sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A Liberalização do Aborto e o Nazismo

1 - Num texto de Março do ano passado escrevi, a propósito de um exemplo, que não pretendia comparar o holocausto nazi ao holocausto abortista, pois existiam muitas diferenças (Cf Nuno Serras Pereira, O Triunfo da Vida, Crucifixus, 2006, p. 255). No entanto, ao fazer essa afirmação não pretendi excluir que houvesse também muitas semelhanças nem que o horror da legalização do aborto provocado fosse inferior aos terrores nazis (vide, por exemplo, idem, pp. 17 e 43). Desde logo, como afirmei diversas vezes em 1997, há uma identidade crucial: a mentalidade de fundo que informa as duas abominações considera que há vidas humanas inocentes dignas de serem vividas e outras a quem essa dignidade pode ser negada.

Para se entender bem essa disposição necrófila comum ao nazismo e à actual anti-cultura da morte é essencial ler O Dossier Binding & Hoche publicado em 1922 em Leipzig. Este opúsculo deste jurista e deste médico, pessoas de renome no meio Universitário do seu tempo, concedeu a justificação médica e legal para a eutanásia e ultimamente para o aborto e para o holocausto nazi, isto é para liberalizar a destruição das vidas que eram destituídas de valor. A semelhança de argumentação por eles usada e a dos debates actuais sobre bioética e sobre a liberalização da morte são arrepiantes. Não é por acaso que um silêncio tumular remeteu para as catacumbas do esquecimento esta obra. Felizmente K. Schank e M. Schooyans “desenterraram-na”, traduzindo-a para francês, e elaboraram uma magnífica introdução 1.

2 - As semelhanças porém não ficam por aqui. De facto, uma memória selectiva sobre esse período de espessas trevas tem ocultado que o Tribunal de Nuremberga também se debruçou sobre a falta de protecção legal às crianças nascituras e recolheu provas do encorajamento e coação ao aborto vindo a condená-lo como crime contra a humanidade.

Com a preciosa ajuda de Brian Clowes, PhD, um dos melhores investigadores actuais sobre as questões que se prendem com a defesa da vida nascitura, examinemos, ainda que muito brevemente, como as argumentações e estratégias usadas então para a liberalização do aborto são idênticas às de hoje, camuflando interesses inconfessáveis em nome do bem da mulher 2 e da liberdade 3.

É verdade que Hitler baniu o aborto e incrementou a materni¬dade, mas só para os Arianos de puro-sangue. Por outro lado, promoveu a legalização do aborto introduzindo-a, pela primeira vez, em vários países da Europa.

A 8 de Outubro de 1935 foram promulgadas as leis de saúde hereditária. Uma dessas leis legalizou o aborto só para os casos difíceis: violação, incesto e para o caso de algum dos pais ter um doença hereditária que pudesse levar à deformação do feto 4.

Depois da invasão da Polónia a “Comissão do Reich para fortalecer a Germanidade” (RKFDV), uma organização SS, publicou, a 25 de Novembro, a seguinte declaração política: “todas as medidas que tendam a limitar os nascimentos devem ser toleradas ou auxiliadas. O aborto na restante área da Polónia deve ser despenalizado. Os meios para o aborto ... podem ser oferecidos publicamente sem restrições policiais. ... As instituições e as pessoas envolvidas profissionalmente na prática de abortos não devem ser incomodadas pela polícia” 5. Até então o aborto na Polónia era ilegal. É de notar que o slogan chave deste pro¬grama, aprovado pelo ministro do interior alemão em 27 de Maio de 1941 e posto em acção a 19 de Outubro do mesmo ano, foi “Liberdade de escolha”.

Em meados de Julho de 1942, Karl Brandt, médico pessoal de Hitler, e Martin Bormann, secretário pessoal de Hitler, viajaram pela Ucrânia com a finalidade de estudarem a sua demografia. Hitler assumiu as conclusões desse estudo: “A fertilidade dos eslavos não é desejável. Podem usar contraceptivos ou praticar o aborto - quanto mais melhor. Tendo em vista a grandeza das famílias só nos pode servir que as raparigas e as mulheres façam o maior número de abortos possíveis.”6

A política de controlo populacional incluía um pará¬grafo que parafraseava Hitler: “Quando as raparigas e as mulheres dos territórios ocupados do Leste provocam o aborto, só podemos estar a seu favor; para todos os efeitos não nos devemos opor a isso”7

Uma curta declaração em 27 de Abril de 1942 do Prof. H. Wetzel, especialista em demografia e população, resume todo o programa de controlo populacional independentemente da localização: “Todos os meios de propaganda, especialmente a imprensa, rádio e cinema, bem como panfletos, brochuras e conferências têm de ser usados para incutir na população ... a ideia de que é prejudicial ter vários filhos. Temos de realçar as despesas que os filhos causam, as coisas boas que as pessoas poderiam ter com o dinheiro que neles gastam. Podemos também apontar para os efeitos perigosos do parto na saúde da mulher. ... Será mesmo necessário abrir instituições especiais para o aborto e treinar parteiras e enfermeiras para essa finalidade. A população praticará o aborto cada vez mais voluntariamente se estas instituições operarem competente¬mente. Os médicos devem estar preparados para ajudar ....”8

Em Março de 1943 Himmler fez sair um mandato: “Aos médicos Russos ou à Associação Médica Russa - que não deve ser informada desta ordem - deve ser dito nos casos individuais que a gravidez é interrompida por razões de pobreza social”9

Entre Outubro de 1947 e Março de 48 o Tribunal Militar dos USA processou o líder da RKFDV no “Processo 8”. Uma das acusações foi “A protecção da lei foi negada às crianças não nascidas das mulheres russas e polacas na Alemanha nazi. Estas mulheres foram encorajadas e mesmo forçadas a abortar.”10

Um dos documentos da RKFDV que serviu de prova declarava que “É sabido que a prole racial¬mente inferior do trabalhadores do Leste e dos polacos deve ser evitada tanto quanto possível. Embora as interrupções da gravidez devam ser levadas a termo somente de um modo voluntário, deve-se pressionar em cada um deste casos”

Nuremberga condenou 10 líderes nazis por “encorajarem e coagirem ao aborto”, acto que o tribunal caracterizou como “um crime contra a humanidade” 12. Os nazis protestaram dizendo que “não fizemos mais do que cumprir ordens” 13. Hildebrandt SS chefe da RKFDV em Berlim declarou que “até agora ninguém teve a ideia de ver nesta interrupção da gravidez um crime contra a humanidade”.14

Depois de examinar os julgamentos dos crimes médicos, realizados em Nuremberga, a Associação Médica Mundial (WMA) com o intuito de impedir que se voltassem a repetir esses horrores, aprovou a Declaração de Genebra, em 1948. A certa altura o documento diz: “Guardarei o máximo respeito pela vida humana desde o momento da sua concepção [itálico meu]; mesmo sob ameaça, não farei uso dos meus conhecimentos médicos em oposição às leis da humanidade” 15. Essa foi a mesma razão que levou a Assembleia-geral da ONU, a 20 de Novembro de 1959, a proclamar a Declaração dos Direitos da Criança: “A cri¬ança, dada a sua imaturidade física e mental, precisa de protecção e cuidados especiais, incluindo protecção legal apropriada, tanto antes como depois do nascimento” (itálico meu).

3 – Uma das coisas que me impressionou ao debruçar-me sobre os Julgamentos de Nuremberga foi, por um lado, o à vontade, leviano e jocoso, dos réus, especialmente de Hermann Goering, e, por outro, o receio por parte dos aliados de que as acusações não procedessem e os criminosos saíssem vencedores, pelo menos aos olhos da opinião pública. De facto, Goering estava quase tornando-se uma vedeta quer pela argúcia das suas respostas quer pela ligeireza humorada que aparentava. Porém, quando no tribunal começaram a exibir provas, filmadas, de fuzilamentos em massa, das câmaras de gás, dos fornos crematórios, das crianças prisioneiras, dos amontoados de cadáveres, enfim, das atrocidades sem nome ou, no dizer de Hanna Arendt, do mal absoluto, o abalo nos réus foi de tal ordem que provocou um reviramento, uma mudança radical. Perante a exposição da imensa crueldade, diante da evidência do mal, os alicerces da defesa ficaram irremediavelmente minados.

Não é por acaso que também nos dias de hoje se procura ocultar as vítimas abortadas – enquanto não forem vistas, pode-se propagandear, ou “goebbellizar”, à vontade o “direito” à “IVG” (dever-se-ia dizer APF: Aniquilação Propositada do Filho/a) que se conquistará a simpatia e o apoio da opinião pública e se multiplicará o número de mães que, com a “cabeça feita”, “voluntariamente”, prestando consentimento à sua própria alienação/violentação aniquilarão propositadamente seus filhos/as com a colaboração activa dos serviços do Estado, pagos pelos impostos de todos nós.

É certo que nos dias que correm é mais difícil expor esta desolação horrenda do que o foi em Nuremberga, por vários motivos, a saber: a) apesar de existirem imagens filmadas e fotográficas, os grandes órgãos de comunicação social não só censuram esta realidade como são cúmplices do terror mascarado de doçura, de compaixão, de amor, de direitos, ou seja, de justiça; b) apesar do número de vítimas ultrapassar imensamente as do holocausto nazi não há grandes amontoamentos de cadáveres para mostrar porque os corpos dos bebés mutilados, queimados, decapitados e destruídos são, segundo testemunhas de médicos e outros empregados em “clínicas” de abortamentos, vendidos, usados em experimentação, ou incinerados, ou deitados nos caixotes do lixo, ou lançados nas retretes para que o empuxão das águas dos autoclismos os atire para os esgotos. 16; c) porque não convém à ideologia abortófila dominante, a comunicação social ignora sobranceiramente as mães e os médicos que caindo em si, profundamente arrependidos denunciam as abominações execráveis da legalização do aborto provocado.17

4 – Um médico judeu e famoso ex-abortófilo, Bernard Nathanson, cujo resumo das suas confissões pode ler na nota 17, considera que a liberalização do aborto vai muito para além do “mal absoluto” a que se refere a filósofa H. Arendt. Disse ele numa conferência na Califórnia:

“I’ m going to set it against my Jewish heritage and the Holocaust [nazi] in Europe. O holocausto do aborto está para além do discurso habitual da moralidade e da condenação racional. Não basta declará-lo como mal absoluto. Mal absoluto é uma formulação imprópria para caracterizar esta tragédia do aborto (quarenta e três milhões, número que continua a aumentar [refere-se ao número de abortos provocado nos USA desde a sua liberalização em 1973. Actualmente o número já subiu para perto de 48 milhões]). A tragédia do aborto é um novo evento, truncado das conexões com os pressupostos tradicionais da história, psicologia, política e moralidade. Estende-se para além das deliberações da razão, para além dos discernimentos do juízo moral, para além do próprio sentido. Chamar-lhe meramente um holocausto ou uma tragédia é trivializá-lo. É, nas palavras de Arthur Cohen, talvez o melhor sábio especialista no Holocausto Europeu, um mysterium tremendum, um mistério total para a mente humana – um mistério não só pela sua vastidão mas pela ressonância do terror, algo tão inteiramente diabólico que literalmente está fora do alcance do nosso conhecimento.

Este é um mal arrancado e livre das suas amarras ou ancoradouros na razão e na causalidade, uma corrupção mundana (“secular”) comum alçada a poderes inimagináveis de ampliação e extremos ilimitados. Nelly Sachs, uma poetisa que escreveu poemas sobre o Holocausto [nazi] na Europa e que ganhou o Prémio Nobel em 1966, escreveu um poema intitulado o “Chorus of the Unborn”. Deixem-me ler-vos algumas linhas:

We, the unborn, the yearning has begun to plague us
as shores of blood broaden to receive us.
Like dew, we sink into love but still
The shadows of time lie like questions over our secret.”18

Esta iniquidade misteriosa e imensa, sem precedentes na História da humanidade, está-nos encaminhando para aquilo que M. Schooyans designa de ultranazismo, ou seja,

“…[O] nazismo levado ao seu estádio supremo, mundializado e inscrito nas práticas, nas leis, nas instituições e mesmo na ética

a) Não se compreendeu que esta malícia não residia principalmente no regime que caracterizava o nazismo, mas sim na sua natureza profunda. Não se viu que a essência do nazismo é a sua natureza totalitária, ou seja, a sua vontade de destruir o Eu, tanto físico como psicológico. O nazismo é obcecado pela vontade de infligir a morte.

b) Apesar das ruidosas negações daqueles que as animam, as correntes que, depois de terem feito legalizar o aberto, se empenham actualmente em legalizar a eutanásia, inscrevem-se objectivamente nesta tradição, consumando a sua perversão, ou seja, indo além do nazismo. Com efeito, infligir a morte não é simplesmente um «direito» que a sociedade pode exercer sobre aqueles que estima terem uma vida indigna de ser vivida; é também um «dever», e a mesma sociedade tem de garantir a sua execução para aqueles que desejam «morrer com dignidade», por considerarem que a sua é indigna de ser vivida.

À consideração do Direito da sociedade a infligir a morte aos seres cuja vida é indigna de ser vivida, típica do nazismo, junta-se pois, aqui, aquela outra típica do liberalismo, do direito do indivíduo a «morrer com dignidade».

c) Mas nos dois casos, de facto, e para lá dos travestismos ideológicos, o acto de infligir a morte é coberto pela lei e sua execução confiada ao pessoal médico. Em suma, a lei legitima o assassínio médico.

d) Por estas mesmas razões, quando um Estado dá aos pais o «direito» de matar os seus filhos, acaba rapidamente por dar aos filhos o «direito» de matar os pais.
Assim, nestes diferentes casos, a «lei» é chamada a «legitimar» a «medicalização» do homicídio.

Esta aliança totalitária entre a mentira e a violência foi implacavelmente denunciada por André Frossard: «O mentiroso sabe que mente, o criminoso esconde ou nega o seu crime, e os sistemas políticos mais diabolicamente injuriosos para a espécie humana julgam-se obrigados a enfeitar com a dignidade da justiça as suas ignomínias, e a macaquear o direito cada vez que o violam».”19

Nuno Serras Pereira
28. 11. 2006

______

1 Klaudia Schank, Michel Schooyans, Euthanasie: Le Dossier Binding & Hoche, Traduction de L’ allemand, presentation et analyse de liberaliser la destruction d’ une vie qui ne vaut pas d’ être vécue, Texte integral de l’ ouvrage publié en 1922 à Lepzig, Éditions du Sarment, 2002
2 Para as consequências nefastíssimas do aborto legal nas mulheres, veja, por ex.: Detrimental Effects of Abortion:
An Annotated Bibliography With Commentary, Third Edition, Edited by Thomas W. Strahan, Acorn Books, 2001, pp. 261; http://www.afterabortion.org/ ; http://www.silentnomoreawareness.org/
3 Para os interesses inconfessáveis dos dias de hoje ver, por exemplo: Michel Schooyans,
La Derive Totalitaire du Libéralisme, Mame, Paris, 1995, pp. 350; J. Scala [Jurista], IPPF a Multinacional da Morte, Tradução de Pe. Luiz Lodi da Cruz, de acordo com a segunda edição argentina – apêndice sobre a realidade brasileira acrescentado pelo tradutor(1997), Brasil 2004, Anápolis, Múltipla Gráfica editora, pp. 415; Robert G. Marshall and Charles A. Donovan, Blessed Are The Barren –The Social Policy of Planned Parenthood, Ignatius Press, San Francisco 1991, pp. 371; Brian Clowes, Pro-Life Activist's Encyclopedia, Stafford, Virginia: American Life League, Inc., 1993; National Security Study Memorandum (NSSM) 200 .

4 Gitta Sereny,
Into That Darkness, New York, 1974, p. 62.
5 Ihor Kamenetsky,
Secret Nazi Plans for Eastern Europe, New York, 1961, chapter on ‘German Lebensraum’, p.171.
6 A. Hitler, citado in 1. Wi¬lliam Shirer,
The Rise and Fall of the Third Reich, London, Pan Books, 1964, p. 1,118. Docu¬mento fonte: Nuremberga # 1130-PS, ‘Nazi Conspiracy and Agression,’ Volume VIII, p. 53. 2. Hillel and Henry, Of Pure Blood, p. 148, citando ‘Tigesprache im Fuhrerhauptquartier’.
7 Leon Poliakov,
Harvest of Hate, Syracuse, New York, 1954, pp. 272-274. Também Kamenetsky, pp. 197-199.
8 Poliakov, pp. 272-274. Também
Nuremberg trial transcripts em NG-2325.
9
Trials of War Criminals Before The Nuremberg Military Tribunals, Washington, 1949-1954. Transcript at V:109. Também Ri¬chard Stites, The Women’s Liberation Movement in Russia, Prince-ton, 1975, pp. 264-265, 355, 385-388 e 403-405).
10 Nuremberg Trial Transcripts at IV: 1,077, V:112; e IV: 1,076, 1,081 e 1,090.
11 Michael Schwartz, “Abortion The Nazi Connection.” News¬letter of the Catholic League for Religious and Civil Rights, August 1978, p. 1.
12
idem
13
ibidem
14
ibidem
15 Dr. Leo Alexander, “Medical Science Under Dictatorship.”
The New England Journal of Medicine, July 14, 1949, pp 29-47.
16 Ver por ex.: George Grant,
Grand Illusions – The legaçy of Planned Parenthood, Newly Revised Third Edition, Higland Books, 1998, pp. 408; David Kupelian, The Marketing of Evil: How Radicals, Elitists, and Pseudo-Experts Sell Us Corruption Disguised as Freedom, WND Books, 2005, 256 pp.; http://lifedynamics.com/
17 Vale a pena conhecer a confissão do médico Bernard Nathanson, um dos principais responsáveis pela liberalização do aborto no USA:
“I am personally responsible for 75,000 abortions. This legitimises my credentials to speak to you with some authority on the issue. I was one of the founders of the National Association for the Repeal of the Abortion Laws (NARAL) in the U.S., in 1968. A truthful poll of opinion then would have found that most Americans were against permissive abortion. Yet within five years we had convinced the U.S. Supreme Court to issue the decision which legalised abortion throughout America in 1973 and produced virtual abortion on demand up to birth. How did we do this? It is important to understand the tactics involved because these tactics have been used throughout the western world with one permutation or another, in order to change abortion law.

The first key tactic was to capture the media
We persuaded the media that the cause of permissive abortion was a liberal enlightened, sophisticated one. Knowing that if a true poll were taken, we would be soundly defeated, we simply fabricated the results of fictional polls. We announced to the media that we had taken polls and that 60% of Americans were in favour of permissive abortion. This is the tactic of the self-fulfilling lie. Few people care to be in the minority. We aroused enough sympathy to sell our program of permissive abortion by fabricating the number of illegal abortions done annually in the U.S. The actual figure was approaching 100,000 but the figure we gave to the media repeatedly was 1,000,000. Repeating the big lie often enough convinces the public. The number of women dying from illegal abortions was around 200-250 annually. The figure we constantly fed to the media was 10,000 [“We lobbied the legislature, we captured the media, we spent money in public relations … Our first year’s budget was $7, 500. Of that, $5, 000 was allotted to a public relations firm to persuade the media of the correctness of our position. That was 1969.]. These false figures took root in the consciousness of Americans convincing many that we needed to crack the abortion law. Another myth we fed to the public through the media was that legalising abortion would only mean that the abortions taking place illegally would then be done legally. In fact, of course, abortion is now being used as a primary method of birth control in the U.S. and the annual number of abortions has increased by 1500% since legalisation. …

The second key tactic was to play the catholic card
We systematically vilified the Catholic Church and its "socially backward ideas" and picked on the Catholic hierarchy as the villain in opposing abortion. This theme was played endlessly. We fed the media such lies as "we all know that opposition to abortion comes from the hierarchy and not from most Catholics" and "Polls prove time and again that most Catholics want abortion law reform". And the media drum-fired all this into the American people, persuading them that anyone opposing permissive abortion must be under the influence of the Catholic hierarchy and that Catholics in favour of abortion are enlightened and forward-looking. An inference of this tactic was that there were no non-Catholic groups opposing abortion. The fact that other Christian as well as non-Christian religions were (and still are) monolithically opposed to abortion was constantly suppressed, along with pro-life atheists' opinions.

The third key tactic was the denigration and suppression of all scientific evidence that life begins at conception
I am often asked what made me change my mind. How did I change from prominent abortionist to pro-life advocate? In 1973, I became director of obstetrics of a large hospital in New York City and had to set up a prenatal research unit, just at the start of a great new technology which we now use every day to study the foetus in the womb. A favourite pro-abortion tactic is to insist that the definition of when life begins is impossible; that the question is a theological or moral or philosophical one, anything but a scientific one. Foetology makes it undeniably evident that life begins at conception and requires all the protection and safeguards that any of us enjoy. Why, you may well ask, do some American doctors who are privy to the findings of foetology, discredit themselves by carrying out abortions? Simple arithmetic at $300 a time, 1.55 million abortions means an industry generating $500,000,000 annually, of which most goes into the pocket of the physician doing the abortion. It is clear that permissive abortion is purposeful destruction of what is undeniably human life. It is an impermissible act of deadly violence. One must concede that unplanned pregnancy is a wrenchingly difficult dilemma, but to look for its solution in a deliberate act of destruction is to trash the vast resourcefulness of human ingenuity, and to surrender the public weal to the classic utilitarian answer to social problems. …
18 Cit. in David Kupelian, Idem, pp. 204-205
19 Michel Schooyans,
A Escolha da Vida – Bioética e população, pp. 157-159, Grifo, Junho 1998, pp. 329. A obra, embora sem notas de rodapé que aparecem na edição impress, pode ser consultada facilmente na Internet: http://perso.infonie.be/le.feu/ms/dpsom/psompr.htm

O Ovo da Serpente

João César das Neves
In Diário de Notícias
Segunda, 22 de Outubro de 2007
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Na passada segunda-feira, o título principal do Diário de Notícias era: "Rastreio pré-natal falha em 60% das grávidas." O texto alertava de que a maioria das futuras mães não faz testes para despistar a trissomia 21 e outros problemas cromossomáticos. As causas identificadas para a omissão são o custo do exame, não comparticipação do Estado, falta de laboratórios capacitados e de critérios definidos, além de "mulheres com baixa escolaridade e fracos recursos económicos" (DN, 15/10/2007).

À primeira vista trata-se de mais um problema de saúde pública onde o atraso e pobreza do País criam graves efeitos sociais. Mas há um pequeno detalhe que o artigo não refere: a trissomia 21 e os problemas cromossomáticos não têm cura. Alguns tratamentos precoces ajudam, mas pouco há a fazer à criança quando se detecta esse tipo de males. Além do aborto, claro. A única forma, como diz o texto, de tornar os "casos de trissomia evitáveis nos fetos de jovens grávidas" é matar a criança. Porquê então fazer esta divulgação, se não é para promover o aborto?

Ninguém imagina o pavoroso sofrimento dos pais que descobrem no seu filho esta terrível doença. Mas a maior parte das distorções de cromossomas é inevitável e incontrolável. Pior ainda, como a amniocentese e outros testes recomendados têm graves riscos para a saúde da mãe e, sobretudo, da criança, a sua promoção pode tornar-se um real perigo para a saúde pública. Dado que, ainda por cima, existem "muitos falsos positivos (um em 20)", esta acaba por ser uma forma de suscitar a morte de crianças saudáveis, por mera precaução dos pais.

O incentivo ao aborto é evidente. E aberto: o procurador-geral da República e o ministro da Saúde tentam agora forçar a Ordem dos Médicos a mudar o seu código deontológico nesse tema por ser ilegal (DN, 18/10/2007).

Este ano, o País aprovou a liberalização do aborto. Hoje calaram-se os argumentos, discussões, elaborações ideológicas. Mas coisas destas nunca se vão embora. Quando fechamos os olhos à violação dos direitos humanos ela cresce sempre mais. Vive-se a lenta degradação de carácter, a terrível descida na infâmia.

Há 30 anos, nos fins de 1977, o genial Ingmar Bergman, falecido no passado 30 de Julho, apresentou o filme O Ovo da Serpente. A acção passa-se na Berlim de Novembro de 1923 que vive a euforia do fim da guerra. Nesse ambiente de liberdade, um médico, aparentemente apostado na cura, contribui com as suas experiências pseudo-científicas para destruir seres humanos. Faltava ainda muito para surgir o nazismo, mas já se entreviam os traços do monstro em gestação. Como através da membrana transparente do ovo da cobra.

Que semelhança entre os horrores nazis e a situação actual do aborto em Portugal? As diferenças são abissais, mas um ponto é comum. Precisamente o de Bergman. Na Berlim de 1923, como hoje em Lisboa, proclamavam-se os direitos humanos, elaborava-se a filosofia política, defendia-se a liberdade e a democracia. Ao mesmo tempo tolerava-se a gestação de um monstro. Foi assim que a sofisticada Alemanha, a terra de Goethe e Beethoven, caiu na decadência máxima da civilização.

Ouvir a elevação das nossas afirmações actuais contra a pobreza, das manifestações a favor da dignidade humana, da firmeza na justiça e solidariedade é ficar orgulhoso dos nossos valores. Desde que não se note o montinho de cadáveres minúsculos que sai pelas traseiras das clínicas. Como na democracia alemã de 1923, é essa porta por onde entra o monstro.

Este paralelo entre o aborto e o nazismo é feito num livro que acaba de sair. O volume Ao Gólgota! - A Liberalização do Aborto e o Nazismo (Editora Crucifixus, 2007) reúne os artigos que o franciscano padre Nuno Serras Pereira publicou na Internet no último ano e meio.

Como pode alguém comparar a nossa situação com o horror do nazismo? Passa pela cabeça essa semelhança? Se pensa assim, por favor não se esqueça que esse era precisamente o sentimento que tinha a despreocupada Berlim de 1923. Esse é o enigma do ovo da serpente.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A ONU e a ameaça aos direitos humanos

O Professor Michel Schooyans, especialista em filosofia política e demografia, em entrevista à agência Zenit denuncia como dentro da própria UN determinadas agências e mentalidades minam os direitos do homem.

Dia da Criança a Nascer: Uma Sugestão

1 - Valor da Pessoa desde a sua Concepção
2 - A Vida é Sempre um Bem
3 - Questão Social
4 - Novas e Inquietantes Ameaças à Vida
5 - Conjura contra a Vida
6 - Contracepção – Métodos Naturais
7 - Reprodução Artificial e Diagnóstico Pré-Natal
8 - O Aborto Provocado
9 - Mulheres que Abortaram
10 - Outros Responsáveis no Aborto Provocado
11 - Não Matarás
12 - A Consciência
13 - A Liberdade
14 - Os Direitos Humanos
15 - A Democracia
16 - A Justiça e a Paz
17 - A Lei
18 - Políticos Católicos
19 - Colaboração com o Mal e Objecção de Consciência
20 - A Mulher e a Viragem Cultural a favor da Vida
21 - Oração
22 - Mãos à Obra
23 - Educação Sexual nas Escolas?
24 - Família
25 - Dia da Criança a Nascer

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A Verdade que é Jesus Cristo veio ao mundo para que tenhamos vida e a tenhamos em abundância. Esta vinda do Deus filho, que encarnou, isto é, que Se fez homem no seio da Virgem Maria, Senhora de Fátima, aconteceu no dia da Anunciação do Anjo a Nossa Senhora. Este dia celebra-o a Igreja a 25 de Março, precisamente nove meses antes do Natal, isto é, do nascimento do Menino Jesus, Nosso Senhor.

1 - Valor da Pessoa desde a sua Concepção

Quis Sua Santidade o Papa João Paulo II, iluminado pelo Espírito Santo, assinalar este dia com a publicação da poderosa e belíssima encíclica “O Evangelho da Vida”, em 1995, para nos recordar o carácter sagrado e inviolável da vida de cada ser humano, desde o seu início até ao seu termo natural. Esta é a razão porque numerosos países têm vindo a celebrar o dia das crianças a nascer, a 25 de Março. Também nós, em Portugal, poderíamos associar-nos a essa celebração a partir deste ano de 2004. Parece, por isso, oportuno apresentar uma síntese livre, que não dispensa de modo nenhuma a leitura, antes pretende a ela incitar, dessa encíclica e de outros textos do Papa, em particular no que diz respeito ao valor da vida intra-uterina e à gravíssima injustiça do aborto provocado. Na sua grande maioria recorrer-se-á às próprias palavras do Santo Padre, mas algumas serão da minha responsabilidade.

O valor da pessoa, desde a sua concepção, é também celebrado no encontro do Menino Jesus com S. João Baptista no seio de Suas mães, a Virgem Maria e Sta. Isabel. São precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. «Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor. ... Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe». Assim a Sagrada Escritura coloca-nos diante dos olhos um feto de seis meses, João Baptista, reconhecendo como Messias a Jesus, ainda na Sua fase embrionária.

Mesmo «dispensando» a Revelação e recorrendo somente à razão humana a Igreja não tem dúvidas de que «a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre ... a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir». Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer «uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana?». Esta interrogação corresponde, de facto, a uma afirmação categórica da identidade entre ser humano e pessoa. De resto, é assim que João Paulo II a interpreta: «A distinção que por vezes é sugerida em alguns documentos internacionais entre ser humano e pessoa humana, para depois reconhecer o direito à vida e à integridade física somente à pessoa já nascida, é uma distinção artificial sem fundamento científico nem filosófico ... ».

A Igreja não pode, pois, deixar de insistir sobre a necessidade de que se reconheça o estatuto do embrião humano, ou seja, da pessoa na sua fase embrionária, aprovando um regime legal da sua protecção jurídica.

2 - A Vida é Sempre um Bem

Na sua encíclica o Santo Padre lembra-nos que o Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância». Ele fala daquela vida «nova» e «eterna» que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal «vida» que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado. O homem é, assim, chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus. Mas a sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade

Todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração, o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política. Todos são chamados a tutelar este direito, mas de um modo particular, devem defendê-lo e promovê-lo os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem». De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que «amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único», mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.

Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!

A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.

Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de aparentado com o pó da terra é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória. Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: «A glória de Deus é o homem vivo». Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus. Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: «glória de Deus» é, sim, «o homem vivo», mas «a vida do homem consiste na visão de Deus ».

Por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no núcleo da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.

3 - Questão Social

«Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos».

Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial.

4 - Novas e Inquietantes Ameaças à Vida

Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.

Com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delineia e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.

Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimemente criminosas e rejeitadas pelo sentido moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem.

Por isso, queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre os atentados, relativos à vida nascente que apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o carácter de «crimes» para assumir, paradoxalmente, o carácter de «direitos», a ponto de se pretender um verdadeiro e próprio reconhecimento legal da parte do Estado e a consequente execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde. Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser «santuário da vida».

5 - Conjura contra a Vida

Se muitos e graves aspectos da problemática social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade subjectiva do indivíduo, certo é que estamos perante uma realidade mais vasta caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira «cultura de morte», activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.

Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se reconhecer uma guerra dos poderosos contra os fracos: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma objectiva conjura contra a vida na qual estão também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas em encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto. Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou de grupo, mas estende-se até atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados.

6 - Contracepção – Métodos Naturais

Para facilitar a difusão do aborto, são investidas somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a morte da pessoa humana, na sua fase embrionária ou fetal, no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A própria investigação científica, neste âmbito, parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e responsabilidade social. Isto é demonstrado, de modo alarmante, com a produção de fármacos, como, por exemplo, a pílula do dia seguinte, também chamada contracepção de emergência, “vacinas” ad¬ministradas por via oral ou injectáveis e dispositivos intra-uterinos os quais, distribuídos com a mesma facilidade dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.

Não poucas vezes acusa-se a Igreja de favorecer o aborto, uma vez que continua constantemente a ensinar a ilicitude moral da contracepção e esta seria, segundo os acusadores, o remédio mais eficaz, se tornada segura e acessível a todos, contra o mesmo. Mesmo colocando de parte o que se disse no parágrafo anterior sobre os abortivos precoces que são apresentados como contraceptivos, a objecção é falaciosa. É certo que pode acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas os pseudo-valores inerentes à «mentalidade contraceptiva» — muito diversa do exercício responsável da paternidade e maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto conjugal — são tais que tornam ainda mais forte essa tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à virtude da justiça e viola directamente o preceito divino «não matarás».

Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita frequência, intimamente relacionados como frutos da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e desresponsabilizante da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível diante de uma contracepção falhada.

Por isso, a obra de educação para a vida comporta a formação dos cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes têm-se aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais. Uma honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da saúde e da assistência social, sobre a importância de uma adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores morais que o seu uso supõe.

A verdade sobre a ilicitude da contracepção e sobre a bondade dos métodos naturais não é meramente confessional, mas de ordem racional, sendo parte da lei natural que todo o homem traz inscrita em si.

7 - Reprodução Artificial e Diagnóstico Pré-Natal

Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto integralmente humano do acto conjugal, essas técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses, chamados «embriões supranumerários», são depois suprimidos ou utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a simples «material biológico», de que se pode livremente dispor.

Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita frequência, ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce de uma mentalidade — julgada, erradamente, coerente com as exigências «terapêuticas» — que acolhe a vida apenas sob certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade.

Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais desconcertante com as propostas — avançadas aqui e além — para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que se esperava superado para sempre.

Felizmente não faltam tratamentos de grande eficácia que respeitam a vida e, também, a dignidade dos cônjuges, e que são concordes com a lei natural, que permitem, com um sucesso maior que a reprodução artificial, a geração de filhos. Seria muito importante canalizar as grandes somas de dinheiro investidas na reprodução artificial para este tipo de tratamentos.

8 - O Aborto Provocado

O aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como é realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento. A gravidade moral do aborto propositado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. Não espanta, pois, que a Igreja reconheça que de entre todos os crimes que o homem pode cometer contra a vida humana, o aborto provocado apresente características que o tornam particularmente perverso e abominável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, como «crime abominável».

9 - Mulheres que Abortaram

A Esposa de Cristo, nossa Mãe, reserva um pensamento especial para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. É verdade que, não poucas vezes, a opção de abortar revestiu para vós um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é sempre tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.

Estando a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, a Igreja não duvida de que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu foi e permanece profundamente injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai de infinita misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento da Confissão, também chamado da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do direito de todos à vida. Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.

Vem a propósito assinalar aqui a campanha iniciada, não há muito, nos EUA intitulada “Basta de silêncio” (“Silent no more”). Mulheres que abortaram legalmente em estabelecimentos de saúde testemunham o horror que têm passado, os enganos que lhes venderam, as ilusões de que o aborto resolveria os problemas que afinal só agravou. São elas que agora se levantam e pedem a proibição do aborto. Os seus impressionantes testemunhos têm mudado o coração de muitos, inclusive políticos, que eram favoráveis à liberalização do aborto.

De facto, segundo estudos realizados em países onde o aborto é legal, por especialistas na matéria, entre as consequências possíveis para as mulheres que abortaram, encontram-se as seguintes: Aumento de morte materna, cancro da mama, desprezo por si próprias, pensamentos suicidas, pesadelos, luto, culpabilidade, fobias, comportamentos compulsivos, dificuldades sexuais e no relacionamento com pessoas do outro sexo, agressividade, problemas de relação com as crianças, sensação de vazio, quedas no alcoolismo, na droga e na promiscuidade sexual, esterilidade, abortos espontâneos, gravidezes ectópicas, hemorragias e infecções, perfurações dos úteros, insónias, exaustão, nervosismo, peritonites, febres etc. (Cf. - Cf . entre outros, J. Brind, M. Szentmártoni, M. Peteers, WEBA - women exploited by abortion, M. Baker, David C. Reardon, M. Mahler, N. Michels, V. M. Rue, C. A. Barnard, J. L. Rogers, J. R. Ashton, A. Saltenberger, D. Mall, W. F. Watts, P. G. Ney, A. Sutton, S. Gindro, A. C. Speckhard, S. Stanford-Rue, K. Winkler, D. Crawford, M. Manion, J.J. Dillon, W. Poltawska, E. Pasini, J. L. Uldry, D. Frances¬cato, M. Prezza, A. Pigatto, F. Spiwak-Rotlewitcz, B. Hudnal Stamm, L., veja também, por exemplo, este site e este).

10 - Outros Responsáveis no Aborto Provocado

A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de uma gravidez: desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser «santuário da vida». Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar. Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.

Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissividade sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado — e não o fizeram — válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas.

Não se pode negar que os mass-media são também frequentemente responsáveis, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso ao aborto e à própria eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida.” Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e defensores. Como João Paulo II escreveu na Carta às Famílias, «encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização». Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma «estrutura de pecado» contra a vida humana ainda não nascida.

11 - Não Matarás

A geração de um filho é um facto não só profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam «uma só carne», e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como o Santo Padre escreveu na Carta às Famílias, «quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação».

Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança. A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento «não matarás», colocado na base de toda a convivência social. O cumprimento do preceito «não matarás» é condição indispensável para poder entrar na vida eterna. Deus é o defensor do inocente. Deus comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos. Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo. «Assassino desde o princípio», o diabo é também «mentiroso e pai da mentira»: enganando o homem, levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.

Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos «dez mandamentos» na aliança do Sinai. Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: «Não matarás», «não causarás a morte do inocente e do justo». O mandamento «não matarás», contido e aprofundado no mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede «Mestre, que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna?», responde: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos». E, logo em primeiro lugar, cita «não matarás».

Defender e promover, venerar e amar a vida de cada ser humano é tarefa que Deus confia a cada homem.

12 - A Consciência

Nos dias de hoje, a percepção da gravidade do aborto provocado vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas».

Ora a consciência recta é um órgão que escuta a verdade sobre o bem da pessoa e formula juízos sobre cada acção concreta, indicando o bem a praticar e o mal a evitar.

A consciência verdadeira é o núcleo mais secreto, o sacrário do homem, onde este se encontra a sós com Deus, para escutar a Sua voz e acolher a verdade do seu ser, a sua estrutura interna, a sua identidade, isto é, a lei inscrita por Deus no seu coração, à qual é chamado a obedecer e segundo a qual será julgado. Podemos dizer que a consciência é: a) um “ouvido”, uma instância de acolhimento, que escuta a verdade; b) um “olhar”, isto é, um juízo, lançado sobre a realidade que i) percebe o bem a fazer e o mal a evitar e ii) avalia (ajuíza) a bondade ou maldade de uma acção realizada; c) uma força que move e empuxa a realizar o bem e a evitar o mal. A consciência não obriga por si mesma, mas porque mostra a vontade de Deus.

No entanto, já o Concílio Vaticano II advertia que a consciência pode errar quer por ignorância invencível quer porque o homem não cuidando de procurar a verdade e o bem, aos poucos, pelo hábito do pecado, torna a consciência quase cega (GS 16). Por isso, tem que ser formada. Esta é, porventura, uma das principais razões porque é necessário o acolhimento e a fidelidade à verdade ensinada pelo Magistério da Igreja, que foi, precisamente, instituído para o serviço, ou seja, para a formação das consciências.. De facto, é o único e mesmo Deus que sussurra ou brada na consciência e ensina ou guia pelo Magistério - “Quem vos ouve, a Mim Me ouve e quem vos rejeita a Mim rejeita”, disse Cristo aos Seus apóstolos e seus sucessores.

Ora como ensina o Santo Padre, a tolerância legal do aborto provocado ou da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se possam verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade. Respeitando embora a consciência daquele que a tem deformada importa colocá-lo em situação de não atentar contra os direitos dos outros.

13 - A Liberdade

Reivindicar o direito ao aborto e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado».

14 - Os Direitos Humanos

É totalmente falsa e ilusória a comum defesa, que aliás justamente se faz, dos direitos humanos — como por exemplo o direito à saúde, à casa, ao trabalho, à família e à cultura, — se não se defende com a máxima energia o direito à vida, como primeiro e fontal direito, condição de todos os outros direitos da pessoa.

Depois de um longo processo histórico em que se descobriu o conceito de «direitos humanos» — como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados —, incorre-se hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer.

A estas nobres proclamações contrapõem-se, infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas declarações com a recusa daquele que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente na direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de «con-viventes», as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos.

15 - A Democracia

Quando a lei, votada segundo as chamadas regras democráticas, permite o aborto, o ideal democrático, que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: Como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais fraca e a mais inocente? Em nome de que justiça se realiza a mais injusta das discriminações entre as pessoas, declarando algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é negada? Deste modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a «casa comum», onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, como a criança ainda não nascida, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.

Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, assume uma decisão tirânica contra o ser humano mais débil e indefeso.

Estas são razões fundamentais, entre outras, pelas quais a Igreja não pode deixar de insistir com todos os homens de boa-vontade, crentes e não crentes, para que se empenhem na revogação da lei 6/84 que introduziu a despenalização do aborto provocado em Portugal. Como disse João Paulo II a propósito das leis que admitem o aborto: Pede-se «aos Pastores, aos fiéis e aos homens de boa vontade, em especial se são legisladores, um renovado e concorde empenho para modificar as leis injustas que legitimam ou toleram essas violências. Não se renuncie a nenhuma tentativa de eliminar o crime legalizado ... » . E ainda: Não «há nenhuma razão para aquele tipo de mentalidade derrotista que considera que as leis que se opõem ao direito à vida - as que legalizam o aborto, a eutanásia, a esterilização e os métodos de planeamento familiar que se opõem à vida e à dignidade do matrimónio - são inevitáveis e até quase uma necessidade social. Pelo contrário, são um gérmen de corrupção da sociedade e dos seus fundamentos.».

16 - A Justiça e a Paz

Também não se pode reivindicar o direito ao aborto em nome de uma pretensa paz social uma vez que não pode ter bases sólidas uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a paz. De facto, não pode haver paz verdadeira sem respeito pela vida, em especial se é inocente e indefesa como a das crianças ainda não nascidas. É uma exigência de coerência básica que quem procura a paz defenda a vida. Não é possível uma acção efectiva pela paz sem uma oposição de igual esforço aos ataques contra a vida em todas as suas fases.

17 - A Lei

«A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um acto de violência. Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei.». «Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder».

Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos inocentes, por meio do aborto estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. As leis que autorizam e favorecem o aborto colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar.

18 - Políticos Católicos

Lembrem-se todos os católicos, em particular os legisladores e demais políticos, que no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto, a reprodução extra-corpórea ou a eutanásia é sempre gravemente ilícito conformar-se com ela, ou participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, ou dar-lhe a aprovação com o próprio voto. Se alguém o fizer não só atenta gravemente contra o seu bem espiritual, mas põe em perigo a sua salvação eterna e não se encontra em estado de poder receber a Sagrada Comunhão: «A rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente uma rejeição de Cristo.». Pois, como disse o mesmo Cristo «tudo o que fizerdes ao mais pequenino dos Meus irmãos a Mim mesmo o fizestes». Recordem-se os sacerdotes que têm cura de almas que a teor do cânon 915 do Código de Direito Canónico têm o dever, depois de um juízo prudente, de negar a tais pessoas a comunhão eucarística.

Matar ou proporcionar que se organize a morte do ser humano, no qual está presente a imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.

Os preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada acção têm um valor absoluto para a liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias, sem excepção. Indicam que a escolha de determinado comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer intenção ou consequência, está em contraste insanável com a comunhão entre as pessoas e contradiz a decisão fundamental de orientar a própria vida para Deus.

19 - Colaboração com o Mal e Objecção de Consciência

A introdução de legislações injustas põe frequentemente os homens moralmente rectos frente a difíceis problemas de consciência em matéria de colaboração, por causa da imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a participar em acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si mesmas indiferentes ou mesmo até positivas, previstas no articulado de legislações globalmente injustas, consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro lado, pode-se justamente temer que a disponibilidade para realizar tais acções não só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição necessária aos atentados contra a vida, como insensivelmente induza também a conformar-se cada vez mais com uma lógica permissiva.

Para iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em acções moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se quando a acção realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem assumido num contexto concreto, se qualifica como participação directa num acto contra a vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no facto de que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos actos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre a qual cada um será julgado pelo próprio Deus.

A pena de excomunhão não recai somente sobre a mulher que abortou, mas também sobre todos os que cooperaram formalmente na realização desse aborto provocado.

Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral, mas também um direito humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um direito essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva, preparatória e executiva de semelhantes actos contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos, aos outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas e casas de saúde. Quem recorre à objecção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e profissional.

20 - A Mulher e a Viragem Cultural a favor da Vida

É necessária uma viragem cultural a favor da vida. Nela as mulheres têm um espaço de pensamento e acção singular e talvez determinante: compete-lhes fazerem-se promotoras de um «novo feminismo» que, sem cair na tentação de seguir modelos «masculinizados», saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro génio feminino em todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela superação de toda a forma de discriminação, violência e exploração.

Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, a Igreja dirige-vos este convite: «Reconciliai os homens com a vida». Vós sois chamadas a testemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: «A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. Este modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem — não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral — que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher». Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica viragem cultural.

21 - Oração

Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somos sustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe que o Evangelho da vida, como o Reino de Deus, cresce e dá frutos abundantes. Certamente é enorme a desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de que estão dotadas as forças propulsoras da «cultura da morte», e os meios de que dispõem os promotores de uma «cultura da vida e do amor». Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem nada é impossível.

A Igreja movida de pungente solicitude pela sorte de cada homem e mulher repete-vos é urgente uma grande oração pela vida, que atravesse Portugal inteiro. Com iniciativas extraordinárias e na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada família e do coração de cada crente eleve-se uma súplica veemente a Deus, Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes contra as forças do mal, e ensinou aos seus discípulos que alguns demónios só desse modo se expulsam. Encontremos, pois, novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do amor.

22 - Mãos à Obra

A Igreja não pode deixar de estremecer de alegria e de se comover ao verificar que não poucos dos seus filhos, aqui em Portugal, se têm dedicado ao anúncio, à celebração e à vivência do Evangelho da Vida. Como não lembrar o trabalho oculto de tantos sacerdotes no confessionário, na oração, na pregação, na selecção cuidada dos agentes pastorais e responsáveis eclesiais, na criação ou amparo de tantas obras sociais de apoio e serviço à vida? Como esquecer o empenhamento esforçado, generoso e determinado de tantos leigos, crentes e não crentes, que com grande sacrifício dedicam tanto tempo na nobre política, na criação de movimentos pró vida, no fomento de uma cultura da vida, na comunicação social, na edificação de centros da apoio às mães grávidas em dificuldade, a crianças em risco, a mulheres que abortaram, em movimentações cívicas, em movimentos de suporte à família, em vigílias de oração etc., etc.?

A Igreja não pode deixar de encorajar-vos, sentindo muita estima e apreço pelo vosso trabalho na vinha do Senhor, sentindo-se mesmo grata em Jesus Cristo pelo amor que Lhe tendes, quer a Ele mesmo quer à Sua presença em cada pessoa. Não desanimeis, pois ela vos abençoa e por vós ora continuamente.

Uma palavra particular merecem também os Catequistas que têm a alta missão de anunciar o Evangelho da Vida às crianças e aos jovens, encharcados que estão numa cultura de morte. A vossa palavra e o vosso testemunho será de importância vital para que eles saibam resistir pela vida fora às seduções daquele que é homicida desde o princípio e que sempre procura e fomenta a morte, o Maligno.

Importa muito ter presente que uma autêntica pastoral da vida não pode ser simplesmente delegada em movimentos específicos, embora sempre meritórios, que actuam no campo sócio-político. Ela deve permanecer sempre como parte integrante da pastoral eclesial, à qual compete anunciar o Evangelho da vida : Na mobilização por uma nova cultura da vida todos têm um papel importante a desempenhar.

A leitura assídua e meditada do capítulo IV da encíclica O Evangelho da Vida está cheio de preciosas sugestões a que sempre se pode recorrer como a fonte inesgotável.

23 - Educação Sexual nas Escolas?

Lembre-se o Estado que a educação dos filhos, ainda para mais num âmbito tão sensível, é um direito inalienável dos pais. É inadmissível a imposição, por parte do Estado, da obrigatoriedade da educação sexual nas escolas, transversal ou não, à revelia dos pais. O Estado pode e deve tão só ter um papel subsidiário. Se quer uma sociedade democrática forte terá de favorecer a educação para as virtudes, em particular para as virtudes da justiça e da temperança. É nesta última que se enquadra a virtude da castidade. Assim o Estado poderá em estreita colaboração com os pais ajudá-los na tarefa da educação, não impondo uma ideologia, mas despertando-os para a autenticidade do seu ser, formando cidadãos equilibrados, justos, prudentes, corajosos e moderados.

Também a Igreja está à disposição das famílias para ajudar todos os seus membros a formarem rectamente a consciência. À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente respeito da vida, forma-o nas justas relações entre as pessoas.

De modo particular, é necessário educar para o valor da vida, a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza da pessoa toda, manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor. A banalização da sexualidade conta-se entre os principais factores que estão na origem do desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade e do amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado «esponsal» do corpo.

24 - Família

A Igreja chama as famílias a não se renderem, mas a tomarem aquelas decisões que, tendo em conta as possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas terão de ser removidas as causas que favorecem os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido apoio à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é necessário activar iniciativas sociais e legislativas, capazes de garantir condições de autêntica liberdade de escolha em ordem à paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para se conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da família, tornando possível um efectivo cuidado das crianças e dos idosos.

25 - Dia da Criança a Nascer

Ciente da grave responsabilidade de anunciar a todos o Evangelho da Vida, sugere-se que os portugueses, em particular os crentes em Cristo, celebrem o dia da criança a nascer, não só associando-se ao que for proposto, mas criando inventivamente iniciativas adequadas a um festejo condigno. Seria bom que as Paróquias e Movimentos convidassem todos à participação na Santa Missa e nela se rezasse pelas crianças a nascer; pelas mães grávidas em dificuldade; pelas que abortaram e por todos os que participaram no aborto, para que se convertam e encontrem a misericórdia do Senhor; pelos políticos, para que trabalhem pelo bem comum, isto é, o bem de todos e cada um desde a concepção até à morte natural; pelos médicos, farmacêuticos, enfermeiros e demais profissionais da saúde, para que se empenhem cada vez mais no respeito, serviço e cuidado da vida de cada pessoa, desde a sua fase unicelular até ao fim natural, etc. Nessa celebração poderia haver um ofertório em géneros e dinheiro que revertesse a favor de instituições dedicadas ao serviço da vida. As Paróquias poderiam também organizar conferências ou palestras ou testemunhos para a noite desse dia sobre o Evangelho da Vida, nas suas múltiplas facetas. Enfim, todos saberão, inspirados pelo Espírito Santo, o que fazer e como realizá-lo. Os nossos irmãos e irmãs, ainda não nascidos, eminentemente vulneráveis, agradecer-nos-ão no momento supremo, o amor, o serviço, a protecção que agora lhes concedemos. Trata-se do momento em que escutaremos: Vinde benditos de Meu Pai porque estava no ventre materno e vós me defendestes.

À Virgem Maria, Nossa Senhora de Fátima, Mãe da vida e sua protectora confiamos os nossos trabalhos, entregamos todas as crianças a nascer, pedimos que ilumine o povo português para que acolha sempre e sem hesitação Jesus Cristo, Vida do mundo.



ORAÇÃO


V. - Vós formastes as entranhas do meu corpo
e me criastes no seio de minha mãe.
R. - Eu Vos dou graças por me haverdes feito
tão maravilhosamente. (Sl. 138)

Pai-nosso

V. - Desde o seio materno sois o meu Deus. (Sl.21)
R. - Desde o ventre materno sois o meu protector.
Em Vós está a minha esperança. (Sl.70)

Ave-maria

V. - Não morrerei, mas hei-de viver
R. - Para anunciar as obras do Senhor. (Sl.117)

Glória

OREMOS: Pai Santo, Amor Criador, Senhor da vida, Deus Providente e Todo-Poderoso, Vós, que desde toda a eternidade quisestes o ser e a vida de cada um de nós, e enviastes ao mundo o Vosso Filho, que Se fez carne no seio de uma Mulher, unindo-se, de certo modo, a todos os homens, a fim de que, pela Sua cruz e ressurreição, tenhamos a Vida e a tenhamos em abundância, dai-nos, por intercessão da Virgem Maria, o Vosso Espírito Vivificante para que, acolhendo-O como ela, sempre, em qualquer circunstância e sem excepção alguma, amemos, respeitemos, protejamos e sirvamos a vida, dignidade, direitos e integridade de cada ser humano inocente — desejado ou imprevisto, são ou enfermo, escorreito ou deficiente — desde o momento da concepção até à morte natural, e, indo, assim, ao Vosso encontro, alcancemos a felicidade eterna. Por Nosso Senhor Jesus Cristo Vosso Filho que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

Nuno Serras Pereira
28. 02. 2004

Nota Bene: Devido ao elevado número de notas, omitimo-las. No livro O Triunfo da Vida (editora Crucifixus) do P. Nuno Serras Pereira poderá encontrá-las.

Homilia Sobre o aborto

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Na Missa da Vigília de dia 03.02.1998


INTRODUÇÃO


Minha querida irmã deputada Odete Santos, caríssimo irmão deputado Sérgio Sousa Pinto dedico-vos esta homilia na esperança que vos cheguem as minhas palavras como as vossas me chegam quase diariamente. Apesar da religiosidade ser a expressão primeira da racionalidade não falarei a partir da fé, mas tão só da razão humana para que fique claro que esta questão não é religiosa. O que aqui nos reúne é, também, um amor verdadeiro por cada um de vós e dos vossos aliados, embora rejeitemos, firmemente, como perversa e abominável a defesa do aborto e da sua legalização. Sabemos bem distinguir entre os erros a combater audazmente, com uma ousadia que nem ao de leve suspeitais, e as pessoas a amar, se necessário, até ao martírio. Apelo não para as vossas opiniões nem para as vossas convicções mas sim para a vossa consciência. A consciência que como órgão ou instância decifradora da vossa identidade e estrutura interna mais profunda vos diz o mesmo que a todos diz universalmente: faz o bem e evita o mal, pratica a justiça e combate a injustiça, defende e promove a vida, nunca a elimines nem favoreças a sua aniquilação.

M. Teresa de Calcutá escreveu: “aterroriza-me pensar em todos aqueles que matam a própria consciência, para poder realizar o aborto” e, poder-se-ia acrescentar, também para o defender.

Não se pode aceitar a lógica violenta da luta de classes introduzida na relação mãe-filho. Não defendemos a mãe contra o filho nem o filho contra a mãe. Defendemos sim a mãe com o filho e o filho com a mãe. Defendemos a aliança, a cumplicidade e a solidariedade naturais que entre eles existe.

Acresce que, apesar da inaceitabilidade do método, na luta de classes ainda se compreende uma motivação generosa de defesa dos fracos contra os fortes enquanto que no caso do aborto se dá precisamente o inverso: concede-se um poder arbitrário e absoluto aos mais fortes contra os mais fracos e inocentes, totalmente incapazes de se defenderem.

A condição da possibilidade do nazismo foi a aceitação do pressuposto que advogava que alguns seres humanos eram dignos de viver enquanto a outros essa dignidade podia ser negada. Este mesmo pressuposto temo-lo encontrado categoricamente proclamado, pelos proponentes da liberalização do aborto, quando propugnam que a mulher, em nome da sua dignidade, possa atentar contra a dignidade do seu filho, impondo-lhe a morte com a cooperação activa do Estado.

Citemos, de novo, M. Teresa: “Qualquer país que aceite o aborto não ensina as pessoas a amar, mas a recorrer a qualquer tipo de violência para conseguirem o que querem”.

Uma palavra também para o grupo ‘Juntas pela dignidade’. Se estais pela dignidade então estais connosco, com os Juntos pela vida. E isto por dois motivos: o 1. É que, como provavelmente não o ignorareis não há dignidade sem vida humana. A vida porque é humana é digna. A dignidade não é concedida nem conquistada, mas é inerente à própria vida. E o 2. Porque quem atenta contra a dignidade alheia, matando voluntariamente a vida inocente, comete um acto indigno, deformando a sua identidade de ser racional e social, e corrompendo a própria dignidade.


1. DIREITOS HUMANOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

A declaração universal dos Direitos do Homem (10.12.48) abre com a afirmação de que “o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo consiste no reconhecimento da dignidade de todos os seres pertencentes à família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis”. Trata-se do princípio da igualdade, que se fundamenta no reconhecimento da dignidade do ser humano, isto é, do seu superior valor, que o distingue da restante natureza, porque a transcende. Por ser tão sublime, e por não admitir gradualidade, a dignidade é sempre igual para todos. Este princípio acolhido por todas as constituições modernas, exprime a verdade de que o homem é sempre um fim e nunca um meio, sempre sujeito e nunca objecto, sempre pessoa e nunca coisa.

Como escreveu o Tribunal constitucional Alemão na sua decisão de 25.02.75 precisamente a propósito do aborto “esta escolha fundamental da Constituição determina a estrutura e a interpretação de todo o ordenamento jurídico”. Esta decisão interpretava a palavra “cada um” contida no artg. 2 da constituição Federal - “cada um tem direito à vida”. O Tribunal Constitucional interpretou-a do seguinte modo: “entre cada uma das partes da vida em desenvolvimento antes do nascimento e entre o nascido e o nascituro não se pode distinguir nenhuma diferença. Cada um, no sentido do artg. 2 é cada vivente, por outras palavras: cada indivíduo humano que possui a vida; ‘cada um’ é portanto também o ser humano ainda não nascido”. E continua: “diante da omnipotência do Estado totalitário que pretendia o domínio sem limites em todos os sectores da vida social e para o qual o respeito pela vida de cada um, em princípio, não significava nada em comparação com a persecução dos seus fins estatais, a Constituição construiu um ordenamento ligado a um sistema de valores que coloca cada homem no centro de todas as suas normas.”

O reconhecimento da dignidade de cada ser humano é o que distingue o ordenamento estatal de “uma associação de malfeitores bem organizada” (Agostinho de Hipona). Só esse reconhecimento permite a união entre a ética e o direito, impedindo a redução da lei à mera força e enraizando-a (a lei) na justiça. A dignidade humana significa que o sujeito tem de ser reconhecido por aquilo que é; significa que o ser humano é sempre fim e merece por isso protecção por si mesmo, porque ele, enquanto tal, tem o originário direito de viver.

No direito antigo o escravo, apesar de ser reconhecido como homem, era considerado uma coisa, objecto de propriedade, de captura como os animais, à livre disposição do senhor. A sua morte por um terceiro era considerada um dano e não um homicídio. Em 1857 o Supremo Tribunal dos USA decretou por uma maioria de 7 votos contra 2 que os escravos legalmente não eram pessoas e portanto estavam privados de protecção Constitucional. Em 1973 o Supremo Tribunal do mesmo país, com igual maioria (7-2), decidiu o mesmo em relação aos bebés, ainda não nascidos.

Assim se compreende como é importante ligar o valor do indivíduo à pertença à espécie humana pois este tem sido o método de um longo combate histórico que, em nome da dignidade e da igualdade, libertou escravos, estrangeiros, mulheres, etc. De facto, o princípio da igualdade, ou da não discriminação, é eliminado quando se consente ao poder civil estabelecer quais são os sujeitos iguais. Ao poder nazi bastou decidir que a característica humana qualificante era a raça ariana para espezinhar a igualdade. Se afirmarmos que os negros não são sujeitos de direito é inútil proclamar a igualdade, e o mesmo se passaria com as mulheres, com perseguidos políticos, com os emigrantes, com os fetos.

O homem não pode ser decidido pelo direito. O direito só pode e deve reconhecê-lo como sujeito. Pois se assim não for os direitos humanos não passarão de uma miragem.

Que é então o homem? Antes de responder têm que se recusar as teorias que exigem, aliás arbitrariamente, como características definidoras de humanidade a auto-consciência, a capacidade de relação e a aceitação social porque, quando aplicadas ao homem, também, na fase pós-natal, implicam uma discriminação inaceitável.

Que é o homem?

“O homem é o indivíduo vivente pertencente à espécie humana”. Esta definição, que se refere somente às características biológicas da espécie humana, é, decerto, uma escolha filosófica, mas é a única que exclui toda a discriminação e, portanto, a única coerente com o princípio da igualdade.

Como o direito não pode confiar à consciência individual e às opiniões de cada um o reconhecimento dos sujeitos sem se negar a si mesmo e ao princípio da igualdade, não faz nenhum sentido apelar ao pluralismo cultural para contraditar esta evidência. (Para este 1º ponto, cf. C. Casini).


2. O FETO

a) Que é um feto? Que realidade é? É um objecto ou um sujeito? É uma coisa ou é alguém? É portador de direitos? É propriedade de alguém? Quem decide o seu futuro?

b) O feto não pode ser uma coisa porque a sua natureza material e biológica o coloca entre os seres pertencentes à espécie humana. Ora, se não é uma coisa, no plano jurídico, o feto só pode ser um sujeito. (Para esta alínea cf Conselho Nacinal de Bioética de Itália e C. Casini).

c) As teorias funcionalistas afirmam que o valor da vida humana em geral, e em especial o da vida humana pré-natal, depende da capacidade das suas funções. Deste modo, a vida pré-natal não teria valor por não poder realizar nenhuma função social. O funcionalismo é legítimo quando se tem de distinguir entre diferentes modalidades de acção, mas não se pode aplicar a questões que dizem respeito ao ser e não ao agir. Por isso tem de ser refutado. Ora é impossível negar que o feto seja um de nós 1. porque cada um de nós necessariamente foi um feto; 2. porque do ponto de vista genético não há nenhum salto ou ruptura entre o que éramos imediatamente a seguir à concepção, quando já estava totalmente determinado o nosso genoma, e aquilo que agora somos geneticamente em absoluta continuidade de desenvolvimento com aquela realidade única e irrepetível que é cada indivíduo geneticamente determinado.
Reduzir o feto à categoria de coisa é pura e simplesmente negar a verdade da realidade. O feto é um de nós e merece portanto o mesmo respeito que merece qualquer sujeito humano. (Para esta alínea cf F. D’Agostino)

d) Acresce que a tese para a qual a pessoa é um conjunto de funções actualmente em exercício não pode ser aceite porque introduz, subrepticiamente, a legitimidade de uma discriminação entre os seres humanos na base da possessão de certas capacidades ou funções. Ora a simples possessão da natureza humana implica para todo o indivíduo humano o facto de ser pessoa. A pessoa é definida pela natureza ontológica, pelo que um indivíduo concreto pode ser de natureza racional mesmo quando não manifesta todas as características da racionalidade. (Para esta alínea cf Conselho Nacional de Bioética de Itália).

Feto humano, bebé, ainda não nascido, tu és nosso irmão!


3. CONSEQUÊNCIAS PARA O DIREITO

Hoje o princípio da não discriminação deve ser reconhecido no âmbito das diversas idades e condições de uma mesma existência humana, particularmente no que diz respeito à fase da vida ainda não nascida. Trata-se de reconhecer, também no âmbito jurídico, que feto, recém-nascido, adolescente, jovem, adulto, idoso são nomes diversos que indicam um sujeito idêntico, o mesmo ser pessoal.

É preciso, então, afirmar em linguagem jurídica que todos os homens são sempre iguais no seu misterioso valor e que não pode haver nenhum ser pertencente à espécie biológica humana que não seja por isso mesmo um homem e portanto um sujeito, uma entidade subtraída ao reino das coisas. (Para este ponto cf. C.Casini)


4. A CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E OS DIREITOS DOS OUTROS.

a) Temos ouvido repetidamente afirmar que o aborto é uma questão da consciência individual de cada um. Pondo agora de parte a confusão tão frequente, a que já nos referimos, que se faz entre consciência verdadeira e opiniões, ou mesmo simples convicções, devemos afirmar que dizer: “o aborto é uma questão da consciência íntima de cada um” é só uma meia verdade. Mas a meia verdade pode ser mais perigosa que a mentira descarada.

É verdade porque em qualquer decisão humana, seja ela qual for, está implicada a consciência como um ouvido que escuta a verdade e como um olhar lançado sobre a realidade.

Na questão do aborto, porém, há uma relação na qual estão implicados os direitos de outro ser humano. Por isso, a questão do aborto é antes do mais uma questão direitos humanos ou de direito natural que deve ter expressão jurídica no direito positivo.

b) Explicitando melhor: Quando alguém se depara com uma questão de moral pessoal ou privada, na qual não estão em jogo os direitos de outrem, a solução ordenamental deverá ser a de remetê-la para a responsabilidade do sujeito que a enfrenta. O seu lugar é o da mera consciência individual. Trata-se, de facto, de um valor moral, que pode ser muito importante, mas não se está diante dos direitos de ninguém. Temos então o dever de ajudar o sujeito a decidir, prestando-lhe o máximo de informação para que o faça responsavelmente. Mas não podemos prescrever-lhe a solução, ele é que a deverá encontrar.

Pelo contrário quando se está na presença de uma questão que embate com os direitos de alguém, como no caso do aborto, não bastam as recomendações, mas é necessário recorrer a prescrições e mesmo a proibições. O direito diz respeito à relação que se manifesta em dinâmicas de tipo social Compete-lhe, de facto, tratar com seriedade as relações de tipo social defendendo sempre os sujeitos mais fracos e inocentes contra os abusos ou prepotências dos mais fortes. (Para esta alínea cf G. Amato e F. D’Agostino).

c) O bebé, ainda não nascido, é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em abso¬luto, se possa imaginar. É eminentemente vulnerável e débil, mais do que qualquer outro sujeito. E, por isso, o direito tem o dever de tutelá-lo. O aborto deve ser sempre considerado acto ilícito, de índole penal, embora em determinadas situações se possa ou deva suspender a aplicação da pena, pelo recurso ao expediente processual da inexigibilidade subjectiva de um comportamento de per si socialmente negativo. (Para esta alínea cf. E.V. 58, F. D’Agostino, D. Eurico D. N. e C. Casini).

À ASSEMBLEIA AQUI PRESENTE

Meus irmãos aqui presentes. O senhor Primeiro Ministro disse, na cimeira Ibero-Americana, que “um Estado que não respeita integralmente os direitos humanos não é um Estado ético, é um Estado imoral”. (Noticiário da RR - 19 h, 08.11.1997).

Ora, o primeiro de todos os direitos, fundamento de todos os outros, é o direito inviolável à vida. Uma vez que o aborto provocado mata voluntária e directamente a vida humana inocente e indefesa, segue-se, inevitavelmente, que é um grave atentado contra os direitos humanos. Por isso, um Estado que o legalize não respeita, nem faz respeitar, esses mesmos direitos.

É, pois, legítimo que vós, na vossa qualidade de cidadãos, peçais ao senhor Primeiro Ministro que tire as conclusões do que declarou e afirme, claramente, que um Estado que legaliza o aborto é um Estado imoral. Eu como padre no exercício das funções litúrgicas não o posso fazer.


NOTA - Carlo Casini é Presidente da Comissão jurídica do Parlamento Europeu; Francesco D’Agostino é Presidente do Conselho Nacional de Bioética de Itália; G. Amato é Presidente da Comissão Anti-trust em Itália.

Nuno Serras Pereira