O número perturbador de velhos portugueses que morreram sós, e estiveram anos  sem ninguém disso dar conta, permitiu uma série de piedosas declarações. A  "atomização da sociedade", de que falou, admiravelmente, Simone de Beauvoir, num  ensaio esquecido mas não datado [La Vieillesse], facilitou o sistema em que  sobrevivemos, e que "confina com a barbárie."
 Os nossos velhos pagam, amarga e dolorosamente, as nevroses das suas  infâncias e as consequências das suas vidas frustradas, esmagadas, irrealizadas  e aceitas com a resignação de quem foi alienado para consentir o inevitável  declínio. A velhice, tal como as sociedades modernas a tratam, é uma questão de  anomalia política, uma mutilação. Podíamos, talvez, atenuar essa violência, essa  desolação social, com um pouco de compaixão.
 Porém, autorizámos que nos esburacassem os sentimentos. Reparem: deixámo-nos  de nos cruzar uns com os outros: simplesmente, atravessamo-nos; afastámo-nos da  cordialidade, expulsámo-nos dos laços que nos uniam e justificavam como seres  humanos e como comunidade. O nosso coração está oco.
 Um país que abandona assim os seus velhos, que assim deixa morrer os seus  velhos, é um sítio sem memória, um vácuo no vácuo. Um local inóspito que perdeu  a ligação do espiritual e foi ocupado pela desordem estabelecida. Mas os  sobressaltos de emoção são momentâneos. A dialéctica da Imprensa impede a  durabilidade das nossas indignações, já de si muito ténues e muito frágeis. Os  velhos mortos na solidão de todas as mortes serão substituídos pela inclemência  da eterna actualidade. Morrem e passam a número. A dissolução do humano  assimilou os nossos mais pequenos gestos, as nossas mais escassas fraternidades.  A vulgaridade dos factos torna-se banalidade. Chega a ser indecoroso o lado mau  da vida que os jornais expõem. Mas é assim. E o que assim é tem muito peso. O  peso escandaloso da insensibilidade.
 Os nossos velhos não estão, apenas, a morrer nas suas casas geladas de calor  humano. Estão a morrer nos jardins, sentados na distância de já haverem perdido  o pessoal sentido de identidade. O tempo flui neles e sobre eles, e já lhes não  interessa, sequer, a desolação do seu fim de vida. Estão a morrer em caixotes  horrendos, os paióis para onde são despejados como inutilidades que se  desprezam. 
 E os jornais vão fornecendo números, levando, finalmente, para as primeiras  páginas, aqueles que sempre as tinham merecido. Não gostamos dos nossos velhos.  Abandonamo-los nos hospitais, rasuramos da nossa memória os seus afagos de pais  e avós, as atenções que nos concederam, o amor que nos ofereceram sem  contingências.
 Que estamos a fazer a nós próprios?