Mostrar mensagens com a etiqueta idosos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta idosos. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Velhos como os trapos

por Maria José Nogueira Pinto

In DN

Chamaram-lhes seniores, idosos, pessoas da terceira idade. Usaram com eles um léxico variado, uma espécie de cobertura de açúcar que foi ocultando uma dura e triste realidade. Conheci-os, há muito, nas camas dos hospitais, nas camas dos lares, prisioneiros em suas casas, sós como cães em bancos de jardins e soube que alguns eram encontrados sem vida pelas ajudantes familiares, depois de terem enfrentado a morte na mais completa solidão.

Vieram ter comigo, uma manhã de Outono já arrepiada de frio, eram cinco, três muito velhos e dois apenas um pouco menos, a pé, amparando-se mutuamente através das ruas íngremes do Bairro Alto, até chegarem ao meu gabinete da Misericórdia de Lisboa para me exporem as suas vidas, carências e aflições. O assunto era tão melindroso que roçava a indignidade, uma nudez crua que submetiam ao meu olhar porque a vida a isso os obrigava: tinha (alguém, os Serviços, a Senhora Técnica? Não sabiam ao certo) sido dada uma ordem que cortava o número de fraldas a que tinham direito mensalmente. "Ora as fraldas, a menina sabe, fazem-nos muita falta". "Então agora como é que têm feito?", perguntei. "Cortamos cada fralda em três pedaços e assim rende mais. Mas é muito mau", disse outra, porque "esfarelam-se todas e não protegem". "Pois não", concluíram em coro. Mandei vir uma fralda e uma tesoura e, mais por mim do que por eles, pedi-lhes que repetissem esse gesto que transformava em três pedaços esfarelados uma fralda de adulto.

Fiquei envergonhada - julgo que essa era a ideia - por coisas destas acontecerem paredes meias com quem manda e dirige, com quem gere e distribui recursos, pessoas que não usam fraldas, não as cortam em três, para quem andar nos meandros dos bairros lisboetas não significa um esforço físico excessivo, pessoas como eu que, no mínimo, têm que levar murros no estômago quando coisas destas acontecem. Se alguma dúvida me restasse ela dissipou-se nessa manhã bisonha: pode o envelhecimento ser, na maioria dos casos, um caminho para a pobreza, a indignidade, a dependência mais aviltante? Não. Mas para isso era (e é) imperativo priorizar esta questão, dar-lhe uma estratégia, dotá-la de recursos e prossegui-la sem hesitações. Foi assim que se fez o levantamento dos idosos no concelho de Lisboa, que se estudou a cobertura de apoio domiciliário, o tipo de respostas novas que seria preciso criar para fazer face a problemas diferentes que emergiam brutalmente após décadas de uma política de apoios que se revelavam manifestamente insuficientes e desadequados. Foi assim que nasceu, por exemplo, o "Mais Voluntariado Menos Solidão" com a preciosa colaboração do "Coração Amarelo" e da Cruz Vermelha. Foi assim, também, que fomos buscar o Euromilhões, um novo jogo social consignado ao envelhecimento e às dependências e que hoje, constou-me, foi parcialmente desviado para manobras de diversão do mais puro marketing político.

Afinal parece que ninguém sabia que Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo (o sétimo), que os nossos velhos são os mais pobres da Europa, que na sua maioria são doentes crónicos, que muitos sofrem ou vão sofrer de demências e que para além de dependências crescentes se encontram sós, com pouca ou nenhuma família, sem redes de vizinhança efectivas, optando por comprar remédios ou comida. O census de 2001 apontava já para 35 mil idosos isolados na cidade de Lisboa. Confinados ao casco histórico e a outras zonas desertificadas viram os seus descendentes serem expelidos para as periferias. Muitos destes fogos de habitação nunca tiveram obras, nas mansardas pombalinas os telhados em más condições deixam entrar a chuva, o frio e o calor tórrido do Verão.

Apesar de tanto Ministério, Direcção-Geral, Gabinete de Estudos, Observatórios, dados estatísticos e milhões e milhões de euros gastos sabe-se lá como, em Portugal é possível não conhecer a realidade e trazê-la para os jornais a propósito de um único caso concreto. Como se este enorme drama não valesse por ser tão silencioso. E esta é, estou certa, a nossa maior falta e a nossa pior vergonha.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Corações ocos


por Baptista-Bastos
In DN

"Velhos, ó meus queridos velhos, saltem-me para os joelhos: vamos brincar?" Alexandre O' Neill

O número perturbador de velhos portugueses que morreram sós, e estiveram anos sem ninguém disso dar conta, permitiu uma série de piedosas declarações. A "atomização da sociedade", de que falou, admiravelmente, Simone de Beauvoir, num ensaio esquecido mas não datado [La Vieillesse], facilitou o sistema em que sobrevivemos, e que "confina com a barbárie."

Os nossos velhos pagam, amarga e dolorosamente, as nevroses das suas infâncias e as consequências das suas vidas frustradas, esmagadas, irrealizadas e aceitas com a resignação de quem foi alienado para consentir o inevitável declínio. A velhice, tal como as sociedades modernas a tratam, é uma questão de anomalia política, uma mutilação. Podíamos, talvez, atenuar essa violência, essa desolação social, com um pouco de compaixão.

Porém, autorizámos que nos esburacassem os sentimentos. Reparem: deixámo-nos de nos cruzar uns com os outros: simplesmente, atravessamo-nos; afastámo-nos da cordialidade, expulsámo-nos dos laços que nos uniam e justificavam como seres humanos e como comunidade. O nosso coração está oco.

Um país que abandona assim os seus velhos, que assim deixa morrer os seus velhos, é um sítio sem memória, um vácuo no vácuo. Um local inóspito que perdeu a ligação do espiritual e foi ocupado pela desordem estabelecida. Mas os sobressaltos de emoção são momentâneos. A dialéctica da Imprensa impede a durabilidade das nossas indignações, já de si muito ténues e muito frágeis. Os velhos mortos na solidão de todas as mortes serão substituídos pela inclemência da eterna actualidade. Morrem e passam a número. A dissolução do humano assimilou os nossos mais pequenos gestos, as nossas mais escassas fraternidades. A vulgaridade dos factos torna-se banalidade. Chega a ser indecoroso o lado mau da vida que os jornais expõem. Mas é assim. E o que assim é tem muito peso. O peso escandaloso da insensibilidade.

Os nossos velhos não estão, apenas, a morrer nas suas casas geladas de calor humano. Estão a morrer nos jardins, sentados na distância de já haverem perdido o pessoal sentido de identidade. O tempo flui neles e sobre eles, e já lhes não interessa, sequer, a desolação do seu fim de vida. Estão a morrer em caixotes horrendos, os paióis para onde são despejados como inutilidades que se desprezam.

E os jornais vão fornecendo números, levando, finalmente, para as primeiras páginas, aqueles que sempre as tinham merecido. Não gostamos dos nossos velhos. Abandonamo-los nos hospitais, rasuramos da nossa memória os seus afagos de pais e avós, as atenções que nos concederam, o amor que nos ofereceram sem contingências.

Que estamos a fazer a nós próprios?