Na nossa fraternidade ou convento de Coimbra, onde vivi os primeiros quatro anos do meu sacerdócio, há na biblioteca uma bow window – este, segundo o meu irmão que é arquitecto, é o nome porque é conhecida aquilo a que eu chamo uma janela barriguda -, que dá para o jardim fronteiro. Ali passei longas horas lendo os sermões do P. António Vieira (todos, com excepção dos dedicados a S. Francisco Xavier que vim a estudar mais tarde; com o decorrer dos anos a eles voltei relendo muitos muitas vezes), as obras quase todas de Dostoiévski, Hans-Urs von Balthasar e tudo o que então havia em espanhol, italiano e francês do então difamado Cardeal Ratzinger (o primeiro contacto que tive com este autor foi durante o noviciado - a “recruta” dos frades -, no Monte Alverne, quando, numa ida a Assis, comprei um livro seu sobre a Eucaristia). Foi por esse tempo que me dei conta da força extraordinária que pode adquirir o preconceito. Padres que só de ouvir o nome do Cardeal ficavam desassossegados e coléricos gostavam imenso dos textos que lhes dava a ler, depois de ter mudado o seu nome substituindo-o por algum dos teólogos então em voga. Espero que Deus olhando ao bem que eu almejava me tenha já perdoado este pecado da minha mocidade sacerdotal – provavelmente um resquício das partidas vãs e mundanas da minha juventude.
Ora numa tarde, estando eu ali meditando os sermões do Pe. Vieira, apercebi-me, pelo canto do olho, de algo no parapeito da janela. Atentei e vi um lagarto pequeno, mais ou menos do tamanho de uma lagartixa, estático, com um ar contemplativo de fazer inveja ao mais exigente monge trapista. Tanto quanto me lembra foi a primeira e última vez que vi um lagarto que considerei bonito. Muito bem proporcionado, escultural, atraente, sem aparência alguma asquerosa. Após o assombro ocorreu-me que se a empregada doméstica o descobrisse seria esmagado, sem dó nem piedade, à vassourada. Resolvi-me então a salvar o irmão lagarto.
Saberá quem me ler que eu sou da cidade e, por isso (como dizia o Pe. Mário Branco), não sei distinguir uma vaca dum pinheiro. Com este manifesto exagero, tão característico do seu bom humor, pretendia ele denunciar o analfabetismo ou a aselhice dos citadinos em tratar com as coisas do campo. Não era totalmente o meu caso, devo confessar, uma vez que parte da vida e as férias em Abrantes e arredores me tinham habituado ao contacto com animais, embora não com lagartos. A tia Mená, que vivia com a avó, tinha um dom extraordinário para amestrar brutos (no sentido de que não são dotados de razão). Teve uma coelha domesticada em casa, a bigodaças, que chegou a amamentar, por ter morrido a mãe, uma ninhada de gatos; pelo menos dois ouriços-cacheiros; mochos e corujas; um cão; vários gatos; uma raposa; e até, para grande horror da minha avó, um rato no quintal. Seja como for o facto é que eu não herdei este dom extraordinário da minha tia e que, apesar de ser franciscano, tenho uma grande falta de jeito para tratar com esses meus irmãos.
Apanhar o irmão lagarto com a mão estava fora de questão, tanto mais que não fazia a ideia se podia morder ou se, pelo contrário, eu poderia magoá-lo. Levantei-me então de mansinho e fui às arrumações buscar uma daquelas pás de plástico com que se apanha o lixo quando se varre o chão. Parecia-me o instrumento apropriado para colocar o irmão rastejante enquanto o levava para o jardim. O lagarto ao ver-me aproximar naqueles preparos assustou-se e desatou numa correria tal que me obrigou a uma perseguição rocambolesca. Do parapeito saltou para a mesinha, desta para o chão, do soalho passou à biblioteca escapulindo-se por entre as pernas da mesa e das cadeiras. Escusado será de dizer que naquele alvoroço derrubei cadeiras, gatinhei por baixo da mesa, levantei-me, tropecei, embati - enfim uma odisseia. Eu queria salvá-lo e ele “pensava” que queria agredi-lo, matá-lo, despedaçá-lo. E quanto mais me esforçava por socorrê-lo e livrá-lo tanto mais ele teimava em esgueirar-se e fugir. Em vez de ver em mim um salvador considerava-me um agressor. Apesar de tudo, consegui, por fim, apanhá-lo e levar a bom termo a minha missão redentora, devolvendo-o cuidadosamente no jardim de onde tinha vindo.
Mas aquele episódio deu-me que pensar. Quantas vezes Deus anda atrás de nós para nos salvar e nós a fugirmos d’ Ele como se fora um inimigo a evitar. E quem diz Deus, Jesus Cristo, diz a Igreja, Sua presença visível no mundo, quando através dos seus membros quer acudir e é escorraçada. Foi o que aconteceu com Jesus Cristo. Foi o que Ele profetizou para todo aquele que O quisesse seguir.
Nuno Serras Pereira
18. 06. 2009