quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um Natal diferente


Quem me roubou de mim mesmo que já não sou o que fui? Não me reconheço neste vazio e nesta solidão. Quem me arrebatou pedaços da alma? Quem me fragmentou, estilhaçou a inteireza em que antes vivia? Donde me vem este desnorte, este sem sentido, esta angústia vertiginosa? Pudesse ao menos chorar… mas não!, é como e tivesse sido sovado, tormento atordoado, um sonâmbulo esbodegado. Nada me acode neste suplício, nesta aflição ansiosa. Tudo se esvaiu, ninguém me preenche, agoniam-me todas as superficialidades que antes me entretinham, às quais apegado vivia. Que risos e festejos eram aqueles senão nadas que o nada antecipavam? Distracções da cinza, do pó a que tornaremos… Pois como desapareceram as minhas origens, os meus fundamentos, as relações que eram a consistência do meu ser? Como sou sem elas senão sendo o que não sou? Mas se não sou, como ainda me reconheço, embora outro de mim mesmo, dissipado que estou como cinza espargida ao vento sem forma que a determine e a identifique? Como é que este eu que é não eu pode ainda dizer eu? E quem é este eu?

Esta inquietude, este enigma prenhe de mistério, que a grande custo, num esforço desesperado, quebrou, escaqueirando as cadeias do seu sofrimento, a paralisia dos seus padecimentos, fê-lo empenhar-se com grandes fadigas, esmolar-se pelos seus semelhantes.

Como que anestesiado cumpriu os ritos familiares, agora sem eles, olhando alheio, como exterior ao que se passava, os filhos e demais parentes. Porque é que aquilo que devia ser festa e tanto alegrava os outros tinha para ele o travo de uma melancolia imensa? Luzes cromaticamente variegadas, árvore abundantemente enfeitada, presentes em embrulhos multiplamente coloridos, presépio pitoresco, cheio de beleza simples. Refeições pingues, vinhos excelentes, sobremesas de fazer inveja às iguarias conventuais. Mas o olhar permanecia mortiço, o rosto enevoado, a testa num franzimento sombrio.

No regresso a casa, após a ceia de Natal, ao parar num sinal vermelho, viu uma criança seminua de rosto radiante e de olhar profundo como um céu inter-galáctico, que trazia uma manjedoira às costas. Era uma visão deslumbrante que o invadiu de um grande fascínio mas também de um terror sagrado. Esquecido da restante família que transportava quedou-se pasmado e depois arrebatado por uma Presença que lhe dizia interiormente: não temas; Eu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim, a origem e o destino, a eterna alegria sem fim, a felicidade plena, a consistência do mundo universo. Todos os que criei os quero em Mim. Deixa fazer-te criança como Eu. Abandona-te a Mim, como quando eras bebé no colo de tua mãe. Consente que Eu te refaça. Em Mim encontrarás tudo de bom que pensas ter perdido para sempre. Eu Sou Deus dos vivos e não dos mortos porque em Mim todos vivem.

Depois, o Menino saltou para a cobertura do carro, atravessou incólume o vidro que se manteve intacto, como outrora tinha nascido de Sua Mãe, estendeu-lhe a mãozinha e perguntou-lhe: dás-me o teu coração, dás-me o teu eu? Correram-lhe então lágrimas pela face e com voz embargada soluçou: é Teu Senhor. O Menino arrancou-lhe então o coração e enxertou-o no Seu. Em seguida dividiu o Seu e colocou-o no peito dele. Foi então que experimentando pela primeira vez ser realmente quem era exclamou: “pela graça de Deus sou o que sou”, “eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim … Ele que me amou e Se entregou à morte por mim”.

De repente sentiu-se a abanar, era o filho mais novo que, sem cerimónias, repuxando-lhe por detrás as orelhas repetia esganiçado: Pai! Pai! Está verde, pai! Está verde!

Então pela primeira vez, desde há muito, o pai sorriu, e riu com vontade soltando gargalhadas sonoras que deixaram todos estupefactos. E bradou, viva o Menino Jesus!, “meu amparo e minha fortaleza”!, “Deus forte, Príncipe da Paz”!


Nuno Serras Pereira

24. 12. 2009