Pedro Vaz Patto
Juiz de Direito
No momento em que escrevo, está em discussão numa comissão da Assembleia da República o Projecto de Lei nº 319/XI, do Bloco de Esquerda, que «altera o Código de Registo Civil, permitindo a pessoas transexuais a mudança de registo do sexo no assento de nascimento»[1]. De acordo com este Projecto, bastará, para tal mudança, essencialmente, a apresentação de documento médico comprovativo de que a pessoa em causa vive, há pelo menos dois anos, no «sexo social desejado», ou que tenha estado, há pelo menos um ano, em tratamentos hormonais com vista ao ajustamento das suas características físicas às «do sexo em que vive» (artigo 3º). Pretende-se que fiquem essas pessoas dispensadas de (como tem sucedido até aqui) recorrer aos tribunais só quando se tenha concretizado, através de operação cirúrgica, essa mudança de características físicas (com todas as delongas daqui decorrentes) para obter tal mudança de registo[2]. Esta mudança poderá, pois, ser obtida por via administrativa sem que se tenha concretizado qualquer mudança de características físicas.
Com os mesmos objectivos, foi, entretanto, apresentada, pelo Governo, na Assembleia da República a Proposta de Lei nº 37/XI[3], que «cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil e procede à 18º alteração do Código de Registo Civil». Para essa mudança, de acordo com esta Proposta, bastará, essencialmente, a apresentação de «relatório elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica, em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro, que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género», também designado como transexualidade (artigos 1º, nº 1, e 3º, b)).
Estes dois diplomas seguem a orientação das chamadas “leis de identidade de género”, de que é exemplo a Lei espanhola (Ley nº 3/2007). Este diploma, referido como modelo na exposição de motivos de ambos os diplomas, foi aprovado na sequência e na linha da aprovação da alteração, em 2004, da definição legal de casamento no Código Civil espanhol de modo a nela incluir casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Os passos que os proponentes dos diplomas em causa pretendem seguir são, pois, decalcados, da experiência espanhola.
Além da legislação espanhola, outras têm introduzido esta inovação. Assim, a Transgendergesetz alemã de 2000, o Gender Recognition Act britânico de 2004 e a Lei argentina de 2008. A Lei italiana n. 164, de 14 de Abril de 1982, em vigor (também referida na exposição de motivos da Proposta de Lei em apreço), exige, pelo contrário, uma operação cirúrgica irreversível para que seja admissível a mudança de registo oficial do sexo de uma pessoa.
Numa primeira apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do sexo de uma pessoa, de modo a corresponder ao seu “sexo social desejado”, nenhuma perturbação causará a outras ou à sociedade em geral. Argumentação semelhante também se ouviu a respeito da discussão sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo (com essa legalização nenhum casal heterossexual ficaria privado de direitos). Nesse caso, porém, estava em causa a definição legal de uma instituição matricial e de referência sem paralelo, com tudo o que isso implica no plano cultural; não pode dizer-se que isso não afectará a sociedade em geral. Neste caso, não está em causa uma instituição com a relevância social do casamento, nem o reconhecimento e protecção desta no plano cultural.
É manifesto o exagero em que incorrem os proponentes de alterações legislativas como esta quando quase parecem sustentar que a mudança do registo oficial do sexo pode condicionar o exercício de direitos como os de acesso à saúde, à habitação ou ao trabalho (a exposição de motivos do Projecto de Lei referido também cai nesse exagero). Quando a ordem jurídica não consagra discriminações em função do sexo, é óbvio que o exercício de algum desses direitos não dependerá nunca de alguma mudança do registo oficial do sexo. O que se verificará é, antes, a perturbação e a humilhação (sim, devemos reconhecê-lo) próprias de quem se vê forçado a, no exercício desses e de outros direitos, evidenciar a desconformidade entre o registo oficial do seu sexo e o seu “sexo social desejado” ou o “sexo em que vive”, para usar as expressões desse Projecto de Lei.
A situação destas pessoas, e o seu sofrimento, não podem deixar de merecer consideração. Mas não me parece que sejam alterações jurídicas como esta que façam desaparecer esse sofrimento. E, sobretudo, não me parece que, para isso, se possa aceitar uma subversão do papel do legislador em relação ao que é a realidade e a verdade das coisas. Sobre a questão da transexualidade em geral, faltam-me os conhecimentos científicos necessários para uma análise aprofundada. Por isso, não me deterei nela. Sobre o papel do legislador, gostaria de tecer algumas considerações um pouco mais desenvolvidas.
Não é por acaso que as leis “de identidade de género” surgem na sequência ou em estreita ligação com a redefinição legal do casamento de modo a nela incluir casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Estamos perante uma agenda de afirmação ideológica. Está em causa a afirmação da chamada ideologia do género (gender theory) e a sua tradução no plano legislativo. O que é, desde logo, questionável é a legitimidade da redução da Lei a instrumento de afirmação ideológica. Estamos perante uma verdadeira “revolução cultural” que vem de cima, das instâncias políticas e legislativas, e não surge espontaneamente da sociedade civil e da mentalidade corrente. Pretende-se transformar através da política e do direito essa mentalidade. Este tipo de objectivo é tendencialmente totalitário E o que está em causa não é um aspecto secundário, mas referências culturais fundamentais relativas à relevância da dualidade sexual.
Em paralelo com estas alterações legislativas assistimos à transformação dos hábitos linguísticos (a lembrar a “novilíngua” de Orwell): em documentos oficiais e no nome de instituições oficiais (como a “Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género”, por exemplo) deixou de falar-se em “igualdade entre homens e mulheres” e passou a falar-se em “igualdade de género”, sem que muitas das pessoas que passaram a usar esta expressão por uma questão de “moda” sequer se apercebam da sua conotação ideológica.
E também o sistema de ensino, como o sistema jurídico, serve de instrumento de afirmação ideológica (também esta uma tendência de tipo totalitário). Assim, por exemplo, a Portaria nº 196-A/2010, de 9 de Abril, que regulamenta a Lei nº 60/2009, de 6 de Agosto, relativa è educação sexual em meio escolar, inclui, entre os conteúdos a abordar neste âmbito e no 2º ciclo (5º e 6º anos) “sexualidade e género”. Em Espanha, a instrumentalização do ensino, através da disciplina de “Educação para a Cidadania”, no sentido da difusão da ideologia de género, que também se seguiu à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, tem suscitado um vasto movimento de recusa de frequência com invocação da objecção de consciência por parte de muitos encarregados de educação que sentem violados os seus direitos.
Gabriele Kuby exprime deste modo o alcance da transformação de mentalidades em questão: «Porque a palavra cria a realidade, as mudanças sociais caminham sempre a par e passo com a mudança da língua. (…) Existe também um novo termo, útil para extrapolar a sexualidade da polaridade de homem e mulher e para a submeter à livre disponibilidade do indivíduo: o termo é gender. Por ele se entende o sexo “social”, arbitrariamente seleccionável, diferente daquilo que distingue sexualmente o homem da mulher. Num contexto popular a ideia de gender nasceu há pouco tempo e, todavia, representa a ponta de diamante da revolução relativista» [4].
A ideologia do género
Mas detenhamo-nos na análise da definição e fundamentos da ideologia do género[5].
Parte esta teoria da distinção entre sexo e género, a qual se insere na distinção mais ampla entre natureza e cultura. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género representa a construção histórico-cultural da identidade masculina e feminina. Retomando a célebre frase de Simone Beauvoir, «uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher»; as gender theories consideram que “somos” homens e mulheres na base da dimensão biológica em que nascemos, mas nos “tornamos” homens e mulheres, no sentido em que adquirimos uma identidade masculina ou feminina, na base da nossa percepção psíquica e da nossa vivência interior (do nosso modo pessoal de sentir e viver a identidade pessoal no plano psicológico), por um lado, e na base da socialização (da interiorização dos comportamentos, funções e papeis que a sociedade e cultura a que pertencemos atribui aos homens e às mulheres), por outro lado. O sexo é um fato empírico, real e objectivo, de ordem biológica, genética, anatómica e morfológica, que se nos impõe desde o nascimento. A identidade de género constrói-se através de escolhas psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais e independentemente dos dados naturais. Para estas teorias, o género assim concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido; a cultura deve sobrepor-se à natureza; a uma perspectiva essencialista deve sobrepor-se uma perspectiva construtivista.
Como o género é uma construção social, este pode ser desconstruído e reconstruído. A diferença sexual entre homem e mulher em sentido natural e imutável está na base da opressão da mulher, relegada para a sua condição de mãe. Para a superar, impõe-se superar o dualismo sexual natural e reconduzir o género à escolha individual. O género não tem de corresponder ao sexo, corresponde a uma escolha subjectiva, ditada por instintos, impulsos, preferências e interesses, que vai para além dos dados naturais e objectivos. Convergem, neste aspecto, as teses do feminismo de género (que sustenta que o fim da opressão feminina supõe a negação da relevância das diferenças naturais entre homem e mulher, designadamente o relevo da maternidade como condição particular da mulher) e as dos movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, e, mais especificamente, em prol da legalização do casamento homossexual e da adopção por pares homossexuais. As gender theories sustentam a irrelevância da diferença sexual na construção da identidade de género, e, por consequência, também a irrelevância dessa diferença na relações interpessoais, nas uniões conjugais e na constituição da família. Como afirma Laura Palazzani, da «diferença sexual passa-se à in-diferença sexual». Se é indiferente a escolha do género a nível individual (pode escolher-se ser homem ou mulher, independentemente dos dados naturais), também é indiferente a escolha de se ligar a pessoas de outro ou do mesmo sexo. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. Ao modelo da família heterossexual, numa perspectiva “essencialista”, sucedem-se vários tipos de “família”, tantos quantas as preferências individuais e para além de qualquer “modelo” de referência. Deixa de se falar em “família” e passa a falar-se em “famílias” (também esta é uma inovação semântica que muitas pessoas passam a adoptar sem se aperceberem da sua conotação ideológica). Privilegiar a união heterossexual é uma forma de discriminação, um heterocentrismo opressor. Deixa de falar-se em “paternidade” e “maternidade” e passa a falar-se em “parentalidade” (mais uma evolução semântica que muitos adoptam sem se aperceberem da sua conotação ideológica).
Das gender theories passa-se às teorias multi-gender, post-gender e transgender Àgéneros, um continuum de identidades em cujos extremos se colocam o masculino e o feminino, o homossexual e o heterossexual, mas onde se inserem também posições intermédias, o bissexual e o transexual, assim como posições oscilantes. O movimento queer representa a ala extrema das gender theories. O seu objectivo á a desconstrução de qualquer normatividade sexual e a construção de um novo paradigma antropológico assente num “polimorfismo sexual” sem restrições. A identidade deve ser construída para além do sexo e do género, como uma subjectividade complexa e múltipla, móvel e indefinível, sem qualquer fixação estática. dualidade sexual (homem e mulher), contrapõe-se uma multiplicidade de
Não irei aqui desenvolver muito a análise da ideologia do género e a sua crítica. Mas a exposição que antecede é suficiente para que se compreenda o alcance ideológico dos diplomas que venho comentando. Quando neles se alude ao “sexo social desejado” e se opta pela prevalência deste sobre o sexo biológico, a opção é ideológica e não puramente “humanitária”, como poderá parecer à primeira vista. Como vimos, é a ideologia de género que sustenta essa prevalência. E também se compreende a ligação entre esta questão e as do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é por acaso que surgem, em Portugal como em Espanha, uma na sequência da outra. São, uma e outra, decorrência da ideologia de género. Fazem parte, uma e outra, da chamada “agenda LGBT” (lesbian, gay, bissexual and transgender). É ilusório pensar que se trata apenas do fim de uma discriminação, ou do respeito pelas minorias. É um novo paradigma antropológico que está em jogo e que se quer impor desde cima, desde as instâncias políticas e jurídicas. E também é fácil compreender, a partir desta breve exposição, como esse paradigma choca com o senso comum das nossas sociedades e representa uma verdadeira revolução de mentalidades.
Para além da desconformidade entre o registo oficial do sexo de uma pessoa transexual e o seu sexo biológico, a ideologia de género poderá levar ao registo de uma terceira categoria, de um sexo “não determinado”. Foi o que tentou fazer Norrie May-Welby no Estado australiano de Nova Gales do Sul, quando se considerou incluído (ou incluída) nessa categoria de “sexo não determinado” depois de ter cessado tratamentos hormonais tendentes à “mudança” do seu sexo de nascença[6]. Essa pretensão acabou por ser recusada pelas autoridades governamentais, não sem que essa recusa tenha motivado uma queixa junto da Human Rights Comission por violação do Australian Sex Discrimination Act de 1984.
Laura Palazzani caracteriza deste modo a filosofia gender: «um pensamento antimetafisico, que reduz a natureza a mero facto contingente em sentido materialista e mecanicista (a natureza como matéria orgânica extensa em movimento); um pensamento antropológico empirista que reduz o indivíduo a meros impulsos e instintos (não mediados pela razão, mas directamente ligados à vontade); um pensamento não-cognitivista, que nega a cognoscibilidade através da razão de uma verdade objectiva na natureza (com base na “lei de Hume”, não se pode passar dos factos aos valores e aos direitos); um pensamento subjectivista, que nega uma relevância metafactual da natureza para o ser humano em sentido ético e jurídico, nega, portanto, a relevância normativa da natureza como ordem, radicando os valores e os direitos directamente na vontade individual (determinada pelos instintos e pelos impulsos); um pensamento relativista, que a partir da negação da existência e da cognoscibilidade de uma verdade objectiva na natureza, considera que normas e valores são equivalentes (todos temos a mesma dignidade), são variáveis (de sociedade para sociedade, de época para época, de sujeito para sujeito), não são passíveis de juízos (uma vez que não existe um critério objectivo para poder exprimir um juízo) e, portanto, são e devem ser todos toleráveis (ou seja, pragmaticamente aceitáveis e suportáveis). É esta a moldura teórica pós-moderna que conduz ao afastamento da natureza, ao “desnaturar” ou “desnaturalizar” o homem e as relações intersubjectivas na sociedade»[7].
A resposta à ideologia do género
Uma primeira crítica à ideologia de género situa-se no plano estritamente científico. É ilusória a pretensão de prescindir dos dados biológicos na identificação das diferenças entre homens e mulheres. Essa diferença existe na natureza e não é fruto de arbitrárias construções culturais. As diferenças na estrutura do cérebro entre homens e mulheres remontam às fases de crescimento pré-natal. O sexo biológico não é sequer determinado pelos órgãos externos, mas pela estrutura genética: cada uma das células do corpo humano é masculina (quando contem os cromossomas XY) ou feminina (quando contem os cromossomas XX). Deste modo, não é, em boa verdade, uma qualquer intervenção cirúrgica que pode levar à mudança de sexo de acordo com a vontade da pessoa. Revelaram-se infrutíferas as tentativas de educar as crianças desde o nascimento fora de qualquer distinção de papeis masculinos e femininos, pois essa distinção acabou sempre por, nalguma medida, vir ao de cima espontaneamente e desde tenra idade. E teve resultados desastrosos para a pessoa em causa a tentativa de, em nome das gender theories, “transformar”, através da cirurgia logo após o nascimento e da educação, um rapaz numa rapariga (o famoso caso Brenda-David Reimer, ocorrido no Canadá nos anos sessenta)[8].
A propósito das intervenções cirúrgicas de transformação dos órgãos sexuais externos das pessoas transexuais, que os códigos de deontologia ética passaram a admitir, afirma Elio Sgreccia, contestando essa admissibilidade no plano ético, que, uma vez que a sexualidade tem uma dimensão genética mais profunda do que a dimensão anatómica, essas operações não “mudam” o sexo, não ajustam o sexo ao que é desejado, antes introduzem um novo desfasamento físico entre elementos cromossomáticos e órgãos externos, que, de resto, não cumprem a sua função procriadora, nem uma verdadeira função copulativa, permanecendo próteses artificiais e não órgãos de sentido e de expressão emotiva e funcional. Não se resolvendo desse modo o conflito, os distúrbios no plano psicológico não desaparecem, antes podem ser agravados[9]. Há que considerar que estamos perante mudanças irreversíveis, com tudo o que isso implica. Podemos, assim, concluir que, para ir de encontro aos sofrimentos das pessoas transexuais talvez seja outro o caminho a percorrer, não “contra a natureza”, de ajustamento do físico ao psíquico, mas de ajustamento, por meio da psicoterapia, do psíquico ao físico.
Uma resposta mais aprofundada no plano filosófico exige uma reflexão sobre os conceitos e a relevância de natureza e lei natural. Sobre estes conceitos tem-se debruçado o magistério da Igreja católica e, com alguma insistência, o Papa Bento XVI.
Deve, antes de mais, esclarecer-se que a lei natural não se confunde com a lei biológica e que o relevo que lhe deve ser dado não se confunde com alguma forma de fisicismo ou biologismo. Os dados biológicos objectivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe, não como algo que se pode manipular arbitrariamente. Mas a lei natural tem uma dimensão metafísica e especificamente humana que não se confunde com a lei biológica. A pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. A pessoa não é só corpo, mas é também corpo. As suas dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se sem oposição. E assim também as suas dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da natureza (também no que se refere às diferenças entre homem e mulher), mas não deve opor-se a ela, como se dela tivesse que libertar-se.
Uma resposta à ideologia do género consta da Carta aos Bispos da Igreja Católica da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (de que era então perfeito o cardeal Joseph Ratzinger) Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo[10]. Aí se afirma, a respeito da tendência que conduz à minimização da diferença corpórea, chamada sexo, ao passo que a dimensão estritamente cultural, chamada género é sublinhada ao máximo e considerada primária: este «obscurecimento da diferença ou dualidade de sexos é grávido de consequências a diversos níveis. Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de facto por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família, por sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a equiparação da homossexualidade à heterossexualidade, um novo modelo de sexualidade polimórfica» (n. 3). A essa perspectiva contrapõe-se a antropologia bíblica:
«A igual dignidade das pessoas realiza-se como complementaridade física, psicológica e ontológica, dando lugar a uma harmoniosa «unidualidade» relacional, que só o pecado e as “estruturas de pecado” inscritas na cultura tornaram potencialmente conflituosa. A antropologia bíblica convida a enfrentar com uma atitude relacional, não concorrente nem de desforra, os problemas que, a nível público ou privado, envolvem a diferença de sexo.
«Há que salientar, por outro lado, a importância e o sentido da diferença dos sexos como realidade profundamente inscrita no homem e na mulher: a sexualidade caracteriza o homem e a mulher, não apenas no plano físico, mas também no psicológico e no espiritual, marcando todas as suas expressões. Não se pode reduzi-la a puro e insignificante dado biológico, mas é uma componente fundamental da personalidade, uma sua maneira de ser, de se manifestar, de comunicar com os outros, de sentir, exprimir e viver o amor humano. Esta capacidade de amar, reflexo e imagem de Deus Amor tem uma sua expressão no carácter esponsal do corpo, em que se inscreve a masculinidade e a feminilidade da pessoa» (n. 8).
Sobre o «significado esponsal do corpo», na sua masculinidade e feminilidade, enquanto vocacionado para o dom conjugal, pronunciou-se aprofundadamente João Paulo II no âmbito do conjunto de ensinamentos conhecido por teologia do corpo[11]. Nesta perspectiva, o corpo humano tem um significado e uma vocação objectivos que a pessoa não pode manipular arbitrariamente.
Sobre a lei natural, a Comissão Teológica Internacional aprovou, em 2008, um documento, Em busca de um ética universal: um novo olhar sobre a lei natural[12]. Aí se tecem algumas considerações oportunas para a análise da questão que nos ocupa:
«O conceito de lei natural supõe a ideia de que a natureza é para o homem portadora de uma mensagem ética e constitui uma norma moral implícita que a razão humana actualiza. A visão do mundo em cujo interior a doutrina da lei natural se desenvolve e encontra ainda hoje o seu sentido implica, por isso, a convicção racional de que existe uma harmonia entre as três substâncias que são Deus, o homem e a natureza. Nessa perspectiva, o mundo é percepcionado como um todo inteligente, unificado pela referência comum dos seres que o compõem a um princípio divino fundador, a um Logos. Para além do Logos impessoal e imanente descoberto pelo estoicismo e pressuposto pelas ciências modernas da natureza, o cristianismo afirma que existe um Logos pessoal, transcendente e criador» (n. 69).
A esta visão da lei natural contrapõe-se aquela segundo a qual «a natureza deixa de ser mestra da vida e da sabedoria para se tornar o lugar onde se afirma a potência prometeica do homem. Esta visão parece dar valor à liberdade humana, mas, de facto, opondo liberdade e natureza, priva a liberdade humana de qualquer norma objectiva para a sua conduta. Esta visão conduz à ideia de uma criação humana de todo arbitrária, ou, melhor, ao puro e simples nihilismo» (n. 22).
A doutrina da lei moral natural não se confunde com alguma forma de “fisicismo”, deve afirmar o «papel central da razão na actuação de um projecto de vida propriamente humano e, ao mesmo tempo, a consistência de um significado próprio dos dinamismos pré-racionais». Assim, por exemplo, «o alto valor espiritual que se manifesta no dom de si no recíproco amor dos esposos está já inscrito na própria natureza do corpo sexuado, que encontra nesta realização espiritual a sua última razão de ser» (n. 79).
Estas considerações revelam bem as diferenças de pressupostos entre a visão da lei natural e a da ideologia de género.
Da lei natural, enquanto norma moral, chega-se ao direito natural, enquanto norma jurídica. A este respeito, afirma ainda o documento da Comissão Teológica Internacional em apreço:
«O direito não é arbitrário: a exigência de justiça, que deriva da lei natural, é anterior à formulação e à emanação do direito. Não é o direito que decide o que é justo. Nem mesmo a política é arbitrária: as normas de justiça não resultam apenas de um contrato estabelecido entre os homens, mas provêm, antes de mais, da própria natureza dos seres humanos. O direito natural é um ancoramento das leis humanas à lei natural. É o horizonte em função do qual o legislador humano deve regular-se quando emana normas na sua missão de serviço ao bem comum. Nesse sentido, ele honra a lei natural, inerente à humanidade do homem. Pelo contrário, quando o direito natural é negado, a simples vontade do legislador faz a lei. Então, o legislador deixa de ser o intérprete daquilo que é justo e bom e passa a atribuir-se a prerrogativa de ser o critério último do justo» (n. 89).
É esta arbitrariedade e esta pretensão de omnipotência do legislador que, como veremos de seguida, os diplomas que vimos analisando, como outros que seguem a mesma opção, parecem revelar.
Sobre estas questões, tem-se debruçado com alguma insistência o Papa Bento XVI, Das suas intervenções mais recentes a este propósito podem destacar-se as seguintes.
No discurso aos participantes no Congresso Internacional sobre Lei Moral Natural promovido pela Pontifícia Universidade Lateranense, de 12 de Fevereiro de 2007[13], afirmou:
O conceito de lei moral natural, enquanto mensagem ética contida no ser, torna-se hoje, para muitos, quase incompreensível por causa de um conceito de natureza já não metafísico, mas apenas empírico. «O facto de a natureza, o próprio ser, já não ser transparente para uma mensagem moral, cria um sentido de desorientação que torna precárias e incertas as escolhas da vida de todos os dias».
(…) «A lei natural é a fonte de onde brotam, juntamente com os direitos fundamentais, também os imperativos éticos que devem ser honrados. Na actual ética e filosofia do Direito, estão largamente difundidos os postulados do positivismo jurídico. A consequência disso é que a legislação se torna muitas vezes apenas um compromisso entre interesses diferentes: procura-se transformar em direitos interesses privados ou desejos que contrariam os deveres decorrentes da responsabilidade social. Nesta situação é oportuno recordar que cada ordenamento jurídico, a nível interno e internacional, retira, em última instância, a sua legitimidade do seu enraizamento na lei natural, na mensagem ética inscrita no próprio ser humano. A lei natural é, em definitivo, o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica».
Na encíclica Caritas in Veritate[14], afirma também Bento XVI:
«Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente “dada”; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela não nasce da inteligência, mas de certa forma impõe-se ao ser humano» (n. 34).
«O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral» (n. 51).
«Em nós, a liberdade é originariamente caracterizada pelo nosso ser e pelos seus limites. Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a própria personalidade sobre a base de uma natureza que lhe foi dada. Não são apenas as outras pessoas que são indisponíveis, também nós não podemos dispor arbitrariamente de nós mesmos» (n. 68).
No discurso à Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, de 27 de Maio de 2010[15], a propósito da problemática actual da educação, afirmou ainda Bento XVI:
«A outra raiz da urgência educativa, vejo-a no cepticismo e no relativismo ou, com palavras mais simples e claras, na exclusão das duas fontes que orientam o caminho humano. A primeira fonte deveria ser a natureza, a segunda a Revelação. Mas a natureza é considerada hoje uma realidade puramente mecânica, que não contém, portanto, em si algum imperativo moral, alguma orientação valorativa. (…) Fundamental é, portanto, reencontrar um conceito verdadeiro de natureza, como criação de Deus que nos fala; o Criador, através do livro da criação, fala-nos e mostra-nos os valores verdadeiros».
Os limites da omnipotência do legislador
É tempo de retomarmos a análise dos diplomas em apreço, relativos à possibilidade de mudança de registo oficial do sexo de uma pessoa contra o sexo biológico e em função do “sexo social desejado”.
Poderá dizer-se que não têm consequências directas danosas e se limitam a satisfazer um desejo compreensível das pessoas transexuais.
Mas é, desde logo, duvidoso que seja desta forma que se resolvem os problemas das pessoas transexuais. A lei criará apenas uma ficção, pretendendo ocultar uma discrepância que não deixará de existir e que, por isso, não deixará de causar os distúrbios que lhe são inerentes.
E, sobretudo, inovações como a que decorre destes diplomas põem em causa princípios fundamentais relativos à função do legislador. São estes princípios, mais do que consequências sociais directas, que estão em jogo.
Inovações como esta estão longe de ser ideologicamente indiferentes ou anódinas. Leis como esta servem um propósito de afirmação ideológica, a afirmação da ideologia de género, inserindo-se num processo mais vasto de revolução de mentalidades que vem de cima e se impõe à mentalidade comum. Admitir que a Lei sirva propósitos destes, numa pretensa engenharia social, revela tendências mais próprias de um Estado totalitário do que de um Estado respeitador da autonomia da sociedade civil.
O que se pretende é a instrumentalização da Lei ao serviço da prevalência da vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Trata-se de fazer prevalecer «como ultima unidade de medida apenas o “eu” e os seus desejos», para usar a expressão com que o cardeal Ratzinger, no discurso de abertura do Conclave de 18 de Abril de 2005, caracterizou aquilo a que chamou a ditadura do relativismo. Dir-se-à que a transexualidade não é uma escolha arbitrária, que é também ela uma realidade psicológica que se impõe à própria pessoa. Poderá ser assim nalguma medida. No entanto, a vontade não deixa de ser determinante na definição do “sexo social desejado” a que os diplomas em apreço dão relevância. E os pressupostos da ideologia de género que lhe estão subjacentes, que sobrepõem o desejo a qualquer forma de heteronomia objectiva, deixam aberta a porta a situações de verdadeira arbitrariedade.
Desta forma o legislador atribui-se uma prerrogativa nova, uma pretensão de omnipotência que derruba uma barreira até aqui intransponível, a barreira da própria realidade objectiva. O legislador constrói uma sua própria realidade contrária à realidade objectiva. E também esta pretensão é reveladora de tendências totalitárias. Como afirmou o Papa Bento XVI num dos discursos acima citados, a «lei natural é, em definitivo, o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica». Leis que consagram a ideologia de género desprezam por completo qualquer conceito de natureza ou lei natural. Por isso, derrubam a mais potente barreira à omnipotência do legislador, o «único baluarte válido» contra o arbítrio deste.
Vem à mente a este propósito o célebre dito que tradicionalmente se usava para exprimir a extensão dos poderes do Parlamento inglês: «pode fazer tudo excepto transformar um homem numa mulher, ou uma mulher num homem». É claro que num Estado de Direito, nem mesmo um Parlamento democraticamente legitimado, nem mesmo a mais absoluta das maiorias, pode fazer tudo. Está sempre limitado pelo direito natural, donde decorrem, antes de mais, os direitos fundamentais da pessoa humana. Mas agora parece que se pretende que nem sequer a realidade objectiva da diferença sexual biológica sirva de barreira à omnipotência do legislador. Pretende-se que os Parlamentos passem a poder «transformar um homem numa mulher ou uma mulher num homem».
[1] Acessível em www.parlamento.pt.
[2] Como se refere na exposição de motivos do Projecto, a jurisprudência tem considerado até aqui (designadamente nos acórdãos da Relação de Lisboa de 9 de Novembro de 1993 e de 22 de Junho de 2004 aí citados) que na situação de mudança de características físicas se verifica uma lacuna na legislação em vigor e que, de acordo com as regras de integração de lacunas decorrentes do artigo 10º do Código Civil, essa lacuna deve ser superada através da aplicação da norma que o legislador criaria se considerasse a situação. Essa norma admitiria a mudança de sexo à luz do direito constitucional à identidade pessoal (artigo 26º, nº 1, da Constituição), a qual abrange a identidade sexual.
[3] Acessível em www.parlamento.pt.
[4] Gender Revolution, Ilrelativismo in azione, (tradução italiana), Edizioni Cantagalli, Siena, 2008, p. 27
[5] Ver uma exposição destas teorias, numa perspectiva crítica, em Laura Palazzani, Identità di genere. Dalla differenza alla in-diferenza sessuale nel diritto, Edizioni San Paolo, Cinisella Bálsamo (Milão), 2008, e Giulia Galeotti, Gender Genere, Chi vuole negar ela differenza maschio-femina? L´alleanza tra femminisno e Chiesa cattolica, Edizioni Viverein, Roma, 2009.
[6] Ver Friday Fax, edição on-line, vol. 13, nº 161, Abril de 2010.
[7] Op. cit., p. 44 e 45 (tradução minha).
[8] Ver Laura Palazzani, op. cit., p. 54 a 57, e Giulia Galeotti, p. 31 a 47.
[9] Ver Manual de Bioética, I - Fundamentos e Ética Biomédica, Edições Loyola, São Paulo, 1986 (tradução brasileira da terceira edição italiana), p. 509 a 517.
[10] Acessível em www.vatican.va.
[11] Pode ver-se um resumo destes ensinamentos em Yves Sémen, La sexualité selon Jean Paul II, Presses de la Renaissance, Paris, 2004 (tradução portuguesa da Principia, 2006).
[12] Acessível em www.vatican.va. As citações do texto correspondem à minha tradução da versão italiana.
[13] Acessível em www.vatican.va. As citações do texto correspondem à minha tradução da versão italiana.
[14] Acessível em www.vatican.va. .
[15] Acessível em www.vatican.va. A citação do texto corresponde à minha tradução da versão italiana.