sexta-feira, 19 de junho de 2009

Salvador ou Agressor?

Na nossa fraternidade ou convento de Coimbra, onde vivi os primeiros quatro anos do meu sacerdócio, há na biblioteca uma bow window – este, segundo o meu irmão que é arquitecto, é o nome porque é conhecida aquilo a que eu chamo uma janela barriguda -, que dá para o jardim fronteiro. Ali passei longas horas lendo os sermões do P. António Vieira (todos, com excepção dos dedicados a S. Francisco Xavier que vim a estudar mais tarde; com o decorrer dos anos a eles voltei relendo muitos muitas vezes), as obras quase todas de Dostoiévski, Hans-Urs von Balthasar e tudo o que então havia em espanhol, italiano e francês do então difamado Cardeal Ratzinger (o primeiro contacto que tive com este autor foi durante o noviciado - a “recruta” dos frades -, no Monte Alverne, quando, numa ida a Assis, comprei um livro seu sobre a Eucaristia). Foi por esse tempo que me dei conta da força extraordinária que pode adquirir o preconceito. Padres que só de ouvir o nome do Cardeal ficavam desassossegados e coléricos gostavam imenso dos textos que lhes dava a ler, depois de ter mudado o seu nome substituindo-o por algum dos teólogos então em voga. Espero que Deus olhando ao bem que eu almejava me tenha já perdoado este pecado da minha mocidade sacerdotal – provavelmente um resquício das partidas vãs e mundanas da minha juventude.

Ora numa tarde, estando eu ali meditando os sermões do Pe. Vieira, apercebi-me, pelo canto do olho, de algo no parapeito da janela. Atentei e vi um lagarto pequeno, mais ou menos do tamanho de uma lagartixa, estático, com um ar contemplativo de fazer inveja ao mais exigente monge trapista. Tanto quanto me lembra foi a primeira e última vez que vi um lagarto que considerei bonito. Muito bem proporcionado, escultural, atraente, sem aparência alguma asquerosa. Após o assombro ocorreu-me que se a empregada doméstica o descobrisse seria esmagado, sem dó nem piedade, à vassourada. Resolvi-me então a salvar o irmão lagarto.

Saberá quem me ler que eu sou da cidade e, por isso (como dizia o Pe. Mário Branco), não sei distinguir uma vaca dum pinheiro. Com este manifesto exagero, tão característico do seu bom humor, pretendia ele denunciar o analfabetismo ou a aselhice dos citadinos em tratar com as coisas do campo. Não era totalmente o meu caso, devo confessar, uma vez que parte da vida e as férias em Abrantes e arredores me tinham habituado ao contacto com animais, embora não com lagartos. A tia Mená, que vivia com a avó, tinha um dom extraordinário para amestrar brutos (no sentido de que não são dotados de razão). Teve uma coelha domesticada em casa, a bigodaças, que chegou a amamentar, por ter morrido a mãe, uma ninhada de gatos; pelo menos dois ouriços-cacheiros; mochos e corujas; um cão; vários gatos; uma raposa; e até, para grande horror da minha avó, um rato no quintal. Seja como for o facto é que eu não herdei este dom extraordinário da minha tia e que, apesar de ser franciscano, tenho uma grande falta de jeito para tratar com esses meus irmãos.

Apanhar o irmão lagarto com a mão estava fora de questão, tanto mais que não fazia a ideia se podia morder ou se, pelo contrário, eu poderia magoá-lo. Levantei-me então de mansinho e fui às arrumações buscar uma daquelas pás de plástico com que se apanha o lixo quando se varre o chão. Parecia-me o instrumento apropriado para colocar o irmão rastejante enquanto o levava para o jardim. O lagarto ao ver-me aproximar naqueles preparos assustou-se e desatou numa correria tal que me obrigou a uma perseguição rocambolesca. Do parapeito saltou para a mesinha, desta para o chão, do soalho passou à biblioteca escapulindo-se por entre as pernas da mesa e das cadeiras. Escusado será de dizer que naquele alvoroço derrubei cadeiras, gatinhei por baixo da mesa, levantei-me, tropecei, embati - enfim uma odisseia. Eu queria salvá-lo e ele “pensava” que queria agredi-lo, matá-lo, despedaçá-lo. E quanto mais me esforçava por socorrê-lo e livrá-lo tanto mais ele teimava em esgueirar-se e fugir. Em vez de ver em mim um salvador considerava-me um agressor. Apesar de tudo, consegui, por fim, apanhá-lo e levar a bom termo a minha missão redentora, devolvendo-o cuidadosamente no jardim de onde tinha vindo.

Mas aquele episódio deu-me que pensar. Quantas vezes Deus anda atrás de nós para nos salvar e nós a fugirmos d’ Ele como se fora um inimigo a evitar. E quem diz Deus, Jesus Cristo, diz a Igreja, Sua presença visível no mundo, quando através dos seus membros quer acudir e é escorraçada. Foi o que aconteceu com Jesus Cristo. Foi o que Ele profetizou para todo aquele que O quisesse seguir.

Nuno Serras Pereira

18. 06. 2009


quarta-feira, 17 de junho de 2009

A Velha, a Mota e Nós


1. a) Um dia, nos idos da minha juventude, caminhando eu pela Avenida de Roma, da praça de Londres para o Lg. Frei Heitor Pinto, um pouco antes de chegar ao cruzamento com a linha férrea, perto do Maria Matos, deparei com um aglomerado de gente no meio da via - naquele tempo, tirante as horas de ponta, o trânsito era escasso -, rodeando espavorida uma velhinha estendida no alcatrão, empapada no próprio sangue que lhe corria abundante de uma perna praticamente decepada. A pouca distância uma Gilera 50 empenada, modelo recentíssimo em Portugal, gotejando gasolina. De pé, com o capacete na mão, pálido como a cal mais branca, um jovem que logo percebi ser o condutor do motociclo. Uma vez que já se tinha chamado o 115 (hoje 112) e a mulher estraçalhada estava sendo assistida pelos populares, procurei confortar o moço dirigindo-lhe uma pergunta com o intuito de lhe possibilitar uma oportunidade de desabafar. A sua resposta pronta, gélida, dura, implacável, foi: O estupor da velha estragou-me a mota toda!

b) A velha tinha sido nova, linda de morrer, a pele lisa, os olhos vivos, o corpo estatuário. Andou na barriga da mãe, amamentou-se aos seus peitos, brincou no colo dos pais, aprendeu entre tombos a andar, adolescente e jovem teve os seus sonhos, os seus devaneios, apaixonou-se, namorou, casou-se. Com paciência aturou as manias do marido, com grande sacrifício criou os filhos que lhe deram grandes desgostos. Enviuvou cedo, trajou o luto, cismou com saudade. Viu nascer os netos, tomou conta deles, enxugou-lhes as lágrimas, mudou-lhes e lavou-lhes as fraldas (naquele tempo era assim), deu-lhes de comer, aturou-lhes as birras, curou-lhes a feridas, passou noites em claro a cuidá-los nas doenças. Quando deixaram de precisar dela atiraram-na para um lar escabroso. As visitas eram raras, os carinhos nenhuns. O único consolo que possuía era assistir à missa diariamente e conversar com o Senhor no Sacrário confiando-Lhe a alma do seu marido e as vidas dos seus familiares. Era de lá, da Igreja paroquial, que vinha quando ao atravessar a rua lhe caiu em cima aquela calamidade, veloz como uma turba de diabos que se precipita para perder o mundo. A sua muita idade ofuscara-lhe a vista, entupira-lhe os ouvidos, estorvara-lhe a percepção das distâncias e o difícil cálculo das velocidades.

c) Ele era de boas famílias. Tinha andado no melhor colégio do país e agora cursava engenharia no Técnico. A mota tinha sido caríssima, novinha em folha fora estragada pelo raio da velha. O veículo valia muito, a velha nada. Ele identificava-se com o que tinha. Ouvia o pai dizer, quando alguém chocava com o seu Ferrari, bateram-me. Cada visita lá de casa ao ver o que possuíam, logo os considerava mais. Daí que tenha concluído que ser é ter. Tenho muito, sou muito. Não tenho nada, nada sou.

2. No Novo Testamento os Apóstolos e Evangelistas reservam a palavra “caríssimo” somente para as pessoas, que Jesus Cristo veio resgatar. Esta palavra encontra-se em S. Lucas, S. Paulo, S. Pedro e S. João: no singular 7 vezes e no plural 20. A razão de tal uso é dada por S. Paulo e por S. Pedro: “Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” (1 Cor 6, 20); “Fostes comprados por um alto preço; não vos torneis escravos dos homens.” (1 Cor 7, 23); “ … fostes resgatados da vossa vã maneira de viver herdada dos vossos pais, não a preço de bens corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo … “. (1 Pe 1, 18-19).

O Pai criou-nos por Cristo no Espírito Santo, fazendo-nos à imagem e semelhança do Seu Filho unigénito. Como tivéssemos desbaratado a nossa dignidade o Deus Filho fez-Se um de nós para a restaurar e sublimar, redimindo-nos pela Sua morte e Ressurreição. Uma gota de sangue do Deus humanado vale, evidentemente, mais do que todo o universo. Por isso todas as riquezas por mais abundantes e preciosas que sejam não passam de lixo imundo em comparação com aqueles por quem Jesus Cristo derramou o Seu Sangue. Quem beber desse Sangue torna-se irmão de sangue do Senhor: “Quem realmente … bebe o Meu sangue fica a morar em Mim e Eu nele.” (Jo 6, 56).

Valiosíssimas, caríssimas são as pessoas. Só elas, humanamente falando, não têm preço. Tudo o mais se compra ou vende, se negoceia. As coisas usam-se, as pessoas amam-se, em todas as etapas da sua existência, desde o momento da concepção até à morte natural. O valor das coisas é relativo ao bem absoluto, transcendente, da dignidade da pessoa humana. Isto é, tanto quanto servem, protegem e promovem a pessoa tanto valem e nada mais. À honra de Cristo. Ámen.

Nuno Serras Pereira

17. 06. 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Acudam!

Ficámos hoje a saber pela agência Lusa que o número de homicídios em forma de aborto continua a aumentar. O matadouro dos Arcos gaba-se de ter chacinado mais de duas mil e seiscentas crianças nascituras, só entre Janeiro e Maio. Isto no coração de Lisboa, perante a passividade indiferente das muitas paróquias circundantes, com excepção do Prior da de S. José. Em contraste com este alheamento sacerdotal e levítico (cf. Lc 10, 29-37) para com os pequenos e indefesos “rodeados por matilhas de cães e touros ferozes de Basan” (cf. Sl 22) prontos a despedaçá-los, um grupo constituído por pessoas vindas diariamente de longe, de fora de Lisboa, posta-se ali de terço na mão e Deus no coração convidando suave e mansamente as mães grávidas a acolherem seus filhos, prestando-se, cheias de amor, para as auxiliar com o necessário, caso tenham precisão. Apesar de escarnecidas, dadas como doidas, fanáticas, intolerantes, fundamentalistas, não desistem, como a Virgem Maria e S. João de pé junto à Cruz. Nesta pacífica perseverança conseguiram, contra tudo e contra todos, salvar seis crianças. Podiam, no entanto, resgatar, às macabras mãos da negra morte, muitas mais se tivessem quem lhes acudisse. Precisam de gente generosa e capaz que se voluntarie; gente que se sacrifique para que outros possam viver; gente que não olhe a dificuldades mas que ponha a sua confiança n’ Aquele que um dia lhe dirá: Vem bendito de Meu Pai, recebe o Céu como herança, porque estava em perigo de ser abortado e tu me redimiste (cf. Mt 25, 31-46).

Quem desejar esta recompensa e a alegria imensa que vem de salvar pessoas concretas de uma morte cruel e injusta pode ligar para a Leonor Castro 91 305 38 11 para se informar.


Nuno Serras Pereira

15. 06. 2009