1. O bom P. João Maia, SJ, Deus lhe fale na alma, um grande escritor e crítico literário, visita de casa de meus pais, escreveu há largos anos, que as pessoas que lêem, nos dias de hoje, dispersam-se por uma quantidade infinda de escritores, saltitando num frenesim de autor em autor. Na sua opinião isso era uma perda de tempo que pouco adiantava a uma sólida cultura. Segundo ele, o que importava era conhecer bem as obras literárias fundamentais da humanidade, voltando repetidamente a elas, entre as quais incluía a Ilíada e a Odisseia, a Divina Comédia, as peças de Shakespeare, o D. Quixote de la Mancha, as obras de Dostoiévski e pouco mais. Dos portugueses, para além dos Lusíadas, do P. Manuel Bernardes e do P. António Vieira, admirava muito particularmente Camilo Castelo Branco. É certo que considerava Eça de Queirós um talento, porém, para Camilo reservava o epíteto de génio. Estimava-o como o maior escritor de síntese da língua portuguesa, com uma riqueza de vocabulário, maior que a de Aquilino (deste dava a entender que quem leu um livro seu, leu praticamente todos, devido à sua falta de inventividade, no que às histórias diz respeito), colhida ao longo de toda a nossa história e com uma criatividade exuberante e fecundíssima que, não obstante a insistência ou mesmo repetição de alguns temas, gerava personagens originais, situações imprevistas, circunstâncias variegadas, episódios únicos, surpresas contínuas.
É verdade que quem começa a ler Camilo depara-se com algumas dificuldades de monta, como o fez notar há dias um cronista bem conhecido.
Uma delas é o vocabulário. A cada passo tropeçamos em palavras que nunca vimos nem ouvimos e que dificilmente se encontram na maioria dos dicionários disponíveis. Outra é a construção gramatical e a frase enfeitada, retorcida, ornada e enrolada de tal maneira que chega a provocar irritação. Depois também se encontram exclamações, paixões, reacções, expansões, modos de dizer que se estranham nos dias de hoje. Estas são, julgo eu, as principais penas que pode padecer quem se abalançar a ler as suas obras. No entanto, estou em que em sofrê-las se alcançam grandes ganhanças e vantagens.
Nas suas novelas e romances topamos com o homem tal como é no seu melhor e no seu pior. Alguns dos seus textos gritam pecados, blasfémias e crimes horrendos, ignominiosos, infames, desenrolando diante de nós as paixões mais baixas e vis; outros, todavia, comunicam unção religiosa, prodigalizam-se em mostrar, “ao vivo”, as grandes virtudes quer teologais quer morais, apresentam-nos a redenção operante. Depois, tanto nos põe a rir à gargalhada como nos comove até às lágrimas. Num momento nos desassossega noutro enche-nos de consolação. A sua narrativa por vezes é tranquila e amena mas logo se torna vertiginosa e empolgante
Antes de adiantar algo mais, por aqui me interrompo para sugerir uma ou outra coisa a fim de que o leitor não desanime perante os obstáculos.
2. a) Quanto ao vocabulário: Passar adiante das palavras que não entende porque de qualquer modo compreenderá o essencial das narrações. Aos editores da obra camiliana recomendaria que publicassem as suas obras com notas de rodapé ou com um vocabulário nas últimas páginas que desse os significados dos termos mais dificultosos. Em alternativa poder-se-ia publicar um dicionário do vocabulário camiliano. Um intelectual como, por exemplo, Vasco Graça Moura faria isso com a maior das facilidades.
b) Quer quanto ao vocabulário como quanto ao estilo algumas obras são mais simples do que outras. Quem, por exemplo, ler O Regicida, A Filha do Regicida, O Senhor dos Paços de Ninães, o Marquês de Pombal, a Luta de Gigantes, não encontrará dificuldades de maior. Convirá, no entanto, que tenha algumas prevenções pois aquilo que o autor apresenta como histórico e verídico, com alguma frequência são fantasias da sua fertilíssima imaginação ou, se quisermos, uma mistura de factos com invenções. Esta é aliás uma característica constante na sua obra. Pega em personagens e eventos verdadeiros e depois vai modelando-os ao sabor da sua inventividade, a qual, não obstante, não se pode dizer, quanto a mim, inteiramente ficcional já que respeita a verdade da realidade e condição humanas.
c) À medida que se vai relendo e tornando a reler a sua vasta obra desvanece-se aquela primeira impressão de estranheza e saboreia-se cada vez mais o vernáculo e o castiço do seu escrever. Depois vem a vontade, pelo menos comigo assim sucedeu, de anotar as palavras difíceis e consultar variadíssimos dicionários para conhecer os seus significados. Por outro lado, aquelas frases ou períodos que nas primeiras abordagens nos pareciam alambicados, intrincados, afectados, bizarros, revelam-se como uma prosa poética destilando uma beleza extraordinária. Com surpresa, verificamos no conhecimento que vamos tendo das pessoas e dos seus problemas que aquilo que nas suas obras tínhamos como exageros melodramáticos são afinal quadros fiéis de tantas situações que ainda hoje sucedem.
Se alguém pensa que reler Camilo assiduamente seja coisa monótona desengane-se, pois não só sempre encontrará coisas novas como lhe parecerão diferentes as novelas que compulsa.
3. Ler Camilo é imergir na portugalidade do povo português. É embeber-se da sua alma. É expandir o pensamento, experimentar ressonâncias emotivas e afectivas novas, comungar com a nossa história e com os seus mais ilustres poetas, prosadores, historiadores, mestres de espiritualidade e pensadores (isto não significa que se esteja de acordo com o seu modo de pensar ou de interpretar). Se, como é uso dizer-se, quem aprende uma nova língua ganha uma nova alma, então quem lê Camilo engrandece a sua, em virtude da riqueza que a sua linguagem transporta.
Se fora estrangeiro Camilo Castelo Branco seria reconhecido como um dos grandes da literatura. O seu Amor de Perdição, como diz Agustina, ombreia com o Werther de Goethe. Mas estou persuadido que este último autor será incapaz de elaborar o Amor de Salvação que Camilo veio a escrever uns tempos depois.
Espero que Portugal não desista de Camilo como se ele estivesse fatalmente destinado a desaparecer.
Livros como O Bem e o Mal, As Três Irmãs, O Santo da Montanha, a Bruxa do Monte Córdova, O Demónio do Ouro, As Novelas do Minho, para dar alguns exemplos poderão fazer bem a muita gente.
4. Em relação aos autores portugueses, como aliás no respeitante aos estrangeiros, tenho aquele defeito que o P. João Maia apontava de me dispersar por muitos, mas apesar de tudo não esqueci a lição. Por isso os escritores portugueses que leio, releio e continuo a reler são o Vieira, o Bernardes, o Camilo e o Eça.
Nuno Serras Pereira