João César das Neves
In Diário de Notícias - 10. 08. 2009
Desde 1891, os Papas escreveram uma sequência de textos alinhando a visão cristã sobre os problemas político- -económicos. "Caridade na Verdade", a primeira do segundo século e a mais longa das encíclicas de doutrina social da Igreja, traz algo de novo. Tratando vasto leque de temas e tirando consequências aplicadas, Bento XVI põe a descoberto o fundamento teológico e doutrinal dessas respostas. Como num relógio transparente, vê-se o mecanismo que nos traz o resultado.
Todo o secular ensino é sintetizado numa dualidade fundamental de caridade e verdade: "A verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na 'economia' da caridade, mas esta por sua vez há--de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade" (2). "A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor (...) há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor" (30).
Daqui o Papa tira conclusões cortantes e directas que, sem atacar ninguém, exprimem a profundidade de convicções e a gravidade dos assuntos: "O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento" (18). "A reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano" (78).
Está Bento XVI a dizer que só com Deus é possível progresso equilibrado? Precisamente! E se há dúvidas sobre isso, basta olhar à volta. "Sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro" (11). "Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora" (9).
Apesar de polémicas, as ideias do Papa omitem os contornos de tacanhez ideológica corrente. Não existem condenações taxativas tão habituais nas discussões económicas. "O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar" (21). "A sociedade não tem de se proteger do mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente huma- nas" (36). "A globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela" (42). É bem visível a recusa da superficialidade comum: "A economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas (...) não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social" (36).
Talvez mais importante a encíclica não tem o pessimismo e amargura hoje dominantes. "A complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades" (21).
O Papa apresenta ideias arrojadas que levantaram críticas até de alguns correligionários. George Weigel, pensador católico liberal americano, disse na National Review de 7 de Julho desconhecer o significado de conceitos como "formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão" (39). Gratuidade e comunhão é aquilo que todos os empresários fazem com a sua família, amigos e causas preferidas, e que o Papa quer que estendam a todos. Bento XVI está a pensar na gratuidade e comunhão que realizam já muitas empresas católicas, e praticam milhares de paróquias e organismos sociais da Igreja por todo o mundo.
Para isso a economia de mercado tem apenas de regressar ao seu espírito original. Os críticos esquecem que nos primórdios do capitalismo, na Itália do século XII, as empresas tinham na contabilidade uma rubrica destinada aos pobres intitulada "do nosso bom Senhor Deus". Esquecem que a primeira multinacional, com enorme impacto no progresso económico, foi a rede de mosteiros que cobriu a Europa e depois o mundo. O Papa não é só o chefe da Igreja. É também o porta-voz da cultura que criou o desenvolvimento.