O Evangelho deste Domingo (vigésimo primeiro do tempo comum – ano B) é eloquente sobre a normatividade pastoral a ter no que respeita à verdade. A normatividade para um cristão, não o esqueçamos, é o próprio Jesus Cristo.
Depois da multiplicação dos pães, o Evangelho segundo S. João apresenta-nos a Cristo repetindo, como um estribilho, que o Seu Corpo é verdadeira comida e que o Seu sangue é verdadeira bebida; e que quem não comer o Seu corpo nem beber o Seu sangue não terá a vida eterna. Perante este discurso, a multidão que o seguia, dá-o como louco, dizendo que aquelas palavras são insuportáveis, intoleráveis, e vira-Lhe as costas, abandonando-O. Jesus, perante esta reacção, não recua, não Se desculpa, não afirma que o entenderam mal, não Se desfaz em explicações, não Se cala. Muito simplesmente vira-Se para os Seus e pergunta-lhes se também querem partir. Como Quem diz, mantenho e reafirmo tudo o que disse, se quiserem ir estejam à vontade. S. Pedro responde por todos afirmando a sua Fé: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus.” (Jo 6, 68-69). Pedro e todos aqueles que com ele permaneceram junto ao Senhor, como todos os outros, também não compreenderam, por então, o que Jesus lhes dizia mas confiaram n’ Ele, seguros de que era verdade.
Uma primeira lição a tirar poderia ser a de deixarmos de pensar sistematicamente que se explicássemos as coisas da Fé todas muito bem explicadinhas toda a gente se converteria a Cristo. Por trás desta atitude encontra-se a presunção gnóstica de que afinal é o conhecimento que salva, e não a Fé. Ora importa recordar que embora a Fé seja razoável, não se confunde nem se reduz à razão. A Fé brota do acto humano, suscitado pela graça de Deus, que assente à Autoridade Divina, pelo facto de ser Divina - de facto, Deus não Se pode enganar nem pode enganar-nos, merecendo por isso credibilidade absoluta e adesão incondicional; e que Se confia totalmente a Ele por ser Quem é. Quanto mais se tentar persuadir com raciocínios alguém a acreditar, por exemplo, no Mistério da Santíssima Trindade, tanto mais esse alguém recusará o assentimento porque, realmente, não é possível demonstrá-lo racionalmente, embora a razão possa ter uma função propedêutica. A razão procede por evidência, a Fé por obediência.
Também seria saudável, e esta poderia ser a segunda lição, perdermos aquele complexo tão característico dos cristãos, particularmente dos católicos, que nos leva a culpabilizarmo-nos por todas as desgraças acontecidas no mundo inteiro, desde há dois mil anos. Levando o raciocínio às suas últimas consequências: ultimamente se não fosse a existência da Igreja, neste caso, militante, toda a gente se converteria e o mundo seria um paraíso. Nesta visão a Igreja deixa de ser Cristo continuado na História como sacramento de salvação para ser o grande empecilho ou obstáculo a essa mesma salvação. Como quem fundou a Igreja foi o próprio Jesus Cristo, com o passar do tempo, a culpa passa para Ele (despojando-O da Sua condição Divina), e depois para Deus. O mundo deixa a Igreja em nome de Cristo, depois abandona Cristo em nome de Deus, acabando por dispensar Deus em nome da Natureza… O Homem, varão e mulher, deixa de ser Imagem e Semelhança de Deus, dotado de uma alma espiritual e imortal, para ser somente um produto da evolução, um fragmento de matéria organizado (pelo acaso!), que deve viver ou existir em função dos outros seres, sem diferenciação alguma qualitativa em relação a eles. Como o Homem tende a modelar o ambiente em vez de se deixar configurar por ele, não passa do mais perigoso dos predadores, o primeiro, ou melhor, o único responsável pela degradação do planeta. Devendo, por isso, ser abatido, caçado, para que o seu número não só não cresça mas seja drasticamente diminuído. Uma vez que, como ficou demonstrado com o nazismo, será impossível a longo termo e com sucesso que isso seja feito em jovens e adultos recorre-se à contracepção e à esterilização maciças, ao aborto provocado, declarado como um direito da mulher em nome da sua saúde reprodutiva, ao infanticídio, como já sucede na Holanda e em alguns estados dos USA, à eutanásia e ao suicídio assistido. As razões verdadeiras nunca são invocadas na propaganda política e mediática, uma vez que seriam de pronto repudiadas, recorrendo-se, por isso, a eufemismos e a palavras talismãs – saúde, piedade, evitar o sofrimento, autonomia, ajudar a morrer com dignidade, direitos, etc. Como, apesar de tudo, ainda subsiste alguma resistência, arrebatam-se os filhos a seus pais, obrigando-os a uma “educação” sexual nas escolas, que não passa de uma estratégia de recruta e infiltração.
Finalmente, esta mania que alguns sectores da Igreja têm de diluir, calar ou distorcer a Fé e a moral para não afastar mas antes atrair o maior número à Igreja só pode ter origem no Maligno e não no Salvador, Jesus Cristo, Senhor nosso, como nos mostra o texto evangélico. Se abatermos o que nos foi confiado à mentalidade mundana nada nos restará senão ser pisados pelos homens, por esses mesmos que quisemos cativar com a falsidade. Pelo contrário, se permanecermos firmes na verdade, é altamente provável que se convertam. Foi, por exemplo, o que sucedeu com o eremita Nilo. Este varão de Deus não hesitou em confrontar em termos duros e severos directamente o Papa Gregório V e o imperador Otão III, o último de Roma, por não quererem perdoar o anti-papa Philagathos, torturado com extremos de crueldade. Apesar da insistência de Otão para que Nilo permanecesse com ele e lhe desse absolvição este recusou-se e regressou ao seu retiro. Um ano depois, o Imperador procurou-o com grandes gestos de penitência e humilhação. Só então, verificada a verdadeira conversão, o eremita o abendiçoou com júbilo misericordioso. Gregório V, primo de Otão, morreu acometido de uma enfermidade que o Imperador atribuiu à “maldição” de Nilo.
Nuno Serras Pereira
22. 08. 2009