In DN - 23. 05. 2011
A maior parte das pessoas em Portugal está zangada. Os outros estão assustados ou só tristes. Estas atitudes, se parecem justificadas, são muito inconvenientes. Neste período, mais que nunca, é necessário espírito lúcido, cabeça fria, imaginação serena. Tudo isto é incompatível com medo, tristeza e sobretudo raiva. Não admira a indigência dos debates.
Razão central da fúria é o suposto ataque ao Estado social. Alegadamente os terríveis neoliberais querem usar a crise para desmantelar os direitos laborais, de saúde, protecção e outros benefícios. Autopromovidos defensores da justiça e solidariedade chegam a proclamar uma guerra santa contra a ameaça. Mas os seus argumentos são falsos, enganadores e perversos.
Primeiro são falsos. Ninguém pretende acabar com o Estado social, coisa aliás impossível. Todos os portugueses (como os europeus e agora os americanos) pretendem um sistema de saúde, segurança social e apoios anexos. O que está em causa é, não matar o sistema, mas fazer-lhe uma dieta. A finalidade dos ajustamentos é antes contribuir para a sustentabilidade e saúde do Estado social. Num regime de emagrecimento parece sempre passar-se fome, mas por vezes é indispensável.
A única forma de salvar os sistemas de protecção é torná-los financeiramente sustentáveis, defendendo sobretudo os mais pobres e acautelando as receitas que permitem um funcionamento saudável. Sem serem perfeitas, as medidas do "memorando de entendimento" com o FMI, BCE e Comissão são meios razoáveis de o conseguirem. Aliás, revelam reais preocupações de justiça por exemplo estendendo o subsídio de desemprego aos trabalhadores independentes (4.1.iii), medida que é incrível não ter sido tomada antes, vindo a ser proposta por estrangeiros.
Em segundo lugar as queixas são enganadoras. Porque aqueles que as fazem são precisamente os que criaram a actual situação insustentável. O presente desequilíbrio demonstra, antes de tudo, a enorme incompetência dos responsáveis e agentes que operaram o Estado social nas últimas décadas. A falência financeira não aconteceu por acaso ou pela crise externa, mas deve-se a anos de despesismo, inépcia e extravagância. Chega a ser espantoso que, não só ninguém surja a assumir as responsabilidades e pedir desculpa, mas que aqueles que deveriam ter vergonha apareçam como acusadores e se digam vítimas dos próprios erros.
Há muito tempo que os sistemas de apoio social, que deveriam ser estimados e protegidos por todos, foram usados para promessas irrealistas e projectos insustentáveis. Os responsáveis iam apresentando resultados excelentes, que ignoravam as leis básicas da aritmética. Após décadas de somas desacertadas, acusam-se agora as reformas indispensáveis de matar o Estado social.
É verdade que alguns grupos mais extremistas de defensores da solidariedade estão inocentes do descalabro, porque nunca foram eleitos para o gerir. Mas esses costumam apresentar "soluções à portuguesa", ainda mais tontas que as do licor Beirão e Paulo Futre. Se tivessem poder teriam desmantelado o sistema muito mais depressa que os que o dirigiram nos últimos tempos.
O alvoroço à volta de direitos tem um propósito sinistro. Trata-se de um velho truque bem conhecido, um pânico cultural, criando um susto para conseguir efeitos. A sua finalidade é apenas proteger as benesses dos aparelhos que criaram a actual situação. A começar pelo primeiro-ministro, que baseia a campanha de reeleição no medo da suposta demolição do Estado social, até aos funcionários que querem manter mecanismos, trava-se uma luta de morte, não à volta dos direitos sociais, mas dos privilégios burocráticos.
A maior parte das pessoas em Portugal está zangada. Mas há quem esteja a aproveitar-se dessa zanga e da falta de lucidez que ela gera. Podemos até deduzir uma regra geral que vale a pena começar a usar: quando alguém fala de neo-liberalismo, é bom proteger a carteira. A maioria dos que nos assustam com o supremo papão pretende apenas defender benesses, obrigando-nos a mais despesas.