1. Por mais  surpreendente que possa parecer somente hoje é que tive acesso, na sua  inteireza, à carta do Cardeal-Patriarca de Lisboa, datada de 21 de Dezembro de  2009, dirigida aos Párocos e às comunidades cristãs (católicas) da Diocese de  Lisboa.
 Nela o  Senhor Patriarca começa por mostrar a sua indignação contra as insinuações  graves que um jornal diário da capital fez ao sugerir que teria havido um  “pacto” subentendendo uma certa condescendência da Igreja para com o  projecto-lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 
 Mais  adiante desmente que tenha havido qualquer “pacto” ou “compromisso” que “ …  significasse,  ainda que indirectamente, o condicionamento da liberdade da Igreja de afirmar a  sua doutrina acerca de qualquer problema da sociedade portuguesa.” Em seguida  esclarece que o primeiro-ministro reconheceu o direito da Igreja anunciar a sua  doutrina publicamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, através das  suas intervenções pastorais. Avançando, entretanto, que “A Igreja reconhece a  legitimidade legislativa do Estado, mas não deixará de interpelar a consciência  dos decisores e de elucidar a consciência dos cristãos sobre a maneira de se  comportarem acerca de leis que ferem gravemente a compreensão cristã do homem e  da sociedade.” Depois, reafirma que a Hierarquia anunciará a sua “posição”  quando entender oportuno pelos meios consentâneos com a sua missão. Logo  acrescenta, no plural (majestático? Ou a quem mais se refere?), que “não  consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão  política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são  livres de promover ou de nelas participar.”.
 Termina  afirmando que a doutrina da Igreja é conhecida mas que importa explicitar os  seus fundamentos, o que faz em cinco linhas… Conclui dizendo que se trata de  salvaguardar a verdade acerca do casamento e da família e não de tomar posição  sobre as pessoas homossexuais. 
 Pode  ler a totalidade da carta em nota de rodapé.
 2.  1. Eu suponho que o jornal diário a que o Senhor Cardeal-Patriarca se refere na  sua missiva é o i, pois foi o único,  do meu conhecimento, que avançou com tal notícia, assinada por Ana Sá Lopes.  Caso assim seja, verifico que o Senhor Patriarca não só não desmente a  substância do que foi noticiado como parece confirmá-lo. De facto, o jornal  noticiava a 17 de Dezembro: “O cardeal-patriarca de Lisboa, D. José  Policarpo, garantiu a José Sócrates que a decisão do governo não provocará  nenhuma guerra santa, soube o i.  A Igreja continuará a repetir a sua doutrina sobre o assunto mas não sairá à rua.” (itálico meu). Esta  frase é seguida, umas linhas adiante, por esta outra que lhe proporciona um  contexto interpretativo: “O PS ficou sossegado com a gestão do dossier casamento  gay a partir do momento que percebeu que não iria haver um combate na rua  liderado pela hierarquia.” Este sossego do partido  socialista explica-se porque em “Em Espanha, o cardeal Rouco, bispo de Madrid,  esteve na linha da frente anti-casamento gay e levou os católicos para a rua  onde engrossaram as manifestações anti-casamento gay. Em Portugal, a aprovação  da proposta de lei que institui o casamento entre pessoas do mesmo sexo não irá  contar com o mesmo tipo de oposição da hierarquia católica.”. Segundo a comunicação  social esta posição da Hierarquia da Igreja teria sido decisiva na resolução do  governo em avançar com o projecto-lei de legalização do “casamento” entre  homossexuais.
 2. 2. Ora  na sua carta, referindo-se obviamente, para usar a expressão do jornal, ao  “combate de rua” o Senhor Patriarca escreveu: “não  consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão  política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são  livres de promover ou de nelas participar.”
 Aqui  reparo, por diversas razões: a) Os nossos Bispos renunciaram porventura à sua  cidadania? Não vão eles votar, procurando com isso não só cumprir o seu dever  como dar exemplo aos católicos leigos para que também não o deixem de fazer?  
 b)  Não foram Bispos que convocaram e lideraram, no Norte e por este país abaixo,  manifestações multitudinárias que vieram a culminar na concentração na alameda  D. Afonso Henriques (Fonte Luminosa) contra o gonçalvismo? Sem essas iniciativas  nunca se teria dado esta e muito provavelmente teríamos permanecido muitos anos  sob a égide comunista.
 c)  Não organizou o próprio Jesus Cristo, modelo de todo o Bispo, uma manifestação,  por exemplo, com a entrada triunfal em Jerusalém?
 d)  Dar publicamente testemunho da verdade na caridade, saindo com o povo de Deus à  rua, quando ambas perigam gravemente, é uma pressão política incongruente com a  missão da Hierarquia?
 e)  São os Cardeais e Bispos que o fazem noutros países e nações inconsequentes com  a sua missão?
 2. 3.  Escreve o Senhor Patriarca que “A  Igreja reconhece a legitimidade legislativa do Estado … ”. Pelo contexto esta  frase parece só poder significar que a Igreja reconhece, sem mais, a  legitimidade absoluta do Estado para legislar seja o que for. A continuação da  frase não contradiz esta afirmação categórica mas limita-se a chamar a atenção  para as questões do esclarecimento das consciências e dos comportamentos por  parte dos católicos. Se interpreto correctamente isto significaria que o Estado  teria legitimidade para elaborar leis injustas. Sendo assim, teria inteira  legitimidade para decretar o extermínio dos judeus, para elaborar “leis”  racistas, para liberalizar o aborto e a eutanásia, para legalizar “casamentos”  entre pessoas do mesmo sexo e todas as demais monstruosidades que lhe possam  ocorrer. Mas isso seria um absurdo tamanho que repugna não só à consciência  cristã mas a toda a consciência verdadeiramente humana. Que isto está em total  contradição com a Tradição e doutrina da Igreja não é preciso demonstrá-lo,  desde Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, passando pelo Papa João XXIII até  ao Papa Bento XVI todos ensinam exactamente o contrário do que se pode  depreender dessa afirmação. Acresce que não é a primeira vez que as palavras do  Senhor Patriarca, neste aspecto, parecem ser uma negação da verdade anunciada  pela Igreja. Por que será? Será que o defeito está em mim? Não haverá alguém que  me esclareça? 
 2.  4. Depois, afirma que a salvaguarda da verdade acerca do casamento e da família,  nesta questão do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, nada tem a ver com a  tomada de posição sobre as pessoas homossexuais. Como isto é possível é coisa  que não entendo de todo. Pois se o que está em questão é precisamente a  reivindicação por parte de pessoas homossexuais do “casamento” entre elas como é  que isto nada tem a ver com elas, isto é, com a posição sobre elas, ou seja, com  a verdade sobre elas? A mim parece-me extraordinário e mesmo impossível. Mas  ficarei imensamente agradecido a quem me possa esclarecer.
Nuno Serras  Pereira
 11. 01. 2010
 
    Irmãos e  Irmãs,
 A propósito da  aprovação pelo Governo do Projecto de Lei sobre o casamento entre pessoas do  mesmo sexo, a apresentar à Assembleia da República, um jornal diário da capital  noticiou em título que o Patriarca de Lisboa, num encontro com o  Primeiro-Ministro, celebrou com ele um “pacto”, subentendendo nesse título uma  certa condescendência da Igreja com o referido Projecto-Lei. Dada a gravidade da  insinuação que deixou perplexos muitos católicos, dirijo-vos esta carta para  esclarecer o que realmente se passou.
                1. O Patriarca de Lisboa  encontrou-se, de facto, com o Senhor Primeiro-Ministro, a pedido deste, no dia  20 de Outubro. Ficou assente entre ambos que não haveria declarações para o  público sobre os assuntos nele abordados. O Patriarca de Lisboa foi fiel a este  compromisso de discrição. Consideramos perfeitamente normal que, apesar do  ordenamento constitucional de separação da Igreja e do Estado, que não exclui o  princípio da cooperação confirmado na Concordata, haja momentos de diálogo entre  os Órgãos de Soberania e a Hierarquia da Igreja. Esses encontros são, por  natureza discretos, dada a consciência mútua de que a Hierarquia da Igreja não  quer imiscuir-se na esfera política e na área de competência do Estado e dos  seus Órgãos de Soberania.
                2. O encontro noticiado, o  primeiro entre o actual Primeiro-Ministro e o Patriarca de Lisboa, foi uma troca  de impressões sobre diversos aspectos da nossa sociedade actual, da qual a  Igreja faz parte enquanto comunidade particularmente significativa. Acerca de  nenhum dos pontos abordados nesse encontro, houve “pactos” ou “compromissos”.  Ambos os interlocutores estavam conscientes da especificidade das instituições  que representavam. Nem o Senhor Primeiro-Ministro sugeriu nenhum “pacto”, nem o  Patriarca de Lisboa podia assumir qualquer compromisso que significasse, ainda  que indirectamente, o condicionamento da liberdade da Igreja de afirmar a sua  doutrina acerca de qualquer problema da sociedade  portuguesa.
                3. O assunto referido pela  comunicação social, a possível legalização do casamento entre pessoas do mesmo  sexo, foi realmente abordado. Mereceu um intercâmbio de perspectivas sereno e  franco. O Senhor Primeiro-Ministro afirmou a sua determinação em avançar com o  Projecto, o Patriarca de Lisboa reafirmou a posição da Igreja e a disposição de  a afirmar publicamente quando achasse oportuno e pelos meios próprios da sua  intervenção pastoral, direito da Igreja que o Senhor Primeiro-Ministro  claramente reconheceu.
                4. A Hierarquia da Igreja mantém,  assim, toda a liberdade de anunciar a sua doutrina acerca desta questão e  fá-lo-á quando achar oportuno e pelos meios consentâneos com a sua missão. A  Igreja reconhece a legitimidade legislativa do Estado, mas não deixará de  interpelar a consciência dos decisores e de elucidar a consciência dos cristãos  sobre a maneira de se comportarem acerca de leis que ferem gravemente a  compreensão cristã do homem e da sociedade.
                A Hierarquia da Igreja usará os  meios e os modos consentâneos com a sua missão: proclamação da sua doutrina e o  diálogo com pessoas e instituições para o qual está sempre disponível. Não  consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão  política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são  livres de promover ou de nelas participar.
                5. A doutrina da Igreja acerca do  casamento entre pessoas do mesmo sexo é conhecida. Nesta circunstância concreta,  é, certamente, ocasião de explicitar claramente os seus fundamentos. Está em  questão uma alteração grave da compreensão antropológica do casamento, da sua  dimensão institucional baseada num acordo celebrado entre um homem e uma mulher,  constituindo, assim, uma família, célula base da sociedade. Esta concepção do  casamento e da família está, desde sempre, expressa em todas as culturas, porque  radica num elemento basilar da verdade da natureza.
                Não se trata, nesta  circunstância, de tomar posição sobre as pessoas homossexuais; a doutrina da  Igreja, marcada pela verdade e pela caridade, está claramente expressa.  Trata-se, isso sim, de salvaguardar a verdade acerca do casamento e da  família.
 A Encarnação do  Verbo de Deus, que estamos a celebrar no Natal, exige de nós a firmeza da  verdade e a bondade da caridade.
                Desejo a todos um Santo  Natal.
                Lisboa, 21 de Dezembro de  2009
 † JOSÉ,  Cardeal-Patriarca