Nuno Serras Pereira
22. 09. 2007
Num sábado à tarde do mês de Agosto pus-me a caminho da Praça da Alegria em busca da tão gratuitamente publicitada “clínica” dos Arcos. Tinham-me dito que ficava por ali perto e, de facto, subindo um pouco, como quem vai para o Príncipe Real, logo a descobri. Está sedeada num prédio novo na Rua da Mãe-de-Água. A sua parte fronteira, com a porta de entrada, dá para a intersecção de duas vias que se cruzam – a já referida e a Travessa do Rosário –, de modo que o matadouro se estende, por um lado, para a parte superior da Rua da Mãe-de-Água, que logo ali termina no Chafariz do Vinho e, por outro, pela Travessa do Rosário, fazendo traseira com um Templo da “Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica”.
Em síntese: o abortadouro, calvário do nosso tempo, está situado junto a uma cruz – as duas vias formam uma cruz perfeita, alicerçada na Praça da Alegria –, na rua da Mãe-de-Água, a meio da Travessa do Rosário, nas traseiras de um Templo Evangélico.
Quando ontem à tarde ali voltei, ao descer a Avenida da Liberdade, começou por me impressionar a quantidade imensa de gente que ia e vinha tratando das suas coisas ignorantes ou indiferentes à matança que ali decorria tão perto… Chegado ao Gólgota, enquanto rezava o terço por aquelas mulheres grávidas e seus filhos que entrevia pelas vidraças transparentes da portaria, não pude deixar de meditar sobre o mistério daquele lugar.
O que primeiro salta à vista é, evidentemente, o mistério da iniquidade. Não é possível encontrar uma explicação meramente racional para uma cegueira tamanha, para uma loucura tão desumana e cruel, tão alheia do amor e da solidariedade, tão contrária à solidariedade e à justiça.
Mas logo a este mistério tremendo, providencialmente, se sobrepuja um outro Mistério que nos envolve e penetra de uma esperança contra toda a esperança. O sangue inocente, derramado pelos algozes actuais é, num certo sentido, sangue de Cristo, ali de novo e repetidamente crucificado. A Mãe-d’água e o Chafariz do Vinho, que nela se encontra, lembram o Coração trespassado de Cristo, do qual brotaram sangue e água, sinais da Eucaristia e do Baptismo; a água, sabemo-lo bem, é símbolo do Espírito Santo que tudo vivifica e purifica. A Mãe é a Virgem Maria, Esposa do Espírito Santo, e, por isso, cheia de Graça, isto é, dEle, o qual nos foi e é dado por Seu Filho Jesus.
O Rosário (isto é, o Terço) é aquela oração, feita na companhia de Nossa Senhora, eminentemente centrada em Jesus Cristo – nos mistérios da Sua vida, morte e ressurreição –, que continuamente brota do Pai, através da oração que o Salvador nos ensinou, e desemboca no Glória à Trindade, lembrando-nos as coisas últimas – o Inferno, o Purgatório e o Céu –, e ensinando-nos a confiança na intercessão da Mãe de Deus humanado.
Na Travessa do Rosário, um azulejo representa a Imaculada esmagando a cabeça do “dragão enganador” – Satanás –, na companhia de um santo Bispo ou Papa, que não consegui identificar. A Imaculada Conceição, Senhora de Lurdes, padroeira da Ordem Franciscana e Rainha de Portugal, cujos membros, tantos, tanto tempo trabalharam para que fosse reconhecida como tal, parece indicar que assim como durante séculos persistimos e perseveramos com grandes dificuldades e obstáculos no combate denodado por essa verdade, assim importa fazer de novo para que esta outra verdade da dignidade de cada ser humano desde a sua concepção seja reconhecida, respeitada, protegida, amada e promovida até à sua morte natural. A necessidade de comunhão com a Hierarquia da Igreja e o acolhimento pronto do seu Magistério, procurando diligentemente pô-lo em prática, estão representados no santo Bispo, enquanto Bispo. A importância vital de vivermos na santidade que Deus nos outorga está também significada no santo Bispo, enquanto santo, mas principalmente na Imaculada Conceição cuja fidelidade absoluta e permanência total e incondicional no Espírito de Deus, até ao fim, lhe valeu o título de Imaculado Coração de Maria.
Como ali se praticam pecados atrocíssimos logo nos lembramos de Francisco, pastorinho de Fátima, que tristíssimo pela enorme mágoa que o pecado traz a Jesus O procurava consolar, reparando com amor, e pedindo a brados de alma que O não ofendêssemos mais, pois já estava muito ofendido. Ali podemos consolar Jesus, em oração e sacrifícios de reparação. De pronto nos acode, também, Jacinta, que horrorizada pela perdição ou condenação ao Inferno de muitos pecadores, de imediato se decidiu à oração e sacrifícios instantes e prementes para que mais ninguém tivesse tal destino, mas todos pudessem arrepender-se, converter-se e salvar-se. Recordando que Nossa Senhora comunicou a Jacinta, aquando da sua estada em Lisboa por enfermidade, que a maioria dos condenados o eram por causa dos pecados sexuais, e verificando ali as suas consequências – a morte propositadamente provocada dos próprios filhos –, perceberemos melhor o alcance daquela revelação.
Depois, como não lembrar Lúcia que ficou para espalhar a mensagem e garantir o seu cumprimento, não como nós achávamos que devia ser, mas sim como Nossa Senhora pediu e Deus determinou. E como evitar meditar seriamente que o Papa João Paulo II, que de si mesmo afirmou: “Eu sou o Papa da vida e da paternidade responsável e toda a gente tem de o saber … Sim, eu cheguei à Cadeira de S. Pedro, vindo da Humanae Vitae em vista da vida humana” (Cf Padre Nuno Serras Pereira, O Triunfo da Vida, p. 260, Crucifixus, 2006), ligou explicitamente a mensagem de Fátima à defesa dos nascituros na homilia que proferiu nesse Santuário, aquando da canonização dos pastorinhos? Como é possível não perceber que este Papa que assim definiu a sua vocação de sucessor de Pedro, foi salvo do atentado, de que foi vítima em Roma, por Nossa Senhora de Fátima, precisamente para poder cumprir até ao fim essa missão que Deus lhe confiou?
Mas se toda a mensagem de Fátima remete para aquele lugar, como temos vindo a verificar, então é porque o que ali acontece remete, por sua vez, para Fátima. Se Fátima tem de ser levada aos Gólgotas de hoje isso significa que o anúncio explícito e sistemático do Evangelho da vida tem de ser levado a Fátima. Fátima, torno a repetir o que tenho dito e escrito noutros lugares, tem que ser o centro da defesa e promoção da vida humana em Portugal e na Europa, em especial na sua fase inicial e terminal.
Mas o Mistério daquele lugar também se revela na colocação providencial de um templo evangélico, traseira com traseira, que nos lembra a relevância indispensável do ecumenismo. Como em outros países onde o aborto foi liberalizado parece que o Senhor nos quer indicar que o caminho mais urgente e com resultados práticos mais densos de unidade se dará na aliança das várias confissões cristãs em defesa da dignidade da pessoa humana em todas as fases da sua existência, desde a concepção até à morte natural.
A praça das alegrias levianas, vãs e mundanas conduz à ignominiosa injustiça da tortura e da morte dos mais vulneráveis, inocentes e indefesos. Mas se ali, e em outros sítios semelhantes, permanecermos, física e espiritualmente presentes, os milagres acontecerão transformando corações e salvando vidas, que já não regressarão à baixeza das diversões e jocosidades vis e insensatas da praça, mas tomando a vereda do rosário (terço) ganharão a rua da verdadeira e perfeita Alegria que os conduzirá, em via ascendente, ao Filho do Rei (Cf Lc 14, 16-24 e Mt 22, 1-14), ao verdadeiro, definitivo e eterno Príncipe Real. Onde haverá grande festa e júbilos eternos, pois o que estava perdido será encontrado e o que estava morto voltará à vida (Cf Lc 15, 32).