segunda-feira, 13 de abril de 2009

Conto de Páscoa

João César das Neves

In Diário de Notícias - 13.04. 2009

Um dia olhei e vi diante de mim uma espessa e ameaçadora floresta. A minha vida era um bosque sombrio e emaranhado, onde vários perigos espreitavam. Atrás estava uma alta parede de rocha, de que não via o topo, e à minha frente a selva. Pior de tudo, sentia que devia sair daquela pequena clareira onde me encontrava, mas não sabia como.

O problema não era a falta de caminho. Pelo contrário, havia várias vias diferentes abertas diante de mim, cada uma seguindo na sua direcção. Eu podia bordejar a parede de rocha, em ambos os sentidos, ou seguir sempre em frente, adensando-me no arvoredo. Mas podia também ir em várias linhas oblíquas à montanha, em mais de dez atalhos diferentes.

Olhando com atenção vi que, embora houvesse alguns ameaçadores, outros caminhos eram bastante convidativos. Muitos deles. Esse era o problema. Eram ensolarados, como a clareira, e se alguns pareciam infestados de feras, outros mos- travam-se empedrados, até com indicações de destinos. Por qual deles seguir?

Nessa altura reparei que não estava sozinho na mata. Aliás estava ali uma multidão que, apesar de ser tão grande e o local tão apertado, surpreendentemente não me oprimia nem acotovelava. Procurei saber a direcção que eles iam escolher, mas percebi logo que ainda estavam mais confusos que eu. Todos menos um idoso, com roupagens estranhas, que olhava para mim intensamente. Dirigi-me a ele e perguntei se me podia ajudar a encontrar o caminho na vida. Ele disse-me que a escolha era minha. Mas, se eu quisesse, podia mostrar-me onde se dirigiam as várias veredas.

Aceitei com interesse e o homem penetrou decididamente na floresta, através de um arbusto que parecia sem passagem. Segui-o e logo depois chegámos a uma outra clareira onde havia um enorme balão de ar quente, com um cesto preso em baixo. Ele ia mostrar-me os caminhos subindo no balão. Entrámos ambos e o homem, largando o lastro e aumentando a chama na base do aeróstato, fê-lo subir.

Poucos minutos depois estávamos acima das copas das árvores, e logo a seguir via-se bem a clareira junto à rocha e o traçado dos vários carreiros que dela saíam. O que vi espantou-me. Todos aqueles caminhos eram sinuosos e embrulhados, criando uma rede impossível de distinguir. Alguns seguiam em linha recta algum tempo, mas eram cruzados por outros ou entroncavam nos demais. Não se via uma direcção clara em nenhum deles. Aliás, as direcções pareciam multiplicar-se à medida que se afastavam da montanha. Olhei assustado para o velho e ele limitou-se a sorrir e a aumentar a chama para subirmos mais.

Quando atingimos uma altura considerável acima da floresta, de repente comecei a notar um padrão. Os vários caminhos que serpenteavam no meio da selva, agora apenas linhas no verde escuro do fundo, pareciam agrupar-se. É difícil explicar, mas o emaranhado de veredas era como que dividido em dois feixes de percursos, que se dirigiam para lados diferentes. Notei que a mistura era intensa, sem que a origem do caminho permitisse prever em qual dos dois lados acabaria. Algumas linhas vinham de um dos extremos para acabarem no feixe contrário. Uma vez feita a separação, no entanto, deixava de haver ligação entre os dois conjuntos, que seguiam claramente cada um no seu sentido.

Tentei perceber onde se dirigia cada uma das direcções, mas ambas se perdiam no nevoeiro. A minha confusão aumentava e ia dirigir a palavra ao meu silencioso companheiro quando vi, mesmo no local onde os dois grupos de veredas se separavam, luzir algo muito intensamente. Perguntei o que era e o velho perguntou se queria ir ver. Aceitei e descemos rapidamente.

Quando nos aproximámos de novo do topo das árvores, encontrei-me numa clareira, onde em cima de um rochedo estava uma placa dourada. Era ela que eu vira luzir. O balão aterrou e corri para a placa, onde estava escrito: "Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus - a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si - a celeste." S. Agostinho A Cidade de Deus, livro XIV, cap. XVIII.