João César das Neves
In Diário de Notícias - 13. 07. 2009
Neste período eleitoral acontece um fenómeno inaudito na nossa democracia. Pela primeira vez desde 1974 um dos grandes partidos nacionais apresenta no seu programa uma medida claramente oposta à doutrina da Igreja Católica. A moção aprovada no XVI Congresso Nacional do PS de 1 de Março propõe "a remoção, na próxima legislatura, das barreiras jurídicas à realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo." (III 4 F).
Pode dizer-se que a medida não pretende ofender os católicos, tendo o propósito genérico de igualdade entre cidadãos. Aliás os dirigentes do PS têm muito cuidado em declarar cordialidade com a Igreja. Pode até dizer-se que a verdadeira finalidade do anúncio é apenas gerar um debate violento em assuntos laterais de forma a distrair o eleitorado da dureza da crise e dificuldades do Governo. O que não há dúvida é que, depois de toda a campanha do aborto, das várias leis antifamília e múltiplas beliscadelas administrativas, se pode dizer que a Igreja Católica, pela primeira vez desde o 25 de Abril, enfrenta uma oposição séria e profunda do poder político.
Todos sabem que as relações entre religião e Estado sempre foram controversas ao longo dos séculos. No mundo ocidental, a longa interacção entre Igreja Católica e governos passou por fases muito diferentes. Em particular em Portugal, os últimos 200 anos foram especialmente dolorosos. Do dirigismo pombalino e salazarista à perseguição liberal e republicana, houve mais de dois séculos de desentendimento, conflito e incompreensão. Sem nunca surgirem as multidões de mártires de quase todos os outros países europeus na época, Portugal passou muito tempo privado de uma relação saudável e equilibrada entre fé e poder.
Tudo isso mudou após 1974. Era evidente desde o princípio, quer para os bispos quer para os dirigentes revolucionários, que se deveriam evitar lutas antigas que tinham sido tão negativas para ambos. Por isso, apesar de escaramuças iniciais, sempre existiu muito cuidado das partes em prevenir choques e melindres. Todos declararam repetidamente o desejo de conviver e colaborar lealmente. O resultado foi o melhor período de relações Igreja-Estado de que há memória no nosso país. A revolução de Abril afirmou-se sem as dificuldades das suas antecessoras e os católicos viveram calmamente a sua vida, dispersando-se pelos vários partidos sem problemas.
A questão do aborto criou em 1984 o primeiro conflito aberto. Mas essa questão, que ainda permanece, mostrou bem os frutos dos esforços anteriores de diálogo. O confronto, que é grave e radical e tem tido fases opostas, foi em geral conduzido com serenidade e elevação, dentro dos termos do respeito institucional. Nunca se ouviram apelos à guerra santa ou ao anticlericalismo.
O Governo Sócrates, porém, mudou sensivelmente o tom da relação.
Formalmente as coisas estão na mesma mas, talvez porque se dá como adquirida a bonomia comum, o poder tomou várias atitudes claramente hostis à Igreja. Os mais de cinco anos de atraso na regulamentação da Concordata são o facto administrativo mais ostensivo. Mas politicamente são os sucessivos agravamentos das leis sobre a família e a vida humana, muitas vezes impostos de forma arrogante e apressada, que constituem o aspecto decisivo.
Começa a existir uma questão religiosa em Portugal. No meio da crise, e após décadas de juras universais em contrário, é difícil notar tal facto, mas ele torna-se indesmentível. Isto tem implicações a vários níveis. Depois do Verão a implicação será para os eleitores católicos na decisão do voto. Os bispos portugueses formularam já, em Nota Pastoral de 23 de Abril, os princípios a seguir. Apesar da linguagem, que mantém as cautelas e diplomacias de antes, foram claros para quem quiser ler bem.
Agora são os partidos políticos, em vias de construir as listas e estratégias eleitorais, que têm de tirar essas implicações. É bom que todos tenham em conta e tomem posição nesta triste questão que a irresponsabilidade de alguns faz renascer na sociedade portuguesa.