sábado, 28 de novembro de 2009

Se milagres desejais


A minha avó materna, como quase todas as avós portuguesas daquele tempo, sempre que perdia alguma coisa rezava num murmúrio, para nós ininteligível, o Responso de Santo António, e a verdade é que, segundo garantia, encontrava sempre as coisas desaparecidas. Nós, os netos, achávamos que aquilo era uma daquelas devoções que roçava a superstição e lançávamos uns aos outros um olhar céptico quando nos vinha com aquelas histórias. Com o passar dos anos e depois de uma vida atribulada a lembrança dessa devoção avoenga foi arrojada para uma masmorra da minha memória.

Cerca de um ano depois de ter entrado para o Seminário, a meio de uma Missa no Santuário de Fátima – durante a peregrinação anual franciscana – fui convidado pela mãe de um amigo a peregrinar a Assis com a sua família. Pedida a devida autorização ao Padre Mestre, que prontamente a concedeu, inscreveram-me numa peregrinação da Ordem Franciscana Secular (também conhecida por Ordem Terceira), assistida espiritualmente por dois Sacerdotes franciscanos. Éramos, creio, que cerca de 90 pessoas, uma vez que enchíamos dois autocarros (ónibus), a maioria, tanto quanto me lembra de idade avançada e, para a minha sensibilidade, um bocado “beata”, no sentido pejorativo deste termo.

Depois de Roma, Assis e o Monte Alverne, onde S. Francisco recebeu os estigmas, rumámos para Florença. Aí pernoitámos uma ou duas noites. No momento da partida, verificou-se que faltava a mala do Jorge. Todos nos pusemos, de algum modo, à procura, perscrutando os recantos mais inverosímeis. No frenesim ansioso, suponho que chegámos mesmo a olhar para o tecto na expectativa de encontrá-la… Em vão, não deparámos com vestígio algum da bagagem e estou em crer que o próprio CSI, se já existira, teria desistido da pesquisa. Resignados, cabisbaixos, lá entrámos para os autocarros rumo a Milão que, se a memória não me atraiçoa, dista de Florença cerca de 600 quilómetros.

Quando o autocarro em que seguia se pôs em marcha, logo o Padre mais velho, o mais novo ia no outro, depois das orações habituais, disse: e agora vamos rezar o responso de Santo António para encontrar a mala do Jorge. Eu confesso, com grande rubor, que me encolhi todo no banco, envergonhado de ter entrado para a Ordem a que aquele Sacerdote pertencia e indignado pelo fomento de uma devoçãozinha bafienta e ainda para mais disparatada. Se a mala se tinha perdido em Florença e partíamos para uma cidade tão distante que sentido tinha fazer aquela oração!? E, mentalmente, fui catalogando-o com todos aqueles nomes que os “católicos adultos” usam para descredibilizar a Fé dos simples. Fiquei mesmo furioso.

Claro que durante a viagem a mala não apareceu; claro que quando chegámos a Milão nada de mala; claro que na visita à Catedral de Milão não se vislumbrou a mala; claro que no hotel onde dormimos em Milão nada de mala; claro que quando partimos para Veneza, mala nem vê-la; claro que no barco em que se navegou pelos canais de Veneza não surgiu nenhuma mala; claro que na visita à Catedral de S. Marcos, claro que na visita à Catedral de S. Marcos, claro que na visita à Catedral de S. Marcos… encontrou-se a mala do Jorge! A mala estava lá! “Se milagres desejais recorrei a Santo António…” assim começa o Responso.

Desde aquele dia, tornei-me um fã da devoção da minha avó. E não estou arrependido. Tenho-me dado muito bem. Já lá vão trinta anos

Nuno Serras Pereira

28. 11. 2009