1. Quando escutava aquele Sacerdote ficava deslumbrado. Era um colosso de interioridade espiritual que, com o vigor da sua palavra, expulsava imensidades de demónios. Os crentes ao ouvi-lo sentiam-se confirmados e fortalecidos na sua Fé; os descrentes ou indiferentes convertiam-se aos magotes; e todos, quais frutos maduros desprendendo-se das árvores, como outrora Zaqueu, lhe caíam aos pés, de joelhos, confessando os seus pecados. A sua Fé portentosa transmutava orgulhos em humildades, com a mesma facilidade com que um cataclismo desfazia uma enorme montanha escavando no mesmo abalo um profundíssimo vale; transfigurava desesperos e amarguras em esperanças e alegrias como um poderoso sol que evapora um mar para logo em seguida o derramar, em gotas de doçura, sobre a terra.
E era tão claro que nada disto tinha origem nele, mas que vinha do alto, de uma Palavra desde sempre dita e nunca calada. Era um espanto sempre crescente, um abismo de admiração, considerar como nele, aquele ser tão fraco e limitado, tão tu cá, tu lá, se tornava presente a Majestade do Infinito. A sua denúncia do mal era o estrondear de um trovão; o seu raciocínio claro e veloz como o fogo de um relâmpago que ilumina, purifica e aquece; a sua palavra fluente como as águas da chuva abundante que inunda de bênçãos a terra. Capaz de provocar tremores sísmicos nas interioridades humanas irrompia simultaneamente em erupções de certezas e determinações que tudo reconstituíam em novas modelações configuradas à Verdade, que é o outro nome do Amor.
2. Por que era Padre podia não só desabafar, com ele, como confessar-se. Nele podia repousar os seus espantos e perplexidades, as suas mágoas e dúvidas, as suas cobardias e mediocridades. Os seus ouvidos eram como vastíssimos oceanos onde tudo o que era seu podia desaguar. Contava-lhe aquilo em que se empenhava e aquilo de que fugia. Falava-lhe das suas crenças, das suas esperanças, dos seus desejos. Dizia-lhe claramente o que pensava, julgava e sentia. Não lhe ocultava as suas aversões nem os seus medos nem as suas frustrações, admitia os seus fracassos mas também lhe confidenciava as suas amizades, os seus amores, os seus êxitos e triunfos. Com ele podia ser autêntico, mostrar-se tal qual era, ser completamente verdadeiro.
Algumas vezes interrogava-se de que grandes arcanos seria ele guardião pois tudo o que de vil e abjecto da sua boca lhe saía, em desafogos e confissões, ao entrar nos seus ouvidos, sofria um misterioso processo “alquímico” que tudo transfigurava em palavras de estímulo e encorajamento, em bênçãos e graças. Era uma presença visível de Cristo, que da morte tira vida, no qual podia, como outrora S. João, repousar a alma no seu coração.
3. Acresce que o Padre era um dilúvio de alegria que tudo inundava de descontracção. Brincalhão até ao exagero, entregava-se às tropelias mais imprevistas e aos ditos mais inesperados. Capaz das maiores exuberâncias parecia um “charlot” fugido da tela ou um frei Junípero saído das Florinhas. Como os jograis, era um canto à vida, provocando contentamentos com graciosidades e jovialidades; como os bobos, era dotado de uma acentuada ironia crítica, despoletando verdades fulgurantes por entre gracejos, caretas e pulos; como os palhaços ao mascarar-se desmascarava os outros com simplicidades e infantilidades. Dotado de um poder de fascínio impressionante, a sua palavra era como um pincel que coloria quadros vivos, diante de quem o escutava, com exemplos, comparações, vivências e sentimento. Ao ouvi-lo ficava-se suspenso ou então ria-se a bandeiras despregadas e minutos depois chorava-se com emoção, ou gargalhava-se e pranteava-se simultaneamente. A sua vitalidade surpreendente era um tonificador capaz de recuperar um exército desbaratado. Com ao mesmo à vontade com que fazia jejuns rigorosos em espírito de penitência, bebia café, whisky e dava umas passas no cigarro louvando o dador destes pequenos prazeres.
Ao pé dele, sentia que tudo era desdramatizado e que a vida era um hino de simpatias e cordialidades ou uma presença constante do amor. Parecia impossível estar triste à sua beira: a sua despreocupação desvanecia escrúpulos e melancolias. Surpreendentemente, não obstante, de um momento para o outro aquela enorme gargalhada humana era capaz da maior seriedade; de raciocínios com a aridez da abstracção metafísica; de uma palavra dura e fria, como um penedo que se abatia sobre quem o ouvia, ou de uma atitude brusca, semelhante a um furacão devastador que a ninguém poupava. Perecia, então, uma erupção instintiva de raízes ancestrais de que só tomava consciência após a razia consumada. Nessas alturas era bruto como aqueles avôs, de cepa beirã e mentalidade granítica, para quem não ser seco e rijo, num homem, era suspeito.
É certo que nesses modos, nele raros, verdade seja dita, já tinha uma ou outra vez, com duas penadas, resolvido problemas que, desde há muito, muitos com falas mansas tentavam solucionar. Outras vezes, todavia, era incompreensível e sempre magoava.
4. Lembrou-se, de repente, que às vezes pensava se a sua vocação não seria o sacerdócio. A bem dizer, não sabia de onde lhe vinha este impulso. É certo que, desde miúdo, conhecera muitos padres. Mas sabia-lhes demasiadamente os defeitos para se poder entusiasmar com a vida de qualquer um deles. Uns eram irritantemente vaidosos ou petulantes, outros cheios de manias, muitíssimos cinzentos ou maçadores e todos falhos de qualquer coisa. Nada escapava ao seu sentido crítico apurado que com subtil ironia tudo ridicularizava. Eram insuportavelmente humanos. E, apesar disso, sem saber porquê, o Padre surgia-lhe como o grande herói dos nossos tempos: gigantes que proclamavam a verdade num mundo de mentira, que implantavam a Fé num mundo descrente. Por tantos solicitado, o Padre é o homem que não se poupa, que em correrias loucas ou em orações pausadas se dá, se gasta, se consome pelos outros, por todos os outros. Admirava-se que não desfalecessem pelo caminho, estes lobos solitários ferozmente depredadores do mal, vigorosos construtores do bem. Como ele gostaria também de ser outro Cristo anunciando a Sua Palavra, distribuindo perdões, alimentando os famintos, celebrando a acção de graças, vivificando almas áridas. Como um novo S. Cristóvão, carregar herculeamente com o peso do mundo. Participar da alegria do Pai pelo filho regressado, andar em busca da ovelha perdida e com imenso regozijo afagá-la e metê-la aos ombros. Há tanta alegria no Céu! E em banquetes ou pelas cidades, arrastando multidões, semear o Reino dos Céus. Ir de casa em casa dando a saudação da paz. Desprendido de tudo abandonar-se à Providência que veste as flores do campo e alimenta os pássaros do Céu. Implantar a fé e tudo instaurar em Cristo. A fé! É daí que tudo brota! A Fé celebrada na Esperança e vivida na Caridade.
Subitamente, cessaram-lhe todos os pensamentos e uma escuridão inteira abateu-se sobre ele. O breu absoluto. Um vazio imenso. Tudo era solidão angustiante - noite universal sem astros que tudo envolvia. Tudo era nada. E o nada mais gélido do que a morte.
Silenciosamente, na profundidade das trevas, ascendia majestaticamente dos abismos inferiores um disco branco, hóstia imaculada. Nela pregado, com ela confundindo-se, um Padre, bem o reconhecia, pobre, desnudo e crucificado, suspenso entre o Céu e a Terra, de ambos abandonado, agonizava numa solidão infinita.
Que visão assombrosa seria esta que tanto o aterrorizava mas que simultaneamente o fascinava e o atraía como o fogo à borboleta. Queria fugir e detinha-se, queria esquecer e fixava-se, queria ignorar e indagava. Sem saber como, soltou-se-lhe das entranhas um brado: Tu que fazes aí?! E da fragilidade humana envolta na nuvem branca, desprenderam-se gemidos:
Padre - “Meu Deus! Meu Deus! Porque me abandonaste?” “Até o amigo íntimo em quem eu confiava, até esse se levantou contra mim!”
João - Mas então todos te abandonaram? Não há quem esteja contigo? A tua cruz é a do pecado ou a da virtude? Só vejo escuridão. Onde estão aqueles a quem perdoaste? Onde estão os que ensinaste? Onde estão aqueles que as tuas palavras e a tua presença, como o óleo santo, suavizaram e curaram? Tantos te aplaudiram. A tantos te deste tanto. Tantos por ti riram felicidades, por tua causa choraram arrependimentos. Onde estão?
Padre - Este é o nosso destino. Outros Cristos, com Ele estamos crucificados. A Sua oferta é a nossa oferta, o Seu destino o nosso. Nunca fiz tanto como agora que nada faço. A minha cruz é a do pecado e a do Amor, não pura como a d’ Ele; é a dos ladrões e a de Cristo numa só - e por isso é provação, castigo e purificação. Sim o nosso destino é a solidão. A Sua solidão. Não será esta a face oculta do nosso dia-a-dia que ninguém vê? Todos me abandonaram, todos menos a Mulher. Ela a Mãe fecunda, a Virgem pura, casta como as águas do Céu, fértil como as margens do Nilo - Lua cheia, resplendor da bondade do Pai. Só Ela, como outrora, ficou.
João - Também eu ficarei. Agora estou contigo. Permanecerei com Ela junto à tua cruz pois nem ao próprio Deus faltou a amizade na hora final. Estou aterrado, cheio de suores frios, mas ficarei. Permanecerei na amargura desta noite recolhendo as gotas de sangue que escorrem do teu corpo, cicatrizando esse peito rasgado pela ingratidão de tantos e pelo teu próprio pecado, arrancando esses espinhos de pavores e misérias que te atormentam. Chegou a hora de dar-me, sabendo que de ti nada posso receber. Dantes bebia da tua energia e fortalecia-me admirando-te. Agora vejo-te fraco, nu nas tuas debi1idades e pecados. Toda a tua imundície me é manifesta; esquadrinho a tua alma na sua podridão e baixeza.[1] A tua abjecção repugna-me, a tua corrupção é fétida e as tuas hipocrisias nauseabundas. É uma visão assustadora que me apavora. As tuas grandezas foram-me veladas, as tuas virtudes encobertas, as tuas heroicidades proibidas de aparecerem. Diante das tuas cobardias e vergonhas, aprendi a tua lição última: o Amor gratuito. Nunca te sintas só porque, para além de Deus e da Mulher, tens-me a mim.
Padre - Essa tua palavra santifica-me, pois a sua origem é Divina. Só Cristo ama assim. O que viste é a revelação daquilo que seria sem Ele e tudo o que admiraste na minha vida é o que sou com Ele: pois sem Ele nada posso. Felizes daqueles como tu que ao conhecerem os outros assim não os abandonaram e que ao conhecerem-se a si mesmos do mesmo modo não desesperaram. Não recolhas, no entanto, o meu sangue: deixa-o regar a terra. Não cicatrizes o meu peito nem me arranques os espinhos porque a minha solidão é a vossa comunhão, a minha morte é a vossa vida. Quero tragar o cálice até ao fim: pois quem quiser ir após Ele tome a sua cruz e siga-O.
Olha, agora, esta hóstia que me eleva e nota bem de que é feita.
Não vês que é a comunidade dos outros que Deus assumiu? Vê os órfãos de quem fui pai e as viúvas de quem fui defensor. Olha a multidão dos jovens convertidos em retiros; tantos políticos e catedráticos, camponeses e analfabetos absolvidos por estas mãos. Olha as crianças salvas, no seio das suas mães que as não queriam, por uma palavra destes lábios que Cristo abriu. E estes que deixaram a droga e o a1coól porque no meu coração encontraram o Pai que me habitava.
Aqueles, ali, são os que tinham resolvido pôr fim à vida mas a quem comuniquei a Esperança que o Espírito depositava em mim. Considera a quantidade de famílias a desfazer-se que foram reconstituídas pela Paz que Cristo me infundia. Tantos outros que se reencontraram, só porque os escutei. Tanta fome que se matou porque, ao distribuir o Pão Consagrado, ensinava-lhes que quem come Pão tem de ser Pão para os outros. Vê os doentes que ungi, levando-lhes o conforto do Altíssimo, os noivos que casei e os tantos filhos que fiz nascer pelas águas do baptismo. Considera a multidão imensa que me leva para o Céu. Eles são, n’ Ele, a minha salvação. É certo que me esqueceram mas o bem que Deus neles fez, por mim, permanece. A minha solidão é real o meu abandono verdadeiro; mas é necessário sofrê-los até ao fim, pois tudo desemboca em Ressurreição, explosão infinita de Amor e de alegria sempre nova. Quando nos momentos difíceis, suspenso entre o Céu e a Terra, por ambos abandonado, sinto a presença da Mãe e a tua sei que é Ele, em vós, que me conforta e “tudo posso n’ Aquele que me conforta”.
Então, a escuridão transformou-se numa intensíssima luz de infinitos clarões, o silêncio transfigurou-se em coros de miríades, as trombetas soaram e o Céu dançou. Legiões de anjos esvoaçaram Hossanas, multidões de mártires entoavam Aleluias, milhares de milhares prorrompiam em júbilos, os santos bradavam de alegria e o Padre revestido de túnica branca contemplava os novos Céus e a nova Terra em que tudo tinha sido renovado.
Nuno Serras Pereira
[1] A alma de si é boa, bela e preciosa. Aqui e no que vai adiante considera-se aquilo que a degrada e a derranca – o pecado. Não necessariamente o pecado actual mas todo aquele que cometeria se a alma não fora amparada pela Graça de Deus. O Sacerdote, num certo sentido, não é chamado a vencer somente as suas tentações mas também as dos outros de modo a que a sua vitória reverta espiritualmente sobre eles e os fortifique nos seus combates.