quinta-feira, 28 de maio de 2009

Um Grilo Franciscanófilo


1. São Francisco de Assis para além da Regra de vida que elaborou para a generalidade dos frades (frades significa irmãos), escreveu uma outra para aqueles que sendo mais dados à contemplação do que à missão, viviam em eremitérios, isto é, em pequenos conventos situados em lugares desabitados. A inspiração para este teor de vida foi buscá-la aos Santos Evangelhos, concretamente ao de São Lucas, no capítulo 10, versículos 38 a 42. Aí se narra que uma mulher de nome Marta recebeu Jesus em sua casa, e que enquanto ela se afadigava preparando as coisas para tão digno hóspede, sua irmã Maria quedou-se sentada aos pés de Jesus escutando e embevecendo-se nas Suas palavras. Marta cuidando que era uma injustiça que todo o trabalho recaísse sobre ela, interpelou o Senhor perguntando-Lhe porque não mandava que sua irmã a fosse ajudar nos serviços que a sobrecarregavam. Ao que o Senhor respondeu: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.». Como quem diz, mais do que Me servirem ou prepararem coisas para Mim, deixem que Eu vos sirva, acolhendo-Me e aquilo que tenho para vos dar: porque Eu não vim para ser servido mas para servir e dar a vida em resgate por todos (Cf Mt 20, 28; Mc 10, 45). Alguns autores, como Santo Agostinho, vêm em Marta a figura do Cristão na vida presente e em Maria a da vida futura, do Céu. Outros, como São Gregório Magno, interpretam Marta como protótipo da vida activa (vida de amor e doação a Ele presente nos outros), enquanto Maria o seria da vida contemplativa (vida de doação e amor a Ele em Si mesmo, em favor dos outros). A Igreja sempre reconheceu esta diversidade de vocações, não sendo por acaso que reconhece as duas irmãs como Santas, isto é, como participantes da Santidade que Deus lhes concedeu, o único verdadeira e absolutamente Santo.

S. Francisco, depois de determinar o número de irmãos que deveria viver em cada ermitério, divide-os em dois manda que metade faça de Martas e a outra metade de Marias. Depois, ao fim de certo tempo, troquem as funções e as Marias passem a Martas e estas a Marias. Fazer de Marta, no pensamento do Santo, é fazer de mãe das Marias. Já nos seus outros escritos S. Francisco adverte que se uma mãe ama com tanto amor a seu filho carnal, nutrindo-o e dele cuidando, com quanto mais amor espiritual se devem amar os irmãos (os frades) entre si. Amor espiritual, no cristianismo, é amor encarnado, materializado, ou seja, realizado concretamente através de gestos e acções. Não é, de modo nenhum um amor lamechas, mas exigente e verdadeiro. Como, o de uma mãe que o sabe ser. As Marias devem-se dar oração contemplativa, ao silêncio, às admirações das realidades Divinas, aos êxtases, às adorações, à escuta da Palavra de Deus, à relação de amizade com Cristo. As Martas, por seu lado devem cozinhar, fazer as limpezas, cuidar que ninguém importune as Marias, criar o ambiente propício ao sossego e tranquilidade das Marias. Depois, passado o tempo devido, trocam uns com os outros os seus papéis e funções, ou melhor os seus serviços.

2. No postulantado, noviciado e durante o tempo de seminário tive sempre um fascínio e um desejo grande de organizar retiros espirituais baseado nessa Regra. A ocasião surgiu quando já Ordenado sacerdote, fui colocado em Coimbra, no convento dos Santos Mártires de Marrocos.

Alguns dos jovens com quem reunia e fazia apostolado conheciam umas famílias que possuíam umas casas restauradas na serra da Lousã. Eram uma obra-prima de arquitectura, construídas em xisto, que acompanhavam o declive íngreme da serra, de modo que de longe não se dava por elas. Conseguimos duas, uma para as Martas e outra para as Marias. Em comum, rezávamos Laudes e Vésperas e celebrávamos a Eucaristia. Depois das Laudes, em que fazia uma pequena meditação para todos, as Martas iam aos seus trabalhos enquanto as Marias escutavam uma outra meditação mais prolongada seguida de tempo de silêncio e de oração pessoal. E assim íamos dividindo o dia, com refeições em comum, até à celebração da Santa Missa. Esta demorava cerca de duas a três horas, pois além das leituras próprias do leccionário, se escutava uma ou outra dos escritos ou da vida de S. Francisco; depois a homilia era larga, sendo seguida habitualmente por orações ou invocações partilhadas; acresce ainda que havia grandes momentos de silêncio e de adoração. De modo que era verdadeiramente o ponto culminante e central do dia. Ao jantar, bem tardio, não havia silêncio, e depois deste fazia-se sempre uma representação sagrada a partir das florinhas de S. Francisco de Assis.

3. Ora numa das celebrações da Sagrada Eucaristia, em capela improvisada na divisão mais ampla e digna de uma das casas, à proclamação da Palavra de Deus, um grilo começou a guizalhar, certamente para entoar gozosos louvores ao Criador e Senhor de todas as coisas. Depois da Palavra proclamada, alguns ainda tentaram discretamente perceber onde estava o grilo, mas não deram com ele.

Como durante a pregação a criaturinha não se calasse mas antes elevasse sonoramente o seu grilar, a concentração dos presentes e mesmo do pregador tornava-se difícil. O sacerdote esforçava a voz alteando-a conforme podia mas a intensidade do guizalhar parecia crescer à proporção. Pelo que lembrando-me eu de que não só era sacerdote, mas era franciscano, dirigi-me ao insecto, mais ou menos nos seguintes termos: Irmão grilo, o Senhor te dê a paz. Nós estamos gratos pelos teus cantares de louvor ao Senhor, teu e nosso Criador, mas agora da parte de Deus te mando, recorrendo à virtude da intercessão de S. Francisco, que faças silêncio e deixes que a pregação que tanto importa à salvação das almas e sua santificação prossiga o seu curso. De imediato, o irmão grilo, seguramente pela sua devoção a S. Francisco, se calou e não mais grilou até ao fim da celebração, sendo que esta demorou pelo menos mais hora e meia.

Quem lá esteve e assistiu testemunha-o e sabem que o seu testemunho é verdadeiro. À honra de Cristo. Ámen.

Nuno Serras Pereira

26. 05. 2009