1. As leituras deste Domingo (XXII – tempo comum – B) falam-nos dos preceitos ou mandamentos da Lei de Deus como um caminho de vida e felicidade – o que significa que antes de serem uma exigência são um dom que nos é concedido. Esta lei de Deus é a Sua Palavra (Logos) pela qual e para a qual fomos feitos, que foi enraizada nos nossos corações. De modo que viver segundo Ela, em virtude da força que Ela nos comunica, é cumprir ou realizar a nossa humanidade, tendo em vista a meta para a qual fomos criados, onde alcançaremos a plenitude, isto é, a Glória, a comunhão imediata com Deus, o Céu. S. Tiago adverte-nos que o amor de Deus se verifica no amor ao próximo, dando como exemplo o cuidar dos órfãos e das viúvas, e na salvaguarda da Saúde (= Salvação), evitando o contágio do mundo.
Importa aqui notar que a palavra mundo nas Sagradas Escrituras tem, fundamentalmente, dois significados que são divergentes entre si (como outros vocábulos, por exemplo, as águas). Por um lado, o mundo tem uma conotação positiva, uma vez que se refere à Criação de Deus e à justa autonomia relativa (ao Criador) das realidades temporais, como ensina S. Tomás. Por outro lado, porém, a palavra mundo, como acontece, por exemplo, em S. João significa uma mentalidade feita costume que se opõe aos desígnios de Deus, ao Seu amor salvífico. Ora S. Tiago, obviamente refere-se a esta mentalidade dominante que se fecha, que arrenega, adversa e combate a Deus e aos Seus.
De modo que o católico é chamado, como ensina o Concílio Vaticano II, a abrir-se ao mundo, no primeiro sentido, exercendo, não obstante, um rigoroso discernimento, ajuizando e acolhendo o que é bom, aperfeiçoando-o, purificando o que é insuficiente, rejeitando e combatendo decididamente o que é mal. Seria de todo indesculpável uma atitude ingénua, leviana, ou bonacheirona em matéria de tanta gravidade.
2. No Evangelho assistimos a uma polémica entre Jesus e os fariseus a propósito de uns rituais de purificação. Jesus Cristo admoesta os fariseus por lavarem as mãos, os copos e os pratos. Não o faz, no entanto, por condenar a higiene mas sim pela crença tradicionalista de que através daquelas abluções ficariam religiosamente e moralmente limpos. Aos mandamentos da Lei de Deus a tradição tinha acrescentado numerosos preceitos humanos que tinham, de algum modo, ganho uma importância desmedida ao ponto de não poucos se sentirem dispensados do cumprimento da Palavra de Deus, substituindo-a, ou pelo menos menorizando-a, por essas práticas desses rituais. Por isso, o Salvador insiste na purificação interior uma vez que é dos corações dos homens que saem todos os pecados e ignomínias.
A higiene, pelo contrário, pode ser vista como um modo de respeitar e cumprir o mandamento Não Matarás. Este preceito implica não só a proibição absoluta de matar directa e deliberadamente qualquer ser humano inocente mas também a promoção da vida de cada pessoa humana.
A campanha insistentíssima a que temos vindo a assistir a propósito da chamada “gripe A” pode ser entendida, caso seja verdade tudo aquilo que se tem dito sobre a mesma, como uma forma de cuidado pela vida própria e alheia. A higiene seria então uma expressão de justiça e de amor.
3. Embora, como ficou dito, a contundente intervenção do Senhor não tenha a ver directamente com a higiene corporal, talvez nos devamos perguntar se, apesar de tudo, não nos ensina alguma coisa sobre esta obsessão do nosso tempo com a vida meramente temporal e exterior. O facto de reconhecermos a sua importância não nos deveria, de feito, fazer descurar a interior e eterna – “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas, quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á” (Mt. 16, 25).
Como é possível que um mesmo estado, como o nosso, cisme tanto em despoluir os ambientes propícios à sobrevivência do vírus ou ao seu contágio e simultaneamente contribua tanto para, por todos os meios, sistematicamente envenenar espiritualmente os cidadãos? Como pode ser que quem se afana tanto na matança de muitas centenas de milhares de pessoas nascituras queira agora surgir como salva-vidas?
Nuno Serras Pereira