quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Um Prodígio de Alegria e Beleza

Andamos nós a inventar novos meios de comunicar o esplendor da verdade, graças a Deus, mas esquecemo-nos de alguns que pela sua sublimidade são sempre actuais e dotados de uma eficácia singular.

1. Em casa de meus pais não existia o hábito de escutar música. A minha mãe, uma leitora voraz, não a apreciava e o meu pai embora gostasse muito da clássica, por amor do seu amor a ela renunciava. Claro que à medida que fomos crescendo “reivindicamos” o gira-discos e com ele veio a música própria daqueles tempos: o Johny Halliday, a Silvie Vartin, a Françoise Hardy, o Adamo, o Gilbert Becaud, o Charles Aznavour, etc; e apesar de o nosso pai ser deputado à Assembleia Nacional escutávamos também os discos proibidos do Zeca Afonso. Numa telefonia antiga ligávamos para a Renascença e para a Rádio Clube que passava aquilo que então considerávamos a boa música moderna.

Porém, os vizinhos do segundo andar tinham uma excelente aparelhagem sonora e televisão. Para além disso, os três filhos tinham um enorme jeito para a música. O pai, o famoso pintor Tomás Mateus, e a mãe, a Maria José, tratavam-nos como filhos e quando lá íamos sentíamo-nos com o mesmo à vontade, e às vezes maior, do que em nossa própria casa. Para mim eram da família. Como nós não tínhamos televisão (ela só entrou lá em casa andaria eu pelos dezoito, vinte anos, quando queríamos ver algum programa íamos à deles. Uma vez que eu era da mesma idade do mais novo, o Zé Eduardo, passava lá a vida. A primeira coisa que o Zé fazia quando entrávamos na sala era ligar a telefonia para a Antena 2. À conta disso habituei-me a ouvir sinfonias e concertos durante horas. Muitas vezes escutámos também óperas que de quando em vez passavam na televisão. Acresce que quando íamos para o quarto do João e do Zé, o Luís Manuel tinha um quarto só para ele, o Zé agarrava-se à viola e embrenhava-se tocando J. S. Bach, compositor por quem ele tinha uma predilecção particular. Tanto quanto recordo aos quinze anos já dedilhava com primor as pautas desse artista.

Como todos os três irmãos eram exímios em música com alguma frequência improvisavam concertos de câmara. Mais frequentemente, o João e o Zé com mais alguns amigos virtuosos como eles nessa arte. Foi nessa altura que nasceram os famosos, entre os achegados, concertos da casa de banho. De facto, verificando-se, por um lado, que a divisão com melhor acústica era precisamente o banheiro e, por outro, que nos improvisos se podiam introduzir sons imprevisíveis - tais como a descarga do autoclismo, a torneira do lavatório a correr, o chuveiro ligado, o batuque nas bordas da banheira, o desentupidor a funcionar, a repercussão no chão de mármore -, não se duvidou em assentar aí a “sala de gravação” desses musicais. Como eles só sabiam tocar instrumentos menores como violoncelo, violino, viola de arco, alaúde, flauta, etc., a mim cabia a alta tarefa de abrir o chuveiro, etc…

Entretanto, não sabemos porque milagre inesperado, a nossa mãe acedeu a comprar uma aparelhagem musical magnífica. Melhor que a dos vizinhos de cima! Foi a curiosidade e a inveja da vizinhança jovem de, pelo menos, três prédios! Começámos então a ouvir de um modo melhor os Beatles, Bob Dylan, Otis Redding, Janis Joplin, os Doors, Deep Purple, Jetro Tull, The Who, Crosby, Still, Nash and Young, Dan Mclean, Feliciano, James Taylor, Joan Baez, Judy Collins, Leornard Cohen, Santana, Bibi King, (não me esqueci dos Roling Stones, mas não gosto deles) etc.

O meu irmão Luís que tinha um jeito especial para música, coisa rara se não única lá em casa, gostava bastante de cantar Bob Dylan. Frequentemente ia para a varanda, que era num primeiro andar, munido de viola e gaita-de-beiços entoando aquelas baladas que comoveram a nossa geração; e que animavam a vizinhança e os passantes no Largo Frei Heitor Pinto. Era bastante apreciado.

Quando estava sozinho dei comigo muitas vezes a ouvir repetidamente a quinta e a nona sinfonias de Beethoven, a Sagração da Primavera e o Pássaro de Fogo de Stravinsky, e as quatro estações de Vivaldi.

Apesar disso ainda me recordo de na Semana Santa (não me lembra ao certo se era toda a semana ou parte dela) nos irritarmos com a RR por só transmitir música clássica. A memória que tenho é a de que se tratava de uma música pesada, enfadonha, “depressiva”.

Lembro-me, pelo contrário, de ficar encantado com o filme A Flauta Mágica, de Mozart, realizado por Ingmar Bergman. E também com uma versão do D. Giovanni que vi na televisão.

2. Aquando da minha conversão (chamo aqui “conversão”, ao meu regresso à Igreja e à prática sacramental, da qual tinha estado afastado uns quatro ou cinco anos), por razões ascéticas, penitenciais, que no meu caso foram indispensáveis para remediar, com a graça de Deus, graves males morais de que padecia, fui paulatinamente aprendendo a jejuar, não só de alimentos mas também de cinema, de que tanto gostava, de televisão e de música.

Mais tarde, depois de dois anos de postulantado no Seminário da Luz, durante o noviciado (para quem não está habituado ao jargão religioso, trocando por miúdos, o noviciado é a recruta dos frades) no Monte Alverne, onde S. Francisco de Assis foi estigmatizado, como um confrade possuísse uma larga colecção de cassetes com os mais variados compositores – Brahms, Mozart, Händel, Schubert, Chopin, Listz , Verdi, Haydn e por aí fora -, pedi-lha de emprestado e foi-me autorizado escutá-las nos meus tempos de leitura espiritual ou de repouso. Fui, então reparando mais detidamente que especialmente alguns compositores tinham a capacidade de transmitir pacificação, alegria e sentimento religioso.

Terá sido essa uma das razões porque sugeri e pedi ao Padre Mestre licença para mudar o modo de acordar, uma vez que era eu o encarregado do mesmo. Até então este era feito através do bater rude e desabrido de tábuas entre si. Eu estranhava muito este modo, não só por estar habituado ao despertar no Seminário da Luz com música mas também porque aquilo me fazia recordar algumas procissões em Abrantes, na Sexta-feira Santa, em que homens cobertos de túnicas e capuzes roxos matraqueavam os nossos ouvidos com essa mesma aspereza, provocando-me tudo grande susto. Introduzi, então, o Aleluia de Händel e outros excertos do Messias. Foi uma novidade e com ela uma alegria no convento, uma vez que a melodia perpassava pelas paredes do noviciado e alcançava a mais remota cela do mais mouco dos frades.

Depois, por insistência de noviços mais jovens, passou-se a outro tipo de harmonias – qualquer coisa como música “para a malta nova, ’tás a ver pá”!

Os dois últimos meses de “recruta” foram no nosso Convento do Varatojo onde fiz os Votos na chamada Profissão Simples. Depois foi vir para Lisboa continuar o curso de Teologia e realizar muito apostolado. Música somente os cânticos religiosos que são de uso nestes tempos. Não que eu os cantasse, coisa a que nunca me atrevi por ser mais desafinado que o bardo dos livros do Astérix – trata-se de uma questão de caridade para com o povo de Deus e, também de salvaguarda da integridade física…

Já sacerdote, quando fui Guardião na fraternidade do Hospital de Jesus, ouvia vezes sem conta cânticos gregorianos. Depois, da segunda vez que estive na nossa fraternidade de Coimbra tinha que vir com frequência a Lisboa. Não poucas vezes convinha vir e voltar no mesmo dia, chegando de madrugada. Como possuísse na altura um mini-disc para registar conferências e debates, que mediante um dispositivo se podia ligar à aparelhagem do carro, pareceu-me oportuno gravar de cd’s músicas que me estimulassem o suficiente para não adormecer. Lembrei-me então da formidável Édith Piaf e do extraordinário Charles Aznavour. Quando de manhã ia para Lisboa escutava algum ou alguns dos três sermões do P. António Vieira que tinham sido editados em cd, no regresso pela noite, ligava então a música.

3. Com o retorno à fraternidade de Setúbal e a seguinte vinda para Lisboa sem grandes viagens habituais a minha estação predilecta era a Antena 2.

Quando o Cardeal Ratzinger, que era de há muito o meu teólogo favorito, foi eleito Papa Bento XVI a sua predilecção por Mozart decidiu-me a aprofundar o pouco que conhecia das suas produções – umas quantas óperas e alguns concertos. Foi assim que comecei a conhecer as suas esplêndidas composições religiosas, permeadas de grande alegria espiritual, e por fim toda a sua larga obra, com a excepção de algumas sinfonias.

Mais tarde foi para mim uma agradabilíssima escutar as inumeráveis e fervorosas cantatas de Bach, as suas belíssimas Missas e as magníficas Paixões de Mateus e João. De facto, dele só conhecia vários concertos, em particular os de Brandenburg e várias obras para órgão com parte das quais, confesso, não simpatizo.

Mas um dia em que estava regressando ao Seminário da Luz fiquei maravilhado com umas harmonias e vozes especialmente penetradas de uma alegria e beleza invulgares. Dei comigo a pensar, eu conheço isto. Chegado a casa não consegui sair do automóvel, preso que estava daquele encanto. Por fim, terminada a sessão o locutor revela as faixas que tinha passado como sendo do Messias de Händel. O Messias! Tinha urgentemente de voltar a ouvir essa oratória com verdadeira atenção. E assim foi. Escutei várias versões. Li e acompanhei com os libretos. Soube que o propósito da obra foi o de evangelizar!, pois as mentes perspicazes já se tinham dado conta do início da descristianização. Eles viram as sementes daninhas dos frutos peçonhentos que hoje provamos com tanto amargor. E ainda não os vimos todos… Eu, é bem de ver, não sou nenhum entendido em música. Mas posso, julgo, adiantar algumas coisas a propósito da evangelização.

4. Para minha grande surpresa dei-me conta que G. F. Händel tem uma série de outras oratórias sobre as Sagradas Escrituras todas elas sublimes em alegria e beleza – Judas Macabeu, Ester, Salomão, Saul, Israel no Egipto, Israel na Babilónia, Jefté, Débora, Sansão, Belshazzar, a Ressurreição (estas são as que conheço) -, para além de outras composições religiosas como a ode a Sata Cecília, Vésperas das carmelitas, cantatas e árias Marianas, e se calhar mais de que não tenho conhecimento.

A música de Händel tem a vantagem de ser facilmente acessível aos jovens e ao público em geral. Dotada de grande simplicidade e leveza entra facilmente no ouvido, mobiliza os sentimentos e as emoções, incute uma enorme alegria, mesmo júbilo, enquanto a mim ainda mais do que Mozart!, chega a ser arrebatadora e tem um poder de atracção espiritual singular. Acresce que a letra das oratórias é em inglês o que permite um acompanhamento fácil possibilitando uma aproximação às Sagradas Escrituras e um interesse renovado pelas mesmas.

Imaginem o que seria um encontro ou mesmo um retiro feito, por exemplo, a partir do Messias fazendo seguir as meditações realizadas a partir dos seus textos com a Música do mesmo.

5. Claro que há muitos mais compositores religiosos que desde Palestrina passando por Pergolesi, Charpentier, Byrd, Tomás Luís de Victoria, Haydn, Verdi, ao Padre Católico Vivaldi, etc., que importará também publicitar pela sua genialidade religiosa. Mas estou em que Händel é a primeira resposta. Vivaldi também ele esplêndido nas suas obras religiosas, seria provavelmente quem eu indicaria a seguir a Händel, passando depois aos outros.

Nuno Serras Pereira
29. 11. 2008

Vacas Selvagens

Santo António de Lisboa, num dos seus sermões, compara os maus prelados a vacas obesas e selvagens. Segundo os naturalistas daqueles tempos existiria um tipo de vacas que quando eram perseguidas pelos caçadores lhes lançavam de longe trampa que atingindo-os e cegando-os temporariamente os detinha e retardava possibilitando-lhes assim a fuga. Os caçadores diz Santo António são os pregadores a quem os prelados oferecem bens temporais, eis aí o esterco, para que, tornados cegos, não os atinjam com o dardo da verdade.

Estou em que esta advertência permanece actual se considerarmos que bens temporais não são meramente os económicos, mas a fama, o prestígio, a lisonja, os cargos, os postos, a complacência, as preferências, etc. Será que nos dias de hoje desapareceu aquele género de sacerdote que cala a verdade ou desiste de a praticar por medo às consequências, indiferenças e perseguições que lhes podem advir por parte dos seus prelados?

E mais grave ainda não será que os prelados de ontem poderão de algum modo significar os senhores destes tempos, deste mundo, os que detêm o poder político, económico e da comunicação social; e os Bispos - cuja principal missão é a de anunciar o Evangelho, nos dias de hoje -, aos caçadores? Se assim for também se lhes aplicará a admoestação de Santo António: “Quem prega a verdade, confessa a Cristo; porém, quem cala na pregação, nega a Cristo. A verdade gera o ódio; e por isso alguns, para não incorrerem no ódio de uns certos, velam as bocas com o manto do silêncio. Se pregassem a verdade, como a questão se apresenta e a própria verdade requer e a divina Escritura abertamente manda … incorreriam no ódio dos carnais … Ó pregadores cegos, porque temeis o escândalo dos cegos, incorreis na cegueira da alma.” Estes tais, para usar uma outra comparação do Santo, num outro sermão, não têm testículos (repito que isto não é meu mas de Santo António) e por isso são incapazes de gerar boas obras, de gerar conversões.

Nuno Serras Pereira
20. 10. 2008

Uma enorme Surpresa

1. Antes de revelar a imensa maravilha que me extasiou inesperadamente convirá enquadrar o que a seguir se narrará relatando alguns antecedentes.

Há uns anos largos estando eu a distribuir a Sagrada Comunhão numa Missa vespertina na baixa da cidade de Coimbra uma senhora ajoelhou-se para comungar, recebendo o Senhor Ressuscitado, na aparência do pão, na boca. Como sempre fiz em ocasiões semelhantes dei a Sagrada Comunhão respeitando os sinais de reverência e adoração que aquela fiel demonstrava. No final da celebração Eucarística fiquei admirado ao deparar na sacristia com a dita cristã beijando-me a mão com abundantíssimas lágrimas que exprimiam um grandíssimo sentimento de gratidão. Explicou-me então entre soluços que eu era o primeiro padre que tinha aceitado dar-lhe a Comunhão de joelhos, adiantou o que isso representava para ela e esmiuçou a importância que sua mãe tivera na sua preparação para a primeira Comunhão. Soube mais tarde que ela era tida naquele meio eclesial por descompensada, desaparafusada, desequilibrada. Ela poderia ser isso tudo e muito mais mas a verdade é que para mim mostrava mais siso e maior fé do que todos eles juntos. Quantas vezes, Deus se serve daquilo que é louco aos olhos do mundo para revelar a Sua sabedoria! Como é que será possível, pensava eu, que aquilo que tinha sido obrigatório ao longo de mais de mil anos se tornasse de repente proibido aos olhos de algum clero!?

A reforma litúrgica do Papa Paulo VI tem muitos méritos que são geralmente reconhecidos. Porém, sabemos que foi sujeita a muitos e graves abusos e que não sendo perfeita tem merecido correcções e melhoramentos que convirá continuar. Um dos aspectos que sempre me preocupou foi uma perda do sentido da adoração. Afinal como ensinava o Papa João Paulo II a finalidade primeira da Missa é a adoração de Deus. Aquele banquete é Sagrado, não se trata de uma mera refeição ou partilha, mas é o tornar presente, a actualização incruenta do único Sacrifício de Cristo na Cruz, que nos redimiu de uma vez para sempre.

Desde que fui ordenado sacerdote procurei instantemente nas homilias e em retiros incutir no povo de Deus esse sentido de adoração, em particular à Consagração e à Comunhão, e fora da Missa ao Sacrário, sempre segundo as normas litúrgicas vigentes. Afinal nós acreditamos e sabemos que aquele pão e aquele vinho deixam de o ser para se transformarem, se transubstanciarem, no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo Ressuscitado. A majestade Divina, a Glória de Deus, o próprio Deus filho e n’ Ele toda a Trindade, pois onde Ele está Eles aí estão, Se torna verdadeira e realmente presente para Se nos dar em alimento.

Recorri a exemplos, a comparações, à fé, à lógica, à persuasão, aos gestos, aos silêncios, à palavra segredada e à bradada, mas devo confessar que os frutos se os houve não parecem ter sido abundantes. Creio que a par da minha manifesta inépcia haveria também um sentimento de estranheza por parte dos ouvintes, pois para eles eu não seria mais que uma espécie de excêntrico que proclamava dizeres contrários aos que estariam habituados a ouvir.

Por exemplo, propósito do ajoelhar à consagração ou ao Sacrário lembrava Moisés prostrado diante da sarça-ardente, figura do Santíssimo Sacramento ou, pelo Natal e Epifania, os Magos, S. José e a própria Mãe de Deus ajoelhados diante d’ Aquele Menino que é o mesmo agora presente na Eucaristia. Mais adiantava que o padre, pelo sacramento da Ordem, é configurado com Cristo Sumo Sacerdote e Cabeça da Igreja, e quando celebra a Eucaristia fá-lo, in persona christi, na pessoa do mesmo Cristo, por isso na Consagração não diz “isto é o Corpo de Cristo” ou “isto é o Sangue de Cristo” mas sim “isto é o Meu Corpo”, “isto é o Meu Sangue”. E, no entanto, o padre que assim celebra ajoelha enquanto tantos acólitos e leigos estão de pé. Mais acrescentava que o Santo Padre não é somente sucessor de Pedro mas, como ensina o Concílio Vaticano II, vigário de Cristo na Terra e, no entanto, ajoelha à Consagração. Além disso o Papa João Paulo II tinha por costume deitar-se, prostrando-se totalmente no chão, diante de Sacrário, na sua capela particular, passando deste modo longas horas em oração. Lembrava ainda que Jesus Cristo, o Filho de Deus, o próprio Deus Filho, se prostrou por terra no jardim das oliveiras rezando assim durante a Sua agonia. E como se não fora suficiente contava que noutros tempos o diabo era pintado sem joelhos pela sua recusa obstinada em adorar Aquele a cujo nome, como diz S. Paulo na carta aos Filipenses, todo o joelho se dobra no Céu, na Terra e nos abismos.

Claro que também advertia sempre que haveria pessoas que pela idade avançada ou por enfermidade ou deficiência estavam impossibilitadas de o fazer mas que o seu sofrimento era já uma comunhão adorante com a Cruz de Cristo, com Cristo Crucificado, podendo, no entanto, exprimir a sua reverência e adoração através de uma inclinação profunda do busto, ou da cabeça.

Tenho para mim, que algumas coisas, no modo como o actual ritual está em vigor em Portugal, não fazem muito sentido e dificultarão a percepção da importância da oração. Por exemplo, quando há concelebrações é difícil de entender porque é que somente o sacerdote ou bispo ou Papa que preside à Eucaristia ajoelham enquanto os concelebrantes se mantêm em pé – se um se ajoelha porque não o fazem todos?, e se todos não genuflectem porque se ajoelha um? - : o Papa ajoelhado e os presbíteros de pé!; por outro lado, pede-se às pessoas que ajoelhem à Consagração mas não se pede o mesmo ao “Eis o Cordeiro de Deus…”, já para não falar na Sagrada Comunhão. Ainda o sacerdote não comungou e andam os acólitos e os ministros extraordinários da comunhão a cirandar numa agitação febril à volta do altar e do sacrário; depois de o sacerdote comungar, parece que não aconteceu nada, não há um momento de silêncio, de recolhimento, de oração mas pelo contrário há uma aceleração distributiva da Sagrada Comunhão aos ministros extraordinários da mesma que imitam o padre e dirigem-se vertiginosamente à assembleia (os ministros extraordinários da comunhão só se deverão deslocar para o altar de pois do sacerdote ter ido buscar as píxides ao Sacrário); nalgumas Igrejas não se recorre a patenas ou bandejas que aparem os Fragmentos Consagrados ou as Hóstias que podem resvalar e cair por terra; ou então usam-se aos Domingos, mas não nos dias feriais, introduzindo assim uma distinção entre o Senhor presente ao Domingo e o mesmo Deus presente durante à semana mas que se toma por um não se sabe bem quem, mas certamente inferior ao do dia festivo; com uma frequência assustadora se aceitam jovens e crianças a segurar as bandejas que no intervalo entre comungantes ou quando se dirigem ao altar colocam a bandeja verticalmente paralela à perna, atirando assim, distraidamente, ao chão os Sagrados Fragmentos; na Antiguidade a Sagrada Comunhão era dada na mão, mas aquele que comungava colocava a mão direita, previamente lavada, em cima da esquerda, simbolizando assim um trono, significando com esse gesto a fé na Realeza Divina de Jesus Cristo, depois inclinava-se, em jeito de reverência, sobre a palma da mão tomando com a boca o Senhor Sacramentado. Tratava-se, por conseguinte, de um gesto ou ritual sagrado que nada tinha a ver com a refeição profana.

Aquilo a que hoje assistimos é muito diferente. Em primeiro lugar, a Sagrada Hóstia é, segundo as normas em Portugal, recebida na mão esquerda, sendo de seguida levada à boca com os dedos da direita. Geralmente falando não há reparo se ficam Fragmentos Consagrados nos dedos ou na palma da mão. Acontece aliás que grande parte das pessoas já nem este gesto segue senão que como que arrebata com os dedos a Hóstia, da mão do sacerdote, levando-a à boca como quem come batatas fritas ou amendoins.
Não espantará pois que tudo isto redunde numa falta de consciência da Presença Real ou da Divindade d’ Aquele que se torna presente. Isso explicará, entre outras coisas, como se tornou relativamente habitual entre algumas camadas jovens mastigarem pastilha elástica durante a Missa e na altura da Comunhão, colocarem-na entre os dentes e a bochecha, para depois da Comunhão voltarem a mastigá-la com a maior naturalidade. Com alguns idosos passa-se algo de semelhante com rebuçados.
Se tudo isto não é muitíssimo preocupante e de uma enorme gravidade não sei então o que o seja.

Felizmente, devido ao grande empenho do Papa João Paulo II e agora ainda mais do Papa Bento XVI as coisas estão a mudar para melhor. Muito significativo foi o gesto de inteira justiça e grande lucidez de o Santo Padre promover a possibilidade de que em toadas as Dioceses e Paróquias os fiéis que assim o desejem possam celebrar a Missa seguindo o Missal do Bem-aventurado Papa João XXIII. Muito para lastimar é, no entanto, o nítido boicote que alguns Bispos e mesmo Cardeais têm feito a esta iniciativa que o Santo Padre tomou de moto próprio. Depois, o exemplo que o Papa Bento tem dado não só com o cuidado litúrgico nas celebrações a que preside mas também na decisão que tomou de distribuir a Sagrada Comunhão na boca e de joelhos.

2. Dado o enquadramento parece-me agora o momento apropriado para contar a “enorme surpresa”. Fui chamado há dias para celebrar a Santa Missa, numa Igreja sita entra a Azambuja e o Cartaxo, a um grupo de peregrinos que se dirigia de Lisboa a Fátima. Sem que eu tivesse mencionado nada do que aqui desenvolvi fui completamente apanhado de surpresa ao verificar que, provavelmente enquanto comunguei, tinham colocado um genuflexório diante do altar e todos ali se ajoelharam para receber o Senhor em suas bocas. Tratava-se de um grupo relativamente numeroso de católicos que não pertencem a nenhum movimento integrista ou fundamentalista mas que, porventura, inspirados pelo exemplo do Papa resolveram apresentar-se assim adoradores à Santíssima Comunhão. Fez-me lembrar a minha infância, quando ainda era costume todos ajoelharmos para recebermos a Deus na boca, numa atitude de infância espiritual, como o bebé que se amamenta ao seio de sua mãe. Uma vez que não somos puros espíritos mas somos corpos animados ou espíritos incarnados os gestos do corpo revestem-se de uma grandíssima importância na vivência da nossa Fé. Para mim foi não só um momento comovente mas de grande profundidade e significado espiritual. Espero que se possa repetir muitas vezes e que se estenda esta inspiração para glória de Deus e proveito das almas. A propósito, não há muito a Santa Sé esclareceu que nenhum sacerdote pode recusar Sagrada Comunhão a quem a queira receber de joelhos. À honra de Cristo. Amen.

Nuno Serras Pereira
18. 10. 2008

Um Amor Infinito

No livro do profeta Isaías queixa-se Sião, que representa cada um de nós, que o Senhor a abandonou e esqueceu. A esta acusação injusta responde Deus, numa das passagens mais belas da Sagrada Escritura, perguntando: “Pode uma mulher … não ter amor pelo filho das suas entranhas [do seu útero]? 1” Segundo São João Cassiano não encontrando Deus na criação uma disposição de amor que pudesse comparar ao Seu assemelha-o, não obstante, ao de uma mãe por seu filho, uma vez que nada descobre na natureza de mais parecido. A interrogação do Senhor parece soar como uma afirmação categórica, como alguém que dissesse: é impossível que uma mãe não ame o filho que gerou e traz em si; é contra natura. Mas, em seguida, como caindo em Si, logo Se recorda que os impossíveis do Seu desígnio da criação se tornaram possíveis pelo pecado do homem (varão e mulher) instigado pelo Maligno, e logo adianta: “mesmo que ela o possa esquecer Eu nunca te esquecerei. Eu gravei-te nas palmas das Minhas mãos … ” 2.

Aquando da redacção do livro profeta Isaías esta possibilidade de abandono e esquecimento era uma excepção reconhecida por todos como um cúmulo de horror, uma desumanidade cruel. Não assim, bem o sabemos, nos dias de hoje. O abandono, ou melhor, a decisão de matança dos filhos por parte das mães grávidas tornou-se uma coisa dada como normal, mesmo como boa. O homicídio na forma de aborto, quer mecânico quer químico quer cirúrgico, trivializou-se de tal maneira que podemos afirmar, sem receio de contraditório credível, que em muitas nações do mundo as mães que nunca estiveram envolvidas na morte provocada de seus filhos concebidos impedidos de nascer são a minoria.

Quem poderá avaliar a injustiça imensa da multidão incontável de filhos escorraçados violentamente do seio de quem os deveria amar, proteger e nutrir? Quem os compensará de um destino produzido por uma tirania tão feroz? É consolador saber que cada um deles escutará, lá onde está: “Eu nunca te esquecerei. Gravei-te nas palmas das Minhas mãos”. Será reconfortante saber que a Mãe Igreja não os deslembra mas, pelo contrário, quotidianamente os confia à Misericórdia Divina.

São as mãos desta Misericórdia infinita que foram trespassadas pelos nossos pecados na Cruz salvadora. Este Deus que nos imprimiu em Suas mãos fez-Se homem em Jesus Cristo e padeceu a brutal aversão que por Ele e por nós próprios tínhamos a ponto de querermos nos desgravar de Suas mãos através dos cravos com que as perfurámos. Mas esse ódio com que O golpeámos não fez mais do que nos esculpir mais profundamente n’ Ele até ao mais íntimo do Seu coração do qual brotou abundante o sangue e a água que nos purificam e redimem. Esta é a palavra de Esperança, a notícia salvífica para todas as mães com responsabilidade na morte de seus filhos. Este Senhor, manso e benigno, que venceu o pecado e a morte não vos esquece nem vos abandona apesar de d’ Ele terdes fugido. Pelo contrário, sempre vos está dizendo: “Vinde a Mim todos os que estais … oprimidos … [por vossos pecados] que Eu vos aliviarei” 3 pois nunca vos esqueci; gravei-vos nas palmas das Minhas mãos, imprimi-vos no Meu coração. “Arrependei-vos … e convertei-vos, para que os vossos pecados sejam apagados” 4.

Nuno Serras Pereira
05. 03. 2008

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1 Is 49, 15
2 Is 49, 15-16
3 Mt 11, 28
4 Act 3, 19

Sua Bêbada!

«O pregar é entrar em batalha com os vícios … A pregação que frutifica, a pregação que aproveita não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena»
P. António Vieira

Contrariamente ao que muitos poderão pensar, apesar de em Portugal ser praticamente o único a usá-lo, não fui eu quem inventou o termo abortófilo. Tanto quanto me é dado saber ele foi cunhado (ou pelo menos é usado) pelo Dr. Bernard Nathanson, um dos principais fautores da legalização e liberalização do aborto nos USA, e, como ele escreve, “pessoalmente responsável por setenta e cinco mil abortos” ; entre os quais se conta um do próprio filho.

Por que razão este médico, agora convertido ao Evangelho da vida, recorre a um termo como este para descrever o que ele próprio tinha sido? Consciente do mundo de mentira, delírio e alucinação em que esteve enredado, emprega este vocábulo, seguramente, não por considerá-lo ofensivo mas sim, muito provavelmente, por entender os benefícios que o seu uso pode trazer para todos os que se encontram no estado em que ele esteve e, ainda, com o objectivo de impedir que haja quem caia no engodo da propaganda necrófila. A palavra que diz a verdade tem o poder de a comunicar quebrando desse modo as cadeias interiores que nos mantêm cativos dodó mal.

Ninguém que me conheça aqui em Lisboa ignora que na minha juventude fui um pecador público e notório. Um dia contaram-me que alguém tinha perguntado por mim a um amigo meu e que este teria respondido que eu andava sempre bêbado. O meu espanto e exaltação foram grandes. Ser assim caluniado e reduzido à condição de alcoólatra por um “dito” amigo! E, no entanto, como vim a perceber mais tarde era a verdade pura e crua. Aquela palavra que primeiro me exasperou a ponto de rugir fúrias imensas acabou por lançar uma luz que me esclareceu, fazendo-me tomar consciência do estado em que sobrevivia. Aí, numa medida significativa, começou a minha recuperação.

Alguns anos depois li que Santa Mónica, antes de o ser, quando era nova, embriagava-se na adega de sua casa. Até que um dia, uma escrava lhe disparou: sua bêbada! Isto chocou-a de tal modo que, a partir daquele dia nunca mais se entornou.

Nos dias de hoje existe a convicção generalizada de que o amor, para o ser verdadeiramente, tem de ser lamechas. Mas a verdade é que esse amor aparente acaba por afundar em vez de salvar. Movimentos tais como os Alcoólicos ou os Narcóticos Anónimos sabem-no muito bem e, por isso, recorrem àquilo que designam por amor duro.

Longe de mim advogar que toda a gente pró-vida, em todas as circunstâncias, se expresse do mesmo modo ou recorra ao mesmo tipo de linguagem que eu. Mas que às vezes tem de ser, lá isso parece que tem.

Nuno Serras Pereira
16. 02. 2008

Sentir-se Preparado?

1. A luxúria, ou concupiscência lasciva, sempre exerceu um domínio lúbrico sobre a humanidade presa do pecado inventando infinitos artifícios para a seduzir. O nosso tempo não escapa evidentemente a essa aparente fatalidade que prometendo felicidades produz, pelo contrário, infortúnios tamanhos e desgraças imensas. Mas podemos afirmar com segurança que a impudicícia nos dias hoje organizou-se de modo a invadir de forma sistemática e cientificamente programada as mentes e os costumes de todos, desde a mais tenra idade até à mais extremada velhice. Desde a Internet, segundo consta em estudos autorizados, passando pela televisão, pela publicidade, pelas revistas e jornais, pela legislação e pelos Estados, pelas novas formas de ocultismo e de neo-paganismo, por várias correntes da psicologia e da psiquiatria, pela medicina e pelas artes, pela literatura e pelo cinema, pela música e pelo lazer, até à capciosamente chamada educação sexual nas escolas tudo conjura contra o amor, a pureza e a inocência. Paralelamente a esta agressão brutal, embora se apresente com ares de gentileza, que se ramifica no tráfico de crianças para a pedofilia e de mulheres para a prostituição, desenvolve-se toda uma indústria de lucro desenfreado que prospera à volta de toda esta desfaçatez desde a contracepção até ao aborto e mesmo, embora à primeira vista possa parecer estranho, à eutanásia.

A gratificação sexual e emocional é o princípio motor e simultaneamente o objectivo que obsessivamente se procura. O prazer é para esta sarandalha devassa o critério único pelo qual aferir da conveniência e adequação dos comportamentos. Não há, para estes voluptuosos, uma hierarquia de valores objectivos mas uma predominância, a tender para a exclusividade, de um sentimentalismo romântico inteiramente subjectivista. Por isso, quando podem, desde a mais tenra idade vão inoculando metodicamente nas crianças que arrebataram, em nome do Estado, a seu pais, a idiotia perversa de que eles quando se sentirem preparados é que saberão a altura certa para a primeira vez em que fornicarão, convidando-os depois a confessarem-se - O diabo procura sempre imitar as coisas Divinas mas invertendo-as - publicamente não por arrependimento mas como estratégia de incitamento aos que ainda não o fizeram e para receberem as penitências e os bentinhos dos novos tempos – o preservativo, a pílula, o aborto, etc -, dos sexo-especialistas. Esta súcia incasta chorando lágrimas de crocodilo apresenta sempre como remédio ou solução para os problemas que ela própria provoca mais e mais e sempre cada vez mais “educação” sexual para crianças cada vez mais pequenas.

2. A corporeidade do homem, varão e mulher, revela claramente que é constitutivamente chamado à comunhão através da doação ou entrega verdadeira de si mesmo a quem o complementa. Para o homem se poder dar tem de se possuir, isto é, tem de ser senhor de si mesmo. Se assim não fora isso significaria que estaria inteiramente determinado pelos apetites e circunstâncias sem um intervalo que permitisse deliberação entre o estímulo e a resposta ao mesmo. Por outras palavras, não seria livre. O homem tem portanto de se exercitar no autodomínio, devendo educar-se para tal, para se poder auto-determinar, ou seja exercer a liberdade de viver de acordo com a verdade acerca do bem e do amor. A disposição, o conhecimento e o gozo para ver, entregar-se e fruir desse amor e bondade adquirem-se através das virtudes, que se alcançam através com a repetição ou o hábito na prática do bem.

Dar-se ao outro, cuja alteridade sexual testemunha a condição de possibilidade da doação, de corpo e alma ou, se quisermos, como pessoa corpórea é por sua própria natureza um dom irrevogável, exclusivo e total. Através da verdade do dom e do acolhimento recíproco é instituída uma unidade de pertença mútua, ou de vínculo, capaz de gerar, acolher e educar aqueles que o amor fecundo suscitou, os filhos. A relação duradoura, estável, que só a morte pode quebrar, entre o pai e a mãe constitui, por assim dizer, um outro útero indispensável para um amadurecimento e educação sãos e equilibrados dos filhos desse mesmo amor, que se alguma vez existiu é capaz de subsistir até ao fim.

Mas se isto é assim, como racionalmente não pode deixar de ser, isso então significa que há um critério objectivo para saber se se está preparado ou não para a primeira vez, a saber, se me comprometo com alguém do sexo oposto a uma entrega irrevogável, exclusiva, disposta acolher, sem fintas maranhosas, a capacidade de ser mãe ou pai daquele ou daquela a quem me uni. Os filhos não têm de ser desejados mas sim acolhidos.

O pai e a mãe ao gerarem e educarem os seus filhos tomam uma consciência de que eles próprios são também essencialmente filhos. Que só serão pais e avós porque foram e permanecem filhos. Não sei se já reflectimos suficientemente sobre isto: a rejeição dos filhos (a recusa em gerá-los ou depois de gerados) implica uma rejeição de si mesmo e também da união que se formou no casamento.

Está-se portanto preparado para a relação sexual somente quando se celebra o casamento com as disposições adequadas para que possa ser tal.

Quem a vida sexual quiser iniciar
terá de casar
acolhendo os filhos que Deus lhe quiser dar.

Nuno Serras Pereira
17. 10. 2008

O Javardo

Vai para quinze anos que ao ser chamado a uma terra perto de Minde para acompanhar uma peregrinação de 120 jovens a Fátima me vi na circunstância de em muito pouco tempo ter de lhes falar sobre a confissão e depois atendê-los. Que dizer nos breves minutos de que dispunha? Comecei então por uma pergunta retórica: que é um rapaz de 15 anos? E logo adiantei a resposta: é um javardo, imundo e sebento. As calças de ganga rotas e esfarrapadas, o cabelo empastado em caspa, três pêlos a despontar no buço, os dentes amarelos e esverdeados, o hálito asqueroso, um fedor dos sovacos intolerável, um pivete a chulé nauseabundo. A mãe num desespero instando com ele: ó filho vai te lavar que ninguém pode estar ao pé de ti; e ele rosnando: ó mãe não me chateie! Ó filho olha que tu apanhas sarna; ó mãe não me chateie! Ó filho assim nenhuma cachopa te quer; ó mãe não me chateie! Ai filho que ainda ficas leproso; ó mãe não me chateie!

Um dia este rapaz ia na rua quando viu uma rapariga, que até andava no liceu, e como se fora apanhado por um choque eléctrico todo o seu corpo exulta, os olhos, como se estiveram desorbitados, colam-se à rapariga, até que ela desaparece numa esquina, ficando então a sua imagem impressa, estampada na sua memória e na fantasia. Como um sonâmbulo que olha para as coisas sem as ver, enxergando tão só a figura interior, dirige-se para casa, toca a campainha, a mãe abre a porta e ao vê-lo tapa rapidamente o nariz e olhando-o de esguelha diz: ai és tu filho, entra… Ele, surdo e cego para o que o rodeava nem respondeu. Fechou-se na casa de banho. Tomou 200 banhos de imersão, 100 de chuveiro, gastou 10 litros de champô, 70 sabonetes, lavou os dentes com palha-de-aço pois aquilo já não ia de outra maneira, roubou e encharcou-se nos perfumes da mãe, rapou o buço com a gillete que gamou ao pai, despejou os after-shave, foi ao guarda-fatos do pai e escolheu um com a gravata a condizer.

No dia seguinte quando apareceu no liceu os amigos só depois de algum tempo o reconheceram, perguntando-lhe então: eh pá! O que é que te aconteceu!? Ao que ele retorquiu com aquela voz misturada de agudos e graves própria da puberdade: pá a mim não me aconteceu nada, pá!
Ai não, que não aconteceu…

O rapaz representa-nos a nós, a nossa alma, a nossa interioridade. A javardice, o pecado. A mãe, a Igreja que nos chama ao arrependimento e à confissão. A resposta do filho, os nossos preconceitos e fugas: aqui d’ el-rei que o Papa é reaccionário, a Igreja é conservadora e fundamentalista. A rapariga, o encontro com Jesus Cristo Ressuscitado. O banho, a confissão. O fato, o homem novo, revestido da graça de Deus.
Desde aquele dia tenho-me servido muitas vezes desta narrativa, que me veio de repente, quando falo aos adolescentes e jovens. Não saberei dizer porquê mas eles acorrem à confissão.

Nuno Serras Pereira

22. 10. 2008

O Amor e a Felicidade são a nossa Desgraça

Tanto quanto me lembro sempre fui muito reticente às pregações que enchiam os ouvidos das pessoas com as palavras amor e felicidade sem concomitantemente explicitar o seu conteúdo nem ensinar os meios aos quais recorrer para se poder viver as realidades que as mesmas indicam. E a razão fundamental é a de que estas palavras têm servido, desde há muito, como justificação e incentivo para os maiores dislates e barbaridades.

De um modo geral estas palavras sugerem naqueles que as ouvem, nos dias de hoje, um estado pessoal de bem-estar, entendido este como uma grande gratificação física, emocional e afectiva, a que se tem direito independentemente dos meios usados para o alcançar. Em vez de provocarem uma saída de si, encerram-nos mais em si.

Esta é uma forte razão pela qual a generalidade dos cristãos não vê nenhuma contradição entre o seu estilo de vida contrário aos mandamentos e às bem-aventuranças, e a doutrina da Igreja que lhes é anunciada. Pelo contrário, julgam, frequentemente de boa-fé, que estão vivendo uma existência virtuosa ou, como os padres pregam, a passar para a vida a Fé que lhes foi anunciada. Por isso, ficam completamente desconcertados quando ouvem, dizer pela comunicação social, ou por algum sacerdote que a sua vida não é concorde com a verdade que o Magistério proclama. Persuadem-se então de que a Igreja ensina coisas alheias à Revelação de Deus e aos doces ensinamentos de Jesus Cristo.

É assim, por exemplo, com a masturbação, com as chamadas relações sexuais pré-matrimoniais, com os actos homossexuais, com o divórcio e o adultério, com os actos bissexuais, com a contracepção, com a esterilização, com a reprodução artificial, com a investigação letal em seres humanos embrionários, com o aborto provocado, com o suicídio assistido, a eutanásia, etc. Muitas pessoas não só não vêm nenhuma contradição entre qualquer uma destas questões e o amor e a felicidade senão que muitas vezes acham que são verdadeiros actos de amor imprescindíveis quer para a sua felicidade quer para a dos outros.

Estas são algumas das razões porque sempre achei que era absolutamente necessário insistir sobre a Cruz, sobre a renúncia, sobre o sacrifício, sobre o valor salvífico do sofrimento. Nunca prescindi nas minhas pregações, é claro, de falar do amor e da felicidade, mas procurei sempre enquadrá-las no seguimento de Cristo e no exemplo dos santos. Creio que o facto de ser muito dado à leitura da vida e obras dos santos, bem como à meditação de autores espirituais de distintos séculos da Igreja me fez perceber que alguns temas e assuntos em que eles insistiam estavam praticamente ausentes do anúncio evangélico que fazemos no nosso tempo.

Acresce que sempre tive a maior das dificuldades em anunciar o Sim evangélico sem o alicerçar bem no chão do Não veterotestamentário. Foi-me dado compreender que importava muito fazer entender àqueles que me escutavam que há coisas ou actos que são sempre e por si mesmos incompatíveis com o verdadeiro amor e a verdadeira felicidade. E verifiquei que há que deter-se, explicá-lo uma e outra vez, esmiuçar e repetir continuamente para que o consigam assimilar.

Ao dizer estas coisas, não quero de modo nenhum dar-me como exemplo, que o não sou, mas tão só partilhar algo que me foi dado perceber. Se o tenho conseguido ou não, Deus o sabe.

Nuno Serras Pereira
17. 11. 2008

Mãos Erguidas

1. O mistério e o apropósito do que aqui se começa a dizer somente mais adiante se descortinará:

As Sagradas Escrituras narram-nos que quando o Povo de Deus libertado da escravidão do Egipto se aproximava da Terra Prometida foi agredido pelos amalecitas que lhes queriam impedir a passagem. Josué é então encarregado de liderar o combate no terreno enquanto Moisés sobe à montanha orando de mãos erguidas pelo bom sucesso da batalha. Quando o Profeta tem as mãos alçadas o Povo de Deus leva de vencida os seus inimigos, porém, se exausto as deixa cair logo se troca a fortuna e os vitoriosos passam a derrotados. Para remediar este mal os companheiros de Moisés colocam dois enormes pedregulhos, um à sua direita e outro à sua esquerda, para que pudesse apoiar os braços e assim as suas mãos não desfalecessem, garantindo deste modo o triunfo que acabou por se verificar.

Esta passagem sempre foi vista como uma demonstração da eficácia e do poder da oração. Compreende-se, por isso, muito bem, por exemplo, que Santa Teresinha de Lisieux tenha sido proclamada co-padroeira universal das missões. Apesar de nunca ter saído da sua montanha, isto é do seu mosteiro, todas as suas orações e sacrifícios eram oferecidos em favor do combate espiritual pelo Reino de Deus que os missionários sustentavam nas terras longínquas onde o Evangelho ainda não tinha sido anunciado.

O nosso arguto P. António Vieira comentando esta passagem das Escrituras repara no que muitos não notaram. Começa por perguntar-se se Moisés ao descaírem-lhe as mãos e ao verificar a troca de sortes na batalha não rezaria mais instantemente e com maior premência, para logo concluir que não poderia deixar de ser desse modo. Mas se assim era como explicar que a oração não produzisse os efeitos costumados senão tão inversos e alheios ao que o Profeta suplicava? É que para Deus atender as nossas orações, continua o famoso pregador, não basta que rezemos com os lábios e com o coração é também indispensável fazê-lo com as mãos, isto é com as obras. Santo António de Lisboa chamava-lhe oração manual.

Para que haja verdadeiramente oração não basta vozear, bradar, sentir, recolher-se, comover-se, reflexionar, meditar é necessário praticar ou como se dizia em bom português obrar. Não é por acaso que Santa Teresa de Ávila no opúsculo Caminho de perfeição, que escreve a pedido de muitas das suas monjas que queriam aprender a orar, gasta uns dois terços do livro sem falar de oração mas das condições indispensáveis para a poder ter, a saber, caridade ou amor, desapego ou liberdade e humildade ou verdade. Importa pois pôr em prática aquilo em que se acredita, levando a vida à oração e a oração à vida. Como dizia São Paulo a Fé opera pela Caridade. A Fé manifesta-se, vive-se, exprime-se e fortifica-se nas obras de amor. Caso assim não fora, não passaria de um cadáver, conclui São Tiago.

2. Foi a consciência, ou se quisermos a vivência, de tudo isto que levou Leonor Castro a fundar o movimento “Mãos Erguidas”, juntamente com um grupo intitulado “Os Peregrinos” (nome tirado das muitas peregrinações que têm feito a Fátima) também por ela gerado. Esta comunidade “Mãos erguidas” foi concebida e nasceu para dar resposta ao gravíssimo problema do homicídio/aborto. Estas voluntárias, de terço na mão, erguem as mãos para amparar e ajudar as mães grávidas que se dirigem aos matadouros para abortarem seus filhos, procurando dissuadi-las de o fazerem, e oferecendo alternativas concretas que salvaguardem a unidade e o amor entra a mãe e o filho ou filha que traz no seu seio, incluindo o pai da criança; ou quando isso não se consegue encomendar à misericórdia de Deus os filhos brutalmente sacrificados e acompanhar as “cadáveres” (quem mata, mata-se) destroçadas e aguilhoadas em suas consciências pelo crime cometido. Estes cadáveres, dos progenitores, precisam de ser ressuscitados e só Jesus Cristo pode fazê-lo, por isso que os membros do “Mãos erguidas” O trazem, na boca, no coração e nas mãos.

Moisés empunhava nas suas a vara com que tinha operado prodígios no Egipto e que era figura da Cruz de Cristo. O logótipo desta organização é o desenho de duas mãos próximas nos punhos mas afastadas nas palmas, como um cálice, cujos dedos unidos estão erguidos ao Céu, de tal modo que fazem como que um berço para um bebé que ali se aconchega. É o Menino Jesus; são todos e cada um dos concebidos a quem Ele quis de certo modo unir-Se ao assumir a natureza humana, e por quem deu a vida para consigo os ter no Céu, por toda a eternidade.

Os pedregulhos postos ao lado de Moisés, digo eu, são os dois malfeitores que a todos nos representam e que Cristo quis ter sob os Seus braços Crucificados, Ele que se apoiou numa carne semelhante ao pecado, para que banhados pelo Seu sangue aqueles corações duros como penedos se deixassem transformar em corações de carne, como aconteceu com o bom ladrão que deixando-se penetrar desse amor logo se viu unido a Jesus, para toda a eternidade, mas que, pelo contrário, resvalou na obstinação couraçada do mau.

Como no antigo combate do povo de Deus o “Mãos erguidas” peleja com as setas do Amor Misericordioso e com a espada da Palavra de Deus contra os demónios que infestam aqueles lugares dominando os espíritos dos que lá “trabalham” ou melhor massacram e dos que lá são atraídos por promessas de resolução de problemas que não passam de miragens mentirosas e malignas.

3. Aquele presença amorosa e voluntária que já salvou um número significativo de bebés e poupou imenso sofrimento viu-se, no entanto, na necessidade de ter um “poiso” que permitisse um apoio quer para depósito de material, quer para abrigo temporário de alguma grávida em dificuldade, quer para conversas mais privadas e demoradas com pessoas que ao verem-se abordadas na rua se sentem constrangidas de ali conversar dos seu problemas, quer para ter um oratório e um lugar onde se possa atender em confissão, quer um espaço para mostrar algum vídeo ou DVD que esclareça as mães grávidas e os pais dos bebés concebidos ainda não nascidos. Todas estas necessidades e conveniências se apresentaram com simplicidade à Providência Divina.

Não se fez demorar na Sua resposta deparando-nos com um pequeno andar que dá mesmo para a frente da “clínica” do Arcos, acabadinho de ter obras de melhoramento que, não obstante a sua pobreza, o tornam um lugar apresentável e muito prestável. O prior de S. José, assim se chama a Paróquia daquela zona, o P. José Freire, formado em medicina, foi com grande contentamento rezar o terço do Rosário com a “Mãos erguidas” e abençoar este espaço que o Senhor concedeu a esta esplêndida comunidade.

Mas Deus para que possamos participar da Sua alegria e do Seu trabalho salvador quer associar e unir a Si o maior número possível de pessoas. Por isso, não quis arranjar o andar de graça, nem que as pessoas que constituem esta organização nadassem em dinheiro, mas pelo contrário quis que muitos pudessem participar da Sua generosidade contribuindo com a sua ajuda para o pagamento da renda e demais material necessário. Se alguém quiser saborear aquele dito das Escrituras que ensina que “há mais alegria no dar do que no receber” pode contactar a Leonor Castro: Telemóvel - 918 311 790 ou transferir para Nib Banco Satander Totta: 0018 0003 1856 5184 0204 1. Se não me engana a memória a proposta é a de contribuir com 10 euros por mês.

Nuno Serras Pereira
14. 09. 2008

Há Quarenta Anos

1. Faz amanhã quarenta anos que o Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae, um documento extraordinário em defesa da bondade e dignidade da vida e da sexualidade humanas. Por ocasião desse acontecimento a Conferência Episcopal Portuguesa elaborou uma excelente Nota Pastoral que infelizmente não teve tradução adequada na prática pastoral. Pelo contrário, esta afastou-se progressiva e resolutamente do ensino autorizado do Santo Padre e dos Bispos a ele unidos. É verdade que um grupo de casais generosos, de início, com grande determinação e perseverança, se empenharam no ensino da regulação natural da fertilidade. Mas, aos poucos, segundo me contaram, depararam com uma espécie de cepticismo sistemático da parte de Bispos e Sacerdotes.

Por mão de alguns daqueles e de outros destes entrou a APF, “sucursal” da IPPF, em Portugal. Avisados embora da natureza perversa dessa organização internacional, ignoraram com insolência o conselho.

Um dos sacerdotes provocou uma cisão num dos grupos iniciais de casais e fundou uma outra associação complacente com uma mentalidade ambígua e inspirada numa argumentação expressamente condenada na encíclica.

Entretanto, um número muito significativo de Pastores optou por uma estratégia de silêncio esmagador na catequese, nas pregações, nas homilias, etc. A ideia era de que se os casais ignorassem a lei Divina ao recorrerem à contracepção embora materialmente pecassem não o faziam formalmente, pelo que não lhes seriam pedidas contas de uma ofensa a Deus. Esta atitude absurda ao ver a lei moral como uma imposição exterior e não como uma exigência interior, inscrita no coração da pessoa, acha que a pessoa é mais livre e mais feliz se viver ignorando a lei de Deus, pelo que a redenção em vez de ser vista como um resgate de um cativeiro é percebida como um agrilhoamento numa escura enxovia espiritual.

Depois, nega, na prática, que Deus, com a Sua graça, possa em nós o que sozinhos não podemos, a saber, vencer o pecado. Por outras palavras, torna vã a Cruz de Cristo, o Seu Sacrifício redentor.

Em terceiro lugar, esquece a Sagrada Escritura quando declara que nos serão pedidas contas das faltas cometidas pelos outros por ignorância, quando a culpa desta é imputável à nossa negligência. Também se deve atribuir a este modo distorcido de pensar o facto de muitos confessores remeterem para consciência do penitente ou do dirigido espiritual, entendendo esta como uma decisão, seja ela qual for, válida ou verdadeira pelo simples facto de a tomar, em vez de procurarem formá-la uma vez que os seus juízos podem ser erróneos.

O passo seguinte foi o de aconselhar, dadas determinadas circunstâncias, o recurso aos contraceptivos enquanto contraceptivos (ou seja, enquanto implicam a escolha contraceptiva). Isto que ao princípio gozava de uma certa discrição, resumindo-se a orientações personalizadas já hoje se pode ouvir em congressos eclesiais, em cursos de preparação para o matrimónio e em outras ocasiões públicas. Aquando do décimo aniversário da Humanae Vitae um, hoje monsenhor, confidenciou-me, com um ar de quem ia salvar a Igreja se não o próprio mundo, que partia para Roma com o objectivo de combater, durante um congresso, o Papa João Paulo II e os seus teólogos. Este colega sempre fez grandes proclamações públicas de fidelidade ao magistério da Igreja enquanto pela calada ia minando esse mesmo magistério.

2. Provavelmente a maioria dos católicos em Portugal, actualmente, não saberá sequer da existência deste documento do Papa Paulo VI e julgará até que a Igreja aprova a contracepção e a esterilização ou que pelos menos é-lhe indiferente. Nos retiros e demais reflexões ou recolecções para casais este tema não é abordado ou não é aprofundado como se nada tivesse a ver com a espiritualidade matrimonial. E, no entanto, Karol Wojtyla poucos meses antes de ser eleito Papa João Paulo II escreveu que -
na verdade que a Humanae Vitae anuncia joga-se o “combate pelo valor e pelo sentido da própria humanidade … é manifesto que a encíclica Humanae Vitae não é somente um documento, mas um acontecimento … parece que como estrato mais profundo deste acontecimento se deva considerar a controvérsia e o combate pelo próprio homem …” (Karol Cardeal Wojtyla [poucos meses antes de ser eleito Papa], La visione antropológica della Humanae Vitae, p. 129, VV. AA., Lateranum- a cura della facoltà di teologia della pontifícia università lateranense, N. S. – Anno XLIV, 1978, n. 1, pp. 372)
-, e já como Pontífice dedicou 3 anos de catequese, nas Audiências Gerais, conhecidas no seu conjunto como a Teologia do Corpo, que o próprio classificou como um comentário à encíclica Humanae Vitae.

O “combate pelo próprio homem” é a pugna pela sua verdade, pela sua identidade.

Aceitar a contracepção enquanto contracepção implica a aceitação de uma concepção dualista do ser humano e praticá-la cinzela-a ou entalha-a na nossa existência falsificando o que somos. O corpo deixa de ser o sacramento da pessoa para se tornar simples material biológico disponível. Esta visão gnóstica elimina a totalidade unificada que constitui o ser imagem de Deus, pois que o homem não é só imagem de Deus enquanto dotado de inteligência e de vontade, de livre arbítrio, mas é-o também na sua corporalidade, imagem da Trindade, enquanto chamado à comunhão na reciprocidade assimétrica de ser varão e mulher. É precisamente na complementaridade da sexualidade que o homem, varão e mulher, no dom e acolhimento recíproco e total de si mesmo no acto conjugal torna de algum modo visível a comunhão invisível e puramente espiritual do Deus Trinitário. A comunhão das pessoas dá-se na união da totalidade unificada das mesmas. Pelo contrário se o corpo é mera biologia que a pessoa pode instrumentalizar, se é somente um corpo não pessoal enganchado numa pessoa não corporal então o homem rejeita-se como imagem, perde, por assim dizer, a sua dimensão icónica e auto-erige-se como deus idolátrico de si mesmo. Incapaz de um êxodo autêntico, encerrado como uma mônada, deixa de procurar o outro enquanto outro e procura-se tão só a si mesmo no outro. A cumplicidade de egoísmos é impotente para gerar comunhão. Este fechamento de si provoca uma fobia à vida humana, um terror daquele que pode vir, um pavor do acolhimento de um dom inesperado. A recusa da procriação é uma rejeição da união. Desprezar o significado procriador é tolher o significado unificador, porque um não se dá sem o outro. “Não separe o homem o que Deus uniu”. Não havendo conjunção ou interpenetração o que resta é o uso ou a manipulação, embora consentida, anuência à própria escravidão, da pessoa cuja dignidade é de si indisponível e inviolável, não sendo por isso lícito ao próprio aliená-la. Mas se a relação base, raiz e fonte de toda a comunidade e sociedade está corrompida e inquinada, sendo não obstante tida como boa, então os efeitos serão devastadores a todos os níveis dessa mesma sociedade, o bem do homem enquanto homem está gravemente ameaçado, o homem enquanto homem está desnaturado. Os resultados são já patentes a todos: uma concepção materialista da vida; um neo-paganismo de massas; um dissolver de casamentos e de famílias; uma queda abissal na natalidade, única na história conhecida da humanidade; uma obsessão compulsiva pelo homicídio/abortamento de crianças inocentes, a intensificação da eugenia e do racismo; a dificuldade crescente de perceber a imoralidade dos actos sodomitas e sacanas (ver dicionário Moraes – ou o Houaiss - sobre o significado deste último termo); a produção de seres humanos em laboratório gerados não pelos pais, reduzidos a depósitos de material biológico, mas sim por técnicos; a congelação de milhões pessoas, na sua fase inicial em azoto líquido e a morte de outros tantos milhões (no mínimo nove milhões) para que nestes trinta anos, faz amanhã, tenham nascido cerca de três milhões de crianças; a experimentação em seres humanos na sua fase embrionária; a clonagem; a eutanásia e o suicídio assistido; a poligamia sucessiva e a reivindicação da simultânea; a exigência de adopção de crianças por pares homossexuais; o infanticídio reivindicado e já praticado em países ocidentais; a reivindicação da pedofilia como amor inter-geracional e da bestialidade como amor inter-espécies, com as respectivas exigências de casamentos (isto é reivindicado em Universidades por PhD’ s); o trans-humanismo, etc.

3. Amanhã faz quarenta anos que o Papa Paulo VI publicou a Humanae Vitae, uma encíclica profética, que como Cristo encontrou forte oposição e que como a Ele se pretendeu aniquilá-la, tanto os de fora como os de dentro, pois Judas, isto é a sua mentalidade, continua presente na Igreja. Lançada às catacumbas do silêncio e do esquecimento, ela grita através das dores patentes do mundo presente. A RR hoje na sua Nota de Abertura lembrou o dia dos avós depois de amanhã, mas sem Humanae Vitae dentro em pouco não haverá praticamente avós porque os netos escasseiam cada vez mais. Creio que foi G. Weigel que escreveu que por dois mil e cinquenta em Itália (Espanha e Portugal estão iguais, quase) sessenta por cento da população não terá nem tios nem primos nem irmãos. A RR a par da Bola Branca que dá várias vezes ao dia bem podia transmitir com o mesmo tempo de antena o Magistério Branco para nos dar a conhece e formar na doutrina que os Santos Padres nos ensinam.

Pela minha parte esforcei-me para que este ano não ficasse esquecido e se organizasse um evento, um congresso que nos abrisse à verdade que Deus nos comunica para nosso bem e salvação. Não consegui encontrar verdadeiros adeptos. Há outras coisas urgentes. Os nossos Bispos estão ocupados com assuntos sérios e graves que não se compadecem de distracções menores. Dentro em pouco teremos uma sede condigna da Conferência Episcopal em Lisboa! Capital da Corte! Essencial para a salvação das almas. À honra de Cristo Amen.

Nuno Serras Pereira
24. 07. 2008

Fedores

Chegou-me ao conhecimento de que um programa de televisão que se considera a si mesmo humorista emitiu no Domingo passado uma paródia à idolatria promovida sistematicamente pelo governo Sócrates, concretamente, ao tão propalado computador Magalhães. Mas fê-lo ridicularizando aquilo que há de mais sagrado para os católicos, a saber, a Eucaristia e a Palavra de Deus: o computador fazia de sacrário, um actor vestido de batina lia uma Bíblia trocando as palavras do texto sagrado e terminava distribuindo na boca dos “fiéis” CD-ROMS como se tratara da Sagrada Comunhão.

Não se poderá negar que para muitos espíritos as novas tecnologias informáticas constituem uma nova religião idolátrica dotada de novos cultos e ritos e que o primeiro-ministro com a sua fervorosa propaganda se apresenta como um novo messias salvador da pátria. Neste sentido poder-se-ia entender o referido programa, apesar das emburrecidas irreverências, como um alerta para o perigo da subversão da verdadeira religião.

Não obstante, o facto de os protagonistas não serem católicos praticantes aliado ao ar ridículo do suposto sacerdote e à leviandade de toda a apresentação poderão significar um desprezo sacrílego de Deus presente na Eucaristia e na Sua Palavra. Ou poderá ter-se tratado, também, de uma prova para testar a reacção ou a ausência dela da parte dos católicos para depois avançar para troças mais directas, isto é, não já como pretexto mas como fim.

Seja como for quem pretende ser humorista deve ter a consciência de que o cómico não é a realidade última a que tudo o demais estaria submetido e que por isso deve limitar-se respeitando o Sagrado ou se quisermos rejeitando ofender a dignidade humana daqueles que têm determinadas realidades por Sobrenaturais. O Sagrado não deve ser instrumentalizado.

Os católicos são cidadãos de pleno direito que podem e devem exprimir a sua opinião defendendo com vigor aquilo em que acreditam. Neste caso poderão fazê-lo para a Entidade Reguladora para a comunicação social ou para os patrocinadores publicitários do programa, advertindo-os da disposição em boicotar a compra dos seus produtos ou serviços, caso persistam em financiar o programa.

Garantiram-me que a Rádio Renascença faz publicidade ao dito programa. Desta rádio podem dizer-me tudo e muito mais que já nada me espanta. Se for verdade poderão também comunicar-lhes a vossa opinião e também para os proprietários dessa estação emissora.

Uma pergunta final. Seriam capazes de fazer algo de semelhante o Alcorão ou com Maomé?

Nuno Serras Pereira
22. 10. 2008

Endividada por Amor de Deus

É casada e mãe de oito filhos. A par de uma alegria transbordante é de uma vivacidade combativa singular. De raiz alentejana vive no norte onde, apesar da escassez de meios, desenvolve um trabalho notável de apoio às grávidas em dificuldade. É co-fundadora das Mulheres em Acção e foi seu principal motor por muito tempo. Irrequieta e imprevista como as fortes rajadas de vento, pode fazer alguns estragos, mas o que mais sobressai é o dinamismo empreendedor do Espírito Santo. Aquela impetuosidade natural está carregada, ou melhor, insuflada de ardor Espiritual. As suas conversas passam facilmente da prática amena e informal à troca de informações, ao relato e análise de factos e desta à exortação, à pregação fervorosa, ao anúncio Kerigmático ou Catequético. Ora pergunta curiosa ora ensina fervorosa. Sabendo-se indigente confessa-se amiúde para receber as riquezas da Graça Divina. Como uma Joana d’ Arco, revestida da Eucaristia diária, empunha o terço do rosário e avança destemida e guerreira contra as milícias da morte. Arrisca, aventura-se, confia na Providência, como outrora Santa Teresa de Ávila.

Profundamente angustiada com a matança das crianças nascituras e com a desventura das mães que as conduzem ao açougue organizou um congresso, em Novembro passado, sobre o impacto do aborto na saúde da mulher. Apesar de não ter os meios financeiros necessários não duvidou em avançar dada a urgência de informar a população portuguesa dos graves perigos que o aborto implica para a mulher que o provoca.

Esfalfou-se e esbodegou-se em correrias incessantes, trabalhos multiplicados, contactos infindos, organizações meticulosas. Gastou tempo, roubou-se à família, despendeu dinheiro, andou num rodopio. Conseguiu trazer a Lisboa os melhores especialistas mundiais no assunto. O Congresso foi um sucesso. Está todo filmado e gravado. Mas não é possível espalhá-lo em DVD’s porque não há meios para pagar à produtora contratada.

Realizou um jantar com os conferencistas e um grupo de pessoas tidas como qualificadas e de muitos haveres, num conhecido hotel da capital. Mais tarde houve contactos pedindo ajuda económica para pagar as custas do Congresso. Apesar das insignificâncias, para aquelas bolsas, as dádivas foram avaras. Ainda deve vinte mil euros e tem vergonha, como outrora S. João de Deus, de encarar os seus credores. Mas o que a preocupa mais é a indiferença geral, de quem pode, por todas as vítimas desta pestilência mortífera liberalizada em Portugal; é o não poder dar a conhecer pela distribuição de DVD’s os perigos em que as mães grávidas incorrem ao condenarem à morte seus filhos. Resta-lhe a consolação de que observadores de dois países europeus entusiasmados por aquilo que aqui aprenderam estarem a organizar eventos semelhantes nos seus países.

Chama-se Alexandra Teté esta católica endividada por amor de Deus.

Nuno Serras Pereira
27 de Julho de 2008

Descaridade

A Sagrada Escritura e a história da Igreja mostram à saciedade que a auto-crítica e auto-correcção públicas foram uma constante no povo de Deus, principalmente até ao século XVI. Com a impropriamente chamada “Reforma” protestante desenvolveu-se uma nova apologética que na ânsia de proteger a Igreja não só colocava os seus membros a salvo de toda e qualquer crítica pública como mascarava muito do que necessitava conversão. Esta atitude que surgiu como reacção ao imenso cerco dos inimigos e às enormes falsidades que propalavam se é compreensível teve, não obstante, os inconvenientes de por vezes diminuir a humildade, raiz de todas as virtudes, e de deixar perpetuar erros e pecados que de algum modo endureceram os corações de muitos, inclusive na hierarquia.

O Papa João Paulo II com aquela celebração que ficou conhecida para o grande público como o “pedido de perdão” não fez mais que retomar a Tradição (não tradicionalismo). Por seu lado o Papa Bento XVI num dos seus diálogos com o clero louvou a crítica de algumas santas aos Bispos do seu tempo como um factor importante na reformação da Igreja. Santo António de Lisboa chamado no seu tempo “martelo dos hereges” deveria antes, segundo P. Fr. Henrique Pinto Rema, reconhecido estudioso do santo, ser intitulado “martelo dos prelados” (Prelados eram os Bispos, Abades, Priores e Superiores de Ordens religiosas) tal era a insistência e veemência com que os criticava não se inibindo, por exemplo, de lhes chamar “cornudos”, devido à sua – deles - soberba e arrogância. Rabelais, sacerdote franciscano que abandonou a Ordem, copia extensamente, diria desavergonhadamente, nas suas obras, sermões usados pelos pregadores desta Ordem.

Tudo isto que aqui vai desenhado a largos e mal amanhados traços como um rascunho serve como introdução para facilitar a compreensão da reviravolta - quer em relação à Tradição da Igreja quer ao período que se seguiu ao século XVI - que se deu nas atitudes e comportamento de tantos durante e após o Concílio Vaticano II. Aquando do anúncio do Concílio pelo Bem-aventurado João XXIII, logo as forças inimigas de Cristo, em particular o marxismo comunista, a maçonaria, o humanismo ateu, o eugenismo e o socialismo/liberal-capitalista (esta associação está muito bem documentada nos movimentos favoráveis ao controlo demográfico, por ex.) procuraram infiltrar-se e influenciar o mesmo (para além da vasta literatura sobre o assunto tenho aqui em conta também as informações que colhi de minha tia paterna, Maria Manuel Serras Pereira, única jornalista portuguesa presente neste grande evento da Igreja). Apesar do gigantismo das pressões, das conjuras e manipulações não há dúvida nenhuma de que se tratou de um verdadeiro acontecimento suscitado pelo Espírito Santo na continuidade radical com aquilo que o Mesmo tinha suscitado ao longo da história da Igreja. Descontentes com o resultado logo uma legião de membros da comunidade eclesial cumpliciados com a comunicação social, braço “omnipresente” das forças antes referidas, como uma sanha petulante distorceram e perverteram o Concílio em nome de um “espírito”, contrário aos documentos, que não era senão um pretexto para camuflar as suas verdadeiras intenções e objectivos: uma ruptura com o passado e uma refundação da Igreja à medida dos projectos humanos. Não já uma Igreja fundada e construída por Jesus Cristo mas uma fabricada inteiramente pelo homem, isto é um ídolo.

Esta mentalidade com maior ou menor intensidade disseminou-se largamente em amplos sectores da Igreja quase por todo o mundo.

Tornou-se então habitual, em nome de pressupostos fundados em preconceitos e não na verdade, e de um subjectivismo alheio à razão e à Fé, uma crítica cerrada e implacável à autoridade e à hierarquia enquanto tais (como se não foram instituídas por Cristo) e uma oposição contumaz ao seu ensino. Importa muito entender que esta crítica nada tem a ver com a que referimos anteriormente como fazendo parte da Tradição (não tradicionalismo). De facto, dá-se aqui uma inversão total. Enquanto antes partindo da doutrina sobre a Fé e a moral, do Evangelho, se procurava purificar e converter o povo de Deus agora procura-se uma conformação a “este mundo” (no sentido que S. Paulo e S. João lhe dão: realidade que se opõe a Deus e aos Seus desígnios). A ascendência de que estes filhos da Igreja, feitos filhos de Satanás, gozaram sobre as mentalidades inclusive dos membros do povo de Deus nos seus diversos níveis foi impressionante, e ainda perdura em muitos espíritos. Um dos sinais eloquentes disso é o facto de muitos membros da Igreja não verem a Verdade que esta anuncia como tal mas somente como uma opinião entre tantas que se pode em boa consciência descartar. O seu poder intimidatório é de tal ordem que nalgumas nações há sacerdotes fiéis na sua doutrina à Igreja que por esse motivo são desqualificados por Bispos enquanto outros, rigorosamente hereges, fazem tremer Conferências Episcopais que em Notas Pastorais fazem vénias e juras de acatamento a alguns dos seus ditos ou escritos.

Mais, se espancam a doutrina da Igreja, ensinam em Faculdades de Teologia preparando os futuros sacerdotes, enquanto aqueles que os criticam são acoimados, marginalizados, tidos como leprosos.

Esta trupe ou súcia tem como grande descaridade toda e qualquer observação crítica em relação a eles próprios, aos inimigos do género humano e aos da Igreja, considerando-as mesmo intoleráveis, um ataque maligno à união e concórdia na Igreja, e têm como uma enorme obra de misericórdia ignorar, perseguir, censurar, “excomungar”, desdenhar dos que procuram, não obstante toda a sua fraqueza, ser fiéis à Verdade e à Fé Católica e Apostólica.

Coadjuvar os promotores do crime é para eles uma virtude cristã; silenciar quem o denuncia e indignar-se contra ele é de justiça e uma obra de caridade.

Enganar o povo de Deus falseando a verdade que a Igreja anuncia para nosso bem e salvação quer omitindo partes da mesma quer dando interpretações que distorcem o seu significado autêntico quer exprimindo-a de um modo equívoco, são, no seu entender, obras de misericórdia e atitudes pastorais; anunciá-la com clareza e sem ambiguidades, chamando as coisas pelos seus nomes (João Paulo II), é uma bestialidade. Opor a verdade à caridade é uma atitude sensata, compreensiva, misericordiosa; afirmar que o anúncio da verdade é uma forma eminente de caridade (Paulo VI) é um fundamentalismo brutal.

Profanar a Sagrada Eucaristia distribuindo-a sacrilegamente a obstinados pecadores públicos é sinal de grande misericórdia; salvaguardar a Sacralidade deste Sacramento Santíssimo, impedir o sacrilégio e evitar que o povo de Deus seja induzido em pecado é de uma insuportável descaridade.

De modo que o Diabo nos dias de hoje assume esta aparência de benignidade, de mansidão, de benevolência, de caridade para nos fazer suspeitar e ver como inimigo quem nos indica o caminho recto e nos induzir às maiores crueldades, catástrofes e infelicidades, tal como se verificaram nestes cem últimos anos – do nazismo ao comunismo, da contracepção ao aborto, da reprodução artificial à experimentação em embriões e à clonagem, do “casamento” de sodomitas à eutanásia: tudo em nome da caridade e da misericórdia.

Não deixemos que nos roubem as palavras nem que se altere o seu significado. Há que dizer-se das coisas aquilo que elas são.

Engana-se quem pensa que os maiores inimigos da Igreja estão fora dela e que criticar “os de dentro” é fomentar a discórdia e a desunião. Os maiores horrores dos últimos cinquenta anos não se teriam realizado sem a cumplicidade dos “de dentro”:

“A Igreja de Deus está rodeada por toda a classe de inimigos, como um lírio entre espinhos (Cânt 2, 2); mas o mais perigoso e doloroso para ela é ver-se despedaçada interiormente por aqueles que traz no seu seio e alimenta a seus peitos. São esses que lhe arrancam aquele grito de dor e de pranto: Os meus amigos e parentes me rodeiam e atentam contra mim (Sl 37, 12). Não há peste mais desastrosa e mortal que um familiar convertido em inimigo.” (S. Bernardo de Claraval, carta 330 - Ao Papa Inocêncio contra Pedro Abelardo).

Nuno Serras Pereira
06. 09. 2008

Como se Matam Anjos

1. Quando cursava Teologia na Universidade Católica Portuguesa (UCP) assisti a um ciclo de conferências sobre a oração. Uma das palestras foi proferida pelo padre Bragança, um ilustre Professor de Liturgia e de Patrologia. A determinada altura como estivesse citando uma oração de Orígenes que continha uma referência aos Anjos, interrompeu a leitura da mesma, abrindo um parêntesis, para dizer: “bem, os Anjos já não existem; ou melhor mataram-nos…”. Como estalasse uma gargalhada geral provocada pela ironia evidente, dirigida a alguns exegetas e teólogos modernos, o padre Bragança continuou: “os senhores riem-se, mas eu tenho pena. Escusávamos de mentir na Missa quando rezamos ‘os Anjos e os santos proclamam a Vossa glória, etc.’”. E prosseguiu imperturbável a sua exposição. A circunstância de aquela admonição ter sido feita em forma de zombaria não obstou, porém, a que a seriedade da advertência fosse compreendida.

2. A primeira vez a que assisti à matança dos Anjos foi numa aula de Sagrada Escritura sobre o Antigo Testamento. Dos cumes da sua ciência e erudição o professor, um sacerdote, explicava, a nós ignaros, que os Anjos não existiam porque havia referências aos mesmos em textos religiosos do médio oriente anteriores à Bíblia. Foi nessa altura que eu compreendi, com a evidência de uma revelação, que as árvores, as montanhas e o mar também não existiam, pois todas essas realidades eram descritas nos mesmos ou semelhantes textos sagrados.

Mais tarde, um outro sacerdote (daqueles que já leram várias toneladas de livros) que nos ensinava Sinópticos (os Evangelhos segundo Mateus, Marcos e Lucas) decretou que os Anjos eram géneros literários ou recursos da retórica. De modo que, a partir daquele dia alguns seminaristas, cépticos, chalaceavam entre si modificando as palavras do Anjo, no Evangelho de Lucas, “não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus” em “não temas, Maria, pois sou uma figura de estilo”. Os Anjos não seriam pois mais do que uma Fada Boa ou Bruxa Má dos contos dos tempos antigos, sendo que a primeira figura os Anjos bons e a segunda os demónios, anjos caídos.

Já ordenado padre assisti também a prelecções de outros presbíteros que afirmavam peremptoriamente que os Anjos não eram mais do que estados da nossa consciência, projecções fantasmáticas da nossa subjectividade, subtilezas do nosso mundo interior e outras abstrusões semelhantes. Teríamos portanto o Anjo reduzido ao superego de Freud.

3. De onde virá esta sanha persecutória aos Anjos é para mim não só um enigma mas mesmo um mistério, um mistério incluído no Mistério da Iniquidade.

4. S. Francisco de Assis teve sempre uma grande devoção aos Anjos e fundou a sua Ordem precisamente na Igreja da Santa Maria dos Anjos. Esta veneração ardente dos franciscanos pelos mesmos perdurou através dos séculos até há bem pouco tempo. Eu, ainda, tive a graça de ter feito os meus votos solenes no dia dos Arcanjos S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael (29 de Setembro) e desde a minha meninice me foi ensinada a devoção ao Anjo da Guarda. Hoje, precisamente, celebramos a Memória Litúrgica dos Santos Anjos da Guarda.

Ora a existência dos Anjos e dos demónios, como pessoas puramente espirituais, foi declarada solenemente como uma Verdade de Fé (um Dogma) no Concílio Latrão IV, em 1215. A Igreja Mestra da Verdade (Concílio Vaticano II, Dignitatis humanae, 14) raramente recorre a estas declarações solenes. Percebe-se porquê a relação da Igreja com os seus fiéis é como a de uma mãe com os seus filhos. E seria absurdo um filho sempre que a mãe lhe ensina alguma coisa perguntar insistentemente se jura que é verdade (a comparação é do, então, Cardeal Ratzinger). O normal é acreditar na mãe e aceitar o que ela diz. No entanto, por vezes há circunstâncias em que pela sua importância ou pelos perigos para a Fé que podem advir se torna conveniente ou necessário sublinhar solenemente uma verdade para que termine toda e qualquer querela ou logomaquia. A não-aceitação ou rejeição, a sabendas, por parte de um católico de um Dogma de Fé é um crime de heresia, o qual implica a excomunhão do mesmo.

4. O Catecismo da Igreja Católica ensina: «A existência dos seres espirituais, não corporais, a que a Sagrada Escritura habitualmente chama anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura é tão claro como a unanimidade da Tradição. Santo Agostinho diz a respeito deles: “… Desejas saber o nome da natureza? Espírito. Desejas saber o do ofício? Anjo. Pelo que é, é espírito; pelo que faz, é anjo (anjo = mensageiro) ”. Com todo o seu ser, os anjos são servos e mensageiros de Deus. … Enquanto criaturas puramente espirituais, são dotados de inteligência e vontade: são criaturas pessoais e imortais. Excedem em perfeição todas a s criaturas visíveis. O esplendor da sua glória assim o atesta.». (Catecismo da Igreja Católica, 328-330).

Nuno Serras Pereira
02. 10. 2008

Carvões

1. Naquela noite de Natal a casa da avó, em Abrantes, como de costume, fervilhava de animação com a enchente familiar, do lado paterno. Como não cabíamos todos na sala de jantar, o grupo dos mais novos comia na sala dos armários, sua contígua, assim chamada pelas cantoneiras que ocupavam, do chão ao tecto, todos os ângulos. Ali se guardavam as loiças, as compotas, a marmelada, os folares (pela Páscoa), as boleimas, o arroz doce, as tigeladas, a palha de Abrantes, os sonhos, enfim, as sobremesas próprias de cada época. Esta divisão tinha uma mesa onde habitualmente se tomava o pequeno-almoço e a merenda, nome que a minha avó dava ao que nós impropriamente chamamos lanche; era separada da sala de jantar por duas portas de vidraça, dava para a cozinha por uma porta de madeira maciça e tinha uma janela de guilhotina sobranceira ao pátio da cisterna, coberto por uma latada, então desnuda, mas que no verão se enchia de parras e uvas suculentas e saborosas. Na cozinha via-se ao fundo o fogão a lenha onde as criadas, como então se dizia, preparavam as refeições que recendiam os mais variegados odores. No verão era ali, num armário debaixo da mesa de mármore, que se guardavam as bilhas com água para a manter fresca. A porta para o exterior dava para uma varanda, onde nós, os quatro irmãos mais velhos, nos tempos livres, jogávamos hóquei em patins, mas também onde, quando era preciso, se matavam as galinhas ou os perus que se iam buscar ao galinheiro, no fundo do quintal, ao lado da casa da lenha.

Acabado o jantar de Natal, depois de pedida licença à avó para nos levantarmos, passámos pela sala de jantar, atravessámos a sala encarnada, que só se abria em dias de festa, corremos pelo quarto da avó, subimos ao sótão, onde dormíamos, agachámo-nos de modo a tiramos rapidamente os sapatos ou botas de debaixo das camas, descemos em tropel, passámos pelo quarto da tia Mená, descemos as escadas que iam dar à entrada, guinámos 180 graus e chegados à sala das arcas encaminhámo-nos para a sala da lareira, onde enfileiramos o calçado. Era nesta última que estava montado o presépio, atapetado de abundante musgo, que tínhamos andado a recolher pelas árvores e muros dos campos, coberto por figuras de barro, encantadoramente toscas.

Entretanto, os mais velhos vinham também descendo e iam-se aconchegando na sala da braseira – esta era separada da sala das arcas pela sala do piano e dava para a varanda dos arcos, que se abria sobre o jardim e era subposta, à varanda da cozinha –. Porém, pelas onze, onze e meia da noite os lugares trocavam-se. Irmãos e primos mais novos eram “encerrados” na sala da braseira enquanto os mais velhos dispunham, na sala da lareira, os presentes que o Menino Jesus tinha trazido. Não podíamos ver nada até à hora devida que era só depois da Missa do Galo que se celebrava, então, mesmo à meia-noite. Primeiro badalavam os sinos da vetusta Igreja de S. Vicente, depois, uns cinco ou dez minutos antes tocava a sineta para avisar da iminência da celebração. Como a casa era bem perto do templo, só a este último sinal é que nos agasalhávamos para enfrentarmos o frio da noite e saíamos. A Missa, luminosa e resplandecente de alegria interior, era celebrada com os vagares próprios do Cónego Freitas. Os mais novos estávamos como que divididos entre a suspensão maravilhada da celebração dos mistérios e a pressa do fim numa sofreguidão pelos presentes.

Terminados os ritos e as saudações de boas-festas aos amigos e conhecidos, no adro da Igreja antiga, por debaixo dos arcos botantes, para onde dava a porta lateral que tínhamos por costume usar, deitámos a correr para casa, sendo recebidos pelos latidos alegres do Toy, um fox terrier, e pelo ronronar da Patuda e suas crias, uma gata com que o Toy convivia mansamente, para além da Bigodaças, uma coelha domesticada que partilhava desta amizade inter-espécies.

Na sala das arcas amontoámo-nos todos até que estivessem presentes os pais, os tios e a avó, espreitando avidamente os embrulhos pelas vidraças das portas da casa da lareira. Quando finalmente fomos autorizados a entrar dirigi-me para o meu sapatinho agarrando de pronto o maior e mais vistoso dos embrulhos. Desenlacei a fita, rasguei o papel, deparou-se-me uma caixa de papel pardo e reles que abri movido por uma inquieta curiosidade, logo seguida de um grande assombro que subitamente rebentou numa intempestiva cólera e me fez raivosamente lançar tudo para a lareira que crepitava alegremente: era uma caixa cheia de carvões! Carvões!!! Carvões negros, medonhos, fuliginosos, mais sombrios que a noite mais escura de invernia, mais tristes que um calvário. Ainda para mais numa noite de Natal! Que “piadinha” sem gracinha nenhuma! E logo da Mená que era sempre tão querida e amiga! Parvoíces! Sentei-me a um canto, de trombas, e amuei melancolicamente.

Entretanto, o Luís, meu irmão, afilhado da Mená, descobriu igualmente que o presente oferecido pela madrinha era também uma caixa a abarrotar de carvões. E logo fez ali uma galhofa: Ai que bom! Há tanto tempo que queria carvões e ninguém mos dava. Até que enfim! E com exclamações de regozijo e ares de grande festa começou a partilhar o seu “tesouro”. Um carvão para a avó, outro para o pai, o terceiro para a mãe, etc. E todos agradeciam entre sorrisos e gracejos a preciosidade que recebiam, até que esgotados os carvões o meu irmão descobre uma quantia avultada de dinheiro! O meu ardeu na lareira…

Este episódio da infância ficou-me para sempre como uma lição. Tantas vezes Deus permite “carvões” nas nossas vidas, enfermidades, lutos, desempregos, injustiças, ingratidões, as mais diversas contrariedades, estorvos, sofrimentos e obstáculos; e, no entanto, se nEle soubermos esperar e confiar nunca nos deixa ficar mal, pois, por debaixo dos “carvões” há sempre uma quantia de Graças avultada. Afinal, como diz S. Paulo, Deus concorre em tudo para o bem daqueles que O amam, e Santo Agostinho adianta que embora Deus nunca queira o mal, o permite, mas somente porque pelo Seu poder omnipotente é capaz de tirar do mal um bem maior. Afinal foi isso que aconteceu na Redenção: do mais grave de todos os pecados que o homem podia cometer – a crucifixão e morte de Jesus Cristo – tirou a nossa Salvação. Do maior mal tirou o maior bem – onde abundou o pecado, diz S. Paulo, superabundou a Graça de Deus. Importa pois não se revoltar, desalentar, desistir ou isolar como eu o fiz impedindo-me a mim mesmo, uma vez que deitei tudo a perder, de receber a prenda que a Mená me tinha preparado. O Luís, pelo contrário, encarando a circunstância com bom-humor e confiança, sabendo partilhar as suas dificuldades (os carvões) encontrou o dom escondido e uniu a família numa partilha jucunda.

Pedir com simplicidade que nos ajudem a levar a cruz – os carvões –, faz-nos crescer na humildade e oferece aos outros a possibilidade de amadurecerem na generosidade. Quem pede percebe que sem os outros pouco é, não consegue ser quem é; quem se oferece, saindo de si mesmo para se dar desinteressadamente, aprende o amor que consiste no dom sincero de si mesmo como ensina o Concílio Vaticano II.

O presente que me foi oferecido com tanto amor, ao não ser acolhido, ao ser lançado ao fogo, ateou em mim labaredas infernais, símbolo daquela perdição eterna a que nos podemos condenar por culpa própria e da qual Deus nos quer salvar. Pelo contrário, os carvões compartidos pelo Luís, que cada um magnanimamente tomou para si são sinal da sua deles oblação àquele fogo de amor divino, que tomando-os para Si, os abrasou com tal intensidade e veemência de amor que os confundiu Consigo, transformando-os em brasas incandescentes de caridade e alegria, em chamas de amor, ateando incêndios pentecostais.

2. No dia 11 de Fevereiro quando se soube do resultado do referendo sobre o aborto, quem não se espantou ou mesmo escandalizou daquela alegria estampada nos rostos e do contentamento que reinava na sede dos movimentos de defesa da vida. Manifestações deste teor são habituais em quem ganha votações, não em quem as perde. Acresce que muitas destas pessoas que tinham lutado até à heroicidade não o tinham feito com outra finalidade senão a de proteger os mais fracos e impedir que se institucionalizasse a mais grave e clamorosa das injustiças em Portugal. Não procuravam ganhar nada para si mesmas, mas em tudo se empenhavam pelos outros, inclusive, pelos promotores da anti-cultura da morte, uma vez que a vitória destes constitui para si mesmos uma derrota calamitosa. Combatiam, pois, por todos, contra ninguém, como verdadeiros seguidores dAquele que deu a vida para salvar os seus inimigos.

Uma vez que todos perderam, exceptuando o demónio, eu creio que a circunstância requeria grande circunspecção nem que mais não fosse em nome das numerosíssimas vítimas mortalmente atingidas na alma e no corpo que se adivinhavam. Teria sido adequada uma gravidade no semblante, uma contenção na expressão, um comedimento na atitude. Mas quem pode sossegar a chama/amor, que por sua própria natureza é inquieta? Quem a pode conter sem que a apague? O amor como o fogo ou se alimenta continuamente ou extingue-se. E aquelas brasas fustigadas pelo rijo vendaval da derrota referendária, que as pretendia apagar, ganharam ainda mais chama e atearam um benigníssimo incêndio que não repousará enquanto não puser Portugal inteiro a arder daquele amor que sabe que a última palavra não a tem a morte mas sim a Vida.

3. Quando o referendo foi marcado para o dia de Nossa Senhora de Lurdes procurei considerar atentamente o Seu mistério ali revelado e continuado, e guardei só para mim a suspeita que desta vez o milagre não seria o da vitória pelos votos – afinal, Deus não pode andar continuamente a “tapar os buracos” daquilo que Ele quis fazer connosco e por nós e que negligenciámos ao longo de tantos anos: quando a corrida de fundo já começou há muito e a maioria de nós só parte a toda a pressa quando os outros estão a chegar à meta, é abusar de Deus pedir-lhe que nos transporte pelos ares para a frente do pelotão…

Quem rezar e meditar compreenderá.

Nuno Serras Pereira
29. 05. 2007

Cala-te que eles fogem!

De há umas décadas a esta parte muitos prelados parecem viver espavoridos com o afastamento das pessoas da Igreja. Tem-se aliás a impressão que a mais grave acusação que se pode fazer a alguém, a nível eclesial, é a de ter dito qualquer coisa que arreda as pessoas da Igreja. É como se esta devesse ser uma sedutora especializada em mercadização cujo sucesso se deveria medir pela quantidade de aderentes ou de consumidores dos seus serviços religiosos.

Recordo-me que há uns anos - aquando do considerado polémico anúncio num jornal nacional sobre a Sagrada Comunhão e o aborto provocado - um jornalista me perguntou se não receava que essa minha tomada de posição pública distanciasse as pessoas da Igreja. Não me recordo das palavras exactas que proferi mas a resposta só pode ter sido que isso ultimamente era irrelevante, que não tinha medo nenhum, que as pessoa eram livres de fazerem o que entendessem mas importava que o fizessem com conhecimento de causa e para isso era necessário que soubessem a verdade.

Também agora, a propósito dos quarentas anos da encíclica Humanae Vitae, se ouvem de novo as monótonas acusações de que esse documento afugentou muitas pessoas da Igreja. A recriminação está feita de tal modo que muitas pessoa são levadas a pensar que o ensino nela contido é uma invenção do Papa Paulo VI, quando, na verdade, é doutrina contida nas Sagradas Escrituras e constantemente proclamada pela Igreja universal.

De modo que segundo estas luminárias a Igreja devia andar à deriva seguindo as mudanças volúveis das opiniões e governando-se por sondagens e plebiscitos permanentes. A Igreja não seria depositária da Verdade que lhe foi concedida para a comunicar, viver e aprofundar mas seria fabricada pelos caprichos das multidões; não seria a presença de Jesus Cristo continuada na história para redimir a humanidade, mas ela e ultimamente o próprio Cristo é que deveriam ser resgatados, salvos pelo mundo.

Mas não sei ao certo o que será mais prejudicial. Se estas acusações que de tão absurdas mostram o disparate que são se o silêncio programado e incessante sobre essa doutrina. Eu tenho para mim que os fiéis mas também aqueles que não pertencem à Igreja têm o direito de saber qual a sua verdadeira identidade, a doutrina que proclama, a Verdade que comunica. Creio ainda que se a Igreja deixa dissolver a sua identidade na mentalidade reinante tanto menos gente terá porque senão existem diferenças no modo de viver, se tudo é igual, se o Cristianismo não é um caminho, não é um seguimento, qual o ponto em ser cristão? Não passaria, então, de uma preferência meramente afectiva no hipermercado sincrético das religiões.

Porém, o que mais me espanta nisto tudo é que Cristo fez exactamente o contrário daquilo que parece estar generalizado numa certa prática eclesial. Quando depara com as multidões que O seguem, dirige-se a elas com uma franqueza assustadora: Quem quiser vir após Mim renuncie a tudo quanto tem, tome a sua cruz e siga-Me. Quem não Me ama mais do que a si mesmo e aos seus amigos e familiares mais chegados não pode ser Meu discípulo.

Quando revelou que o Seu Corpo era verdadeira comida e o Seu sangue verdadeira bebida, e que quem não se alimentasse deles não poderia entrar na vida eterna, a multidão que o rodeava afastou-se agastada tendo aquelas palavras como insuportáveis. E, no entanto o Senhor, não procurou demover ninguém de se ir mas, pelo contrário, perguntou aos seus apóstolos se também se queriam ir embora.

Nuno Serras Pereira
11. 11. 2008

Afinal sempre são Filhos

Ainda não há muito o governo ... e o partido ... que o sustenta juravam a pés juntos e proclamavam-no aos quatro ventos que o aborto provocado não era um homicídio porque ninguém era morto. Tratava-se, isso sim, de arrancar uma coisa das entranhas da mulher tendo em vista o seu bem, a sua felicidade, a sua realização. A coisa funesta tinha-se ali alojado, não se sabe porque artes mágicas, contra o consentimento da mulher. Assistia-lhe por isso o direito de expelir aquela conglomeração tumoral como quem evacua asquerosas sevandijas peçonhentas. A mulher nesse estado não era mãe e ninguém podia obrigá-la a sê-lo constrangendo-a a prosseguir com a gravidez imunda. Permanece um enigma insondável, que nunca quiseram esclarecer, como é que uma substância tão pútrida merecedora da mais veemente abominação se viria a transformar num filho, isto é, em alguém, num ser humano, numa pessoa.

Hoje, no entanto, segundo a edição online do jornal O Sol foi publicado em Diário da República um decreto-lei do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, segundo o qual será pago um subsídio de maternidade à mãe que “interrompa voluntariamente a gravidez” num período que varia entre os 14 e os 30 dias.

Se assim é só poderemos concluir que ou o governo entende que a mulher grávida que aborta, por esse mesmo facto, se transforma subitamente em mãe ou reconhece que andou a mentir aos portugueses durante toda a campanha do referendo sobre o aborto, pois sempre soube muito bem que a mulher grávida, pelo facto de o estar, é já mãe e que por consequência traz dentro de si, sob o seu coração, um ser humano por ela gerado, uma criança nascitura, um filho que só pôde surgir porque ela se entregou livremente àquele acto que de sua própria natureza é finalizado à geração.

De modo que em Portugal o Estado não só trucida os filhos das mães grávidas que o queiram mas também as recompensa e premeia com a justificação de estar a tomar medidas de incentivo à natalidade.

A ser verdade que houve mães grávidas que desde a entrada em vigor desta lei já abortaram por três vezes, como os jornais noticiam, temos que estas heroínas nacionais, paradigma do verdadeiro feminismo gozarão de, pelo menos, 90 dias de férias regaladas.

Não se pense porém, de modo algum, que se trata de sanguinários ou que o Estado é tirano e que vivemos num substancial totalitarismo. Isso é uma grave falta de caridade, revela um juízo temerário e uma consciência sórdida e soez. Unamo-nos antes num coro harmonioso entoando com júbilo: são tão queridos os nossos governantes! É tão excelsa a nossa democracia! Que bom que todo o poder lhes tenha sido dado! A eles a honra, a glória e o poder! Mantenhamo-los com os nossos votos em seus cargos! Rejubilemos com o seu discernimento! Ponhamo-los a pregar nas nossas Igrejas e embeveçamo-nos com os seus ensinamentos!

Nuno Serras Pereira
25 de Junho de 2008

A Extraordinária Ordem dos Médicos

1. Depois de muito estudarem, pensarem, reunirem e debaterem os membros da Ordem dos Médicos (OM) concluíram que ignoravam aquilo que todos os médicos, até hoje, sempre souberam - quando começa a vida humana. A novidade desta descoberta genial ficará certamente na história da humanidade como uma prova evidente da sagacidade dos médicos portugueses. Como não é possível saber quando a vida se inicia é deixado ao critério da consciência de cada médico pressentir, adivinhar ou decidir esse momento. Mas uma vez que a ignorância é absoluta e não há critérios objectivos para aferir da existência da vida podemos achar, opinar ou decidir que ela começa no nascimento ou aos 6 anos de idade ou aos 18 ou aos 90. Poderemos inclusive perguntar-nos se os médicos que chegaram a esta brilhante conclusão já começaram a viver ou não. Ou até se a vida alguma vez começa, se existirá ou não vida humana.

Não deixa porém de ser estranho que os doutores que ignoram quando a vida começa pareçam saber exactamente quando se dá a morte. Pois se a gente não sabe se aquilo está vivo, se é um aquele, como poderemos saber o que é um aborto ou distingui-lo de uma cirurgia tumoral? Mais, como poderemos saber, quando aquilo é grande, se lhe aplicar ou não a eutanásia ou a distanásia? Aliás, se não se sabe quando se dá o início da vida como se pode saber quando acontece a morte? Há, por esse mundo fora, muitas discussões sobre os sinais da morte. Sendo assim como é que os médicos portugueses que não sabem quando começa a vida sabem exactamente quando ela termina? ...

Nuno Serras Pereira
29. 09. 2008

Votações

Os portugueses são um povo clarividente e inteligente. Têm sempre razão quando votam e votam sempre o melhor.

Começaram por votar em quem não queria que eles concebessem filhos. E os eleitos achando-se legitimados pelo voto popular estenderam e promoveram a contracepção em todo o país.

Depois os portugueses, povo sagaz e arguto, votaram naqueles que queriam que no caso de eles conceberem filhos os matassem antes do nascimento. E os eleitos satisfeitos com o que consideravam uma validação promoveram alegremente o homicídio em forma de aborto.

Mais tarde os portugueses, povo ladino e democrático, votaram nos que queriam introduzir uma propaganda obscena e lúbrica nas escolas de seus filhos, de modo que os elegidos acharam-se no direito de lhes roubar a inocência pervertendo-os desde a mais tenra idade.

Em seguida os portugueses, povo perspicaz e esperto, votaram em todos os que queriam fazer experimentações na sua progénie. E os eleitos com a proverbial presunção da legalidade conferida pela nação promoveram a reprodução artificial seleccionando eugeneticamente os filhos, escangalhando-os, clonando-os, congelando-os, queimando-os, etc.

Algum tempo depois os portugueses, povo penetrante e astuto, votaram naqueles que queriam estropiar mais eficazmente seus filhos expandindo a liberalização do crime abominável do aborto. E os escolhidos abriram abortadouros financiados pelo Estado para evitar que diminuísse o número dos que poderão escapar com vida.

Dentro em pouco os portugueses, povo sábio e entendido, votarão naqueles que querem matá-los através da eutanásia e do suicídio assistido. E os eleitos solícitos e diligentes far-lhes-ão a vontade de muito bom agrado.

Nuno Serras Pereira
20. 02. 2008