sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ele sou eu - por Nuno Serras Pereira


Numa Comunidade não muito distante de Lisboa três Sacerdotes, dois Priores e um mísero franciscano, solenemente revestidos, numa antiga Igreja belíssima, recentemente restaurada, celebravam, com uma assembleia de cerca de cem pessoas, os Santos Mistérios. Todos se reuniam, como outrora diante do Presépio, na expectativa de uma regeneração, de um novo nascimento, “não do sangue nem da vontade da carne nem da vontade do homem, mas sim de Deus”. 

No banco da frente um casal, matrimoniado há treze anos, com cinco filhos gerados de sua união amorosa. A mais nova de três anos e meio é um mês mais velha do que o irmão adoptado aí apresentado ao Mergulho na Morte e Ressurreição do Deus humanado, Jesus Cristo, para n’ Ele ser feito participante da Vida Divina, Filho de Deus, membro do Corpo Místico de Cristo (a Sua Igreja), Templo vivo do Espírito Santo.

Antes da celebração o franciscano insignificante teve a dita de conhecer, de espaço, não já por fotografia mas pessoalmente, o novo filho e irmão daquela família e, espiritualmente falando, de todos nós. Num carrinho de bebé, gesticulava e entoava exclamações de alegria. Os irmãos, quatro raparigas (para os brasileiros: moças) e um rapaz, rodeavam-no, com uma alegria que surpreendentemente excedia a que estamos habituados a ver em crianças. Ele era claramente o centro das atenções, das brincadeiras, dos carinhos, do entusiasmo. O pai explicou-me que o recém-acolhido, o novo filho, era cego de nascença, sem possibilidade de cura. Não quis perguntar, por pudor, qual a outra deficiência, evidente, de que era portador, mas pareceu-me com o decorrer do tempo que seria autismo. Tudo isto se passou na sacristia revestida de belíssimos azulejos antigos que narram catequeticamente prodígios e milagres operados por Deus, no Antigo Testamento, em prefiguração dos ainda maiores do Novo, em favor do Seu povo e da humanidade: A travessia a pé enxuto do mar vermelho em que se salva o povo hebreu e perecem os perseguidores egípcios - antevisão do Baptismo; outros painéis representando a Arca da Aliança, sombra da Virgem Maria e da Santa Igreja que trazem em si a Cristo Jesus, Lei e Alimento da vida do mundo. Se Deus, como o conhecemos pela Fé, e ali estava representado, tudo pode no Seu Amor Omnipotente que mistério se esconde naquela criança, tão pobre e destituída a nossos olhos? Por que foi gerada? Para que nasceu? Naqueles momentos, considerando o magnífico Crucificado sofredor, carregado de nossas culpas, com o esplendor da Sua Glória assim adquirida, não pude sofrer dúvida de que o pequeno era um grande despertador ou desencadeador de amor, uma presença do Crucifixo nas nossas vidas.

Na celebração não pude deixar de reparar mais atentamente que o polarizador de amor embora envergasse roupa alva do pescoço até à cintura tinha uns calções vermelhos, cor de sangue, semelhantes ao enroupamento do Crucificado de Rafael, muito apropriados para indicar que o preço da inocência e da eternidade, significado no branco, tinha sido a Paixão Redentora do Redentor.

Já baptizado, ao colo do pai que o apresentava à assembleia litúrgica, não pude deixar de meditar sobre o amor de Deus comunicado àqueles pais que acolhiam assim no seio da sua família aquele filho tão limitado, incapaz, destituído de qualquer mérito, insciente da grandeza do momento, do que lhe era dado, da mudança transfiguradora nele operada, da magnificência do amor gratuito que lhe era concedido, apreendi num repente não que eu era ele mas que ele era eu. Daí o título gramaticalmente incorrecto deste pequeno texto: ele sou eu. Poderia descrever eu sou ele, mas não, ele tem prioridade, e revelou-me o que sou. Houve alturas em que me julguei tanto - delírios estapafúrdios, alucinações bizarras, manias de grandeza -, quando afinal não passo de uma enorme dívida insolvente. Obrigado Bernardo pelo bem imenso que me fizeste, pela consciência aguda de mim mesmo que me proporcionaste! Quem me dera ser tu, chegar um dia a ser como tu! E como os pais que te puseram nos seus corações e nas suas vidas apesar das dúvidas, dos medos, das hesitações, das dificuldades, dos sacrifícios. Abraçaram-te com o Amor com que Cristo cingiu a Cruz, aquela Cruz que O conduziu à Ressurreição.  


Aqueles Párocos, um dos quais Padrinho da criança, como o Bom Pastor, pela Sua Graça, muito foram também neste amor cristão e em muitos outros, que se um dia não vierem a público para edificação do género humano serão conhecidos no Céu.