consciências, não corrompidas por vilezas e pactos faustianos. Voltam-se contra um princípio fundamental da nossa Constituição, para atender os propósitos daqueles que buscam impor uma cultura anti-solidária, porque não cultiva mais a gratuidade que faz da vida um dom fecundo e esplendente.

Esta cultura amplamente desumana "se configura como verdadeira ‘cultura de morte’. É ativamente promovida por fortes correntes culturais, econômicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade."1 É uma cultura forjada e alimentada (financiada por organismos internacionais) pelos detentores de um poder de alcance global, a disseminar por toda a parte contra-valores venenosos. Uma cultura que funciona como uma espécie de "camisa-de-força" a asfixiar a liberdade humana, a desviá-la da verdade, para descaracterizar e até destruir a própria identidade do homem como pessoa. Trata-se de "uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, conseqüentemente, rejeitada sob múltiplas formas"2

A estratégia dos que buscam impor esta "cultura da morte" é a mesma dos que impuseram – em outros períodos da história – sistemas opressores contra o ser humano. Em obra organizada por Norberto Bobbio, esta estratégia é bem explicitada: os detentores do poder buscam "induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de conformação, também em relação a uma mudança do sistema normativo".3

Para isso, existe "uma gama de sanções, extremamente variada e de peso punitivo diferente, entre as quais mencionamos, além do caso extremo da morte, os da privação de determinadas recompensas e direitos, as formas de interdição e de isolamento, as de reprovação social, de admoestação, de intriga e de sátira".4

Meu caro Bassuma!

A sua punição foi um primeiro indício do que poderá vir pela frente, do que poderão fazer contra aqueles que se posicionarem contra o que querem impor para todos: a sociedade hiper-tecnológica desprovida de humanidade. Foi uma primeira sanção, para intimidar os tíbios e acomodar os sequiosos pelo bem-estar às custas de um sistema opressor.

O fato é que tantas "injustiças e opressões"5 são "disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial"6, em que há décadas vêm criando a nova mentalidade que nega a primazia da pessoa humana e a sua dignidade.

O aborto é hoje a ponta do iceberg destes tempos convulsivos de pós-modernidade e pós-humanidade. Os que querem a sua aprovação, rebelam-se contra a lei natural (inscrita no coração de cada ser humano). É o ápice de uma revolta metafísica que não aceita o mistério da Criação e da Redenção, e quer fazer engendrar - aqui e agora - uma sociedade inteiramente artificial, para além da própria natureza humana, por obsessão do cientificismo vigente.

O que está em jogo são fortes interesses econômicos, políticos e demográficos. A pressão para a legalização do aborto faz parte dessa estratégia e existe por causa de ações com origem fora do Brasil, a longo prazo. Isso vem de longe, mas agora, estamos chegando ao limite ético, em que se quer mesmo destruir o conceito de pessoa humana, para que os fragilizados da nova ordem mundial sejam objetos manipuláveis. Começa hoje com os nascituros, amanhã com os idosos, depois com os deficientes, e mais ainda, com os descontentes e críticos do novo sistema mundial.

De modo imediato, a legalização do aborto é desejada por ser o meio mais rápido e eficiente de controle populacional.

As pressões para a legalização do aborto intensificam-se por toda a parte, pois interessam aos grupos promotores da "cultura da morte" o fim da estrutura natural da família para que a pessoa humana fique inteiramente vulnerável, para ser facilmente coisificada, deixando, portanto, de ser pessoa, para se tornar uma peça-objeto de uma engrenagem social totalmente desumanizada.

Como o aborto é reçhaçado pela maioria da população brasileira, conforme indicam as pesquisas de opinião, os grupos promotores da cultura da morte agem com muita astúcia, levando em conta o elevado nível de desinformação e desconhecimento desses mecanismos sofisticados de "controle social"; daí colocam em execução os meios de intervenção na sociedade, a partir de métodos sutilíssimos de manipulação.

"O manipulador não procura só provocar intencionalmente o comportamento que deseja do manipulado; procura também, de modo igualmente intencional, esconder a existência e natureza da ação que provoca o comportamento do manipulado"7. Assim, os meios de comunicação servem de instrumento apropriado para essa finalidade, para alienar e manipular, com o objetivo de obter, lentamente, o controle social, a partir da ideologia daqueles grupos que detêm o poder e querem impor o modus vivendi para os que acabam se tornando reféns desse sistema opressor.

A ideologia passa então a moldar uma "opinião pública" que funciona como roupagem (mesmo que artificial) costurada e imposta a contragosto dos usuários, mas que acabam não tendo outra opção a não ser aceitar o figurino imposto, por uma questão de sobrevivência, porque lhe tiraram o chão sob os pés. E então "a justificação ideológica do poder"8 "aceita tanto pelos dominados, quanto pelos dominadores"9, justamente por ser construída e imposta sob coação, acaba sendo uma "falsa consciência de uma situação de poder"10 "uma falsa motivação dos comportamentos de mando e de obediência"11, por isso todos os sistemas totalitários, ao longo da História, explodiram como numa panela de pressão, em revoluções sanguinárias e ódios incontáveis, ou mesmo implodiram por dentro, em lentas agonias, como no Império Romano. Esta "opinião pública ", que é falsa consciência, é co mo a Medusa mitológica, que pode ser vencida pelo escudo de Perseu; daí o valor e o sentido de sua militância lúcida e heróica, em favor dos mais indefesos, que são os nascituros.

Sendo falsa consciência e fabricada por ideólogos da opressão, a opinião pública pode contrariar, sim, a verdadeira consciência do homem, e funcionar como um desvio de propósitos, afastando-o daquilo que realmente lhe traz a felicidade. Por isso, "a legislação não pode basear-se somente no consenso político, mas também sobre a moral que se fundamenta em uma ordem natural objetiva."12 E a história tem demonstrado fartamente que o ser humano é mais forte do que as forças e os poderes que querem destrui-lo. O homem sem liberdade deixa de ser pessoa, fica reduzido e apequenado a uma vida de inseto (como bem expressou Kafka), porque manipulado como numa teia estrangulatória. Por isso, a manipulação é a pior forma de violência.

"A manipulação é um fenômeno unívoca e insofismavelmente negativo. Entre todas as formas de poder, é ela que acarreta mais grave condenação moral. Tem-se afirmado, por exemplo, que ela constitui ‘a face mais ignóbil do poder’ e ‘a forma mais inumana da violência’ ou que quem dela é vítima ‘é espoliado da alma’".13

Além das sanções referidas contra os que não se deixam corroer pela "falsa consciência" da "justificação ideológica do poder", os grupos promotores da cultura da morte agem mais sutilmente no campo dos controles internos, utilizando "meios com que a sociedade procura mentalizar os indivíduos – especialmente durante a socialização primária – sobre as normas, os valores e as metas sociais consideradas fundamentais para a própria ordem social"14 "aqueles que não ameaçam uma pessoa externamente, mas por dentro de sua consciência: ‘os controles internos dependem de uma socialização bem sucedida; se esta última foi realizada adequadamente, então o indivíduo que pratica certas transgressões contra as regras da sociedade será condenado pela própria consciência que na realidade constitui a interiorização dos controles sociais".15 Por isso tem sido investido tanto, especia lmente através dos meios de comunicação, para a difusão desta nova mentalidade que vem corroendo a beleza e a dignidade do ser humano, acuando as pessoas aos estilos de vida degradantes, encurralando-as ao beco sem saída da vida sem sentido, portanto indigna de se viver.

Feminismo radical, aborto, eutanásia, educação sexual liberal e homossexualismo fazem parte desta cultura inumana.

Mas agora, é possível que sejam intensificadas as sanções contra os promotores da cultura da vida: "uma gama de sanções, extremamente variada e de peso punitivo diferente".16

É preciso que se saiba claramente que a causa da vida humana, a defesa da família e da dignidade da pessoa humana trará exigências de sacrifícios, renúncias e sofrimentos. É causa nobre, que requer elevada consciência e magnanimidade. É defesa da civilização humana, do bem maior que possuímos, que é a vida, vida esta que nos foi dada para ser vivida na plenitude. Trata-se de uma cruzada, de um combate espiritual, em favor das promissões mais excelentes do ser humano. Por isso um bom combate.

Felicito-o por seu mandato pró-vida, pela lucidez e coragem com que tem sido perseverante no bom combate pela vida. Pois, "se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação". (Ecl. 2,1), com a convicção de que "as almas dos justos estão na mão de Deus" (Sab. 3,1).

Cordialmente,

Hermes Rodrigues Nery*

Bibliografia:

1. Evangelium Vitae, 12

2. Evangelium Vitae, 12

3. Franco Garelli, verbete Controle Social, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 1, p. 283, 1992)

4. Franco Garelli, verbete Controle Social, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 1, p. 284, 1992)

5. Evangelium Vitae, 5

6. Evangelium Vitae, 5

7. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 727, 1992)

8. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 728, 1992)

9. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 728, 1992)

10. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 728, 1992)

11. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 728, 1992)

12. Declaração de Aparecida em Defesa da Vida

13. Mario Stoppino, verbete Manipulação, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, p. 728, 1992)

14. Franco Garelli, verbete Controle Social, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 1, p. 284, 1992)

15. Franco Garelli, verbete Controle Social, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 1, p. 284, 1992)

16. Franco Garelli, verbete Controle Social, Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Edunb – Editora Universidade de Brasília, Vol. 1, p. 284, 1992).



*
Prof. Hermes Rodrigues Nery é Secretário-Geral do Movimento Brasil Sem Aborto, Coordenador da Comissão Diocesana em Defesa da Vida e do Movimento Legislação e Vida, da Diocese de Taubaté, e Vereador (PHS), Presidente da Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí (SP).