quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Exercícios esquisitos


1. Depois destas “procissões” profanas a que chamam corsos ou cortejos carnavalescos em que formosas e supostas donzelas se saracoteiam, e damas buliçosas, com trejeitos de sirigaitas, se bamboleiam impudicamente quase desnudas, durante horas a fio, fustigadas pela gélida chuva invernosa, para gáudio dos devotos libidinosos e dos sectários luxuriosos apresentou-se diante de nós, austera e modesta, a Quarta-feira de Cinzas, escancarando as portas à Quaresma como preparação para a Páscoa. Todos aqueles que viram com naturalidade os sacrifícios feitos nos dias anteriores, em nome do dinheiro e da folia desbragada são tomados de grande espanto e indignação com o convite que Deus nos faz, através da Sua Igreja, para nos exercitarmos naqueles três pilares fundamentais da vida cristã denominados oração, jejum e esmola. Coisa rara e esquisita cuja imagem mental, que se nos imprime na imaginação, parece difundir um insuportável cheiro a bafio que provoca uma repulsa imediata e uma arquejante procura de ar puro. Para quê desenterrar dos tenebrosos túmulos da idade das trevas excentricidades mais que ultrapassadas que não se coadunam com estes tempos iluminados e só servem para alienar as pessoas?! Servirão?

2. a) A oração pode considerar-se, num certo sentido, o primeiro mandamento ou, pelo menos, a condição da sua possibilidade. De facto a oração é aquela atitude de receptividade ou de escuta que possibilita a resposta Àquele que nos interpelou. Deus antes de ser uma descoberta nossa é Alguém que Se nos revela, Se nos mostra, Se nos comunica. É porque o escutámos, porque O conhecemos e acolhemos que Lhe podemos responder com o amor que Ele nos pediu, depois de no-lo ter dado. O dom de Deus ou o Dom que Deus é precede sempre a iniciativa e a resposta humanas. A oração consiste num diálogo ou colóquio com Deus. Como Aquele com quem se fala é maior do que nós – a Sabedoria infinita, o Omnisciente, a Omnipotência de Amor -, nessa conversa importa mais ouvir do que falar. À medida que escutamos Deus vamos conhecendo-O melhor e, por isso, amando-O mais. Ora o Senhor fala-nos de um modo eminente na Sagrada Escritura, isto é, através da Sua Palavra, o Seu Verbo, que vem até nós através e por dentro das palavras humanas da Bíblia que testemunham a Revelação/Comunicação do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor. Esta Palavra purifica-nos, renova-nos, aperfeiçoa-nos, eleva-nos. Esta Palavra, o Logos de Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tomou carne, por obra do Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, fez-Se um de nós, em tudo igual, excepto no pecado, sem deixar de permanecer junto do Pai. A natureza Divina e humana – corpo e alma -, uniram-se, sem confusão nem separação, na única Pessoa do Deus Filho. Assim é Deus verdadeiro e homem verdadeiro. De tal modo que aquilo que se predica do homem predica-se de Deus e aquilo que se predica de Deus predica-se do homem. Por isso podemos dizer que Deus nasceu de uma Virgem, que Se amamentou a seus seios, que andou de fraldas, que comeu, chorou, suou sangue, morreu na Cruz. Em virtude da Sua encarnação, do fazer-Se homem, Ele na Sua humanidade visível e palpável é a presença de Deus invisível, o rosto do Pai, o único Caminho que a Ele conduz, pois ninguém pode ir ao Pai senão por Ele, no Espírito Santo. Santa Teresa de Ávila, depois de conhecer a vida e os escritos de S. Francisco de Assis e de se deixar orientar pelo franciscano S. Pedro de Alcântara, entendeu isto muito bem, como o confessa quer na sua autobiografia quer nas Moradas. Por isso virá a definir a oração como um entreter-se de amizade, estando muitas vezes a sós, com Jesus Cristo que nós sabemos que nos ama. Jesus Cristo, como revela o livro do Apocalipse é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim, Aquele em quem e por Quem tudo foi criado, como reza o prólogo de São João, e redimido.

A oração é então uma relação de Amor com Aquele que não é só a nossa origem, como o nosso continuo construtor, nosso reparador ou redentor e o nosso destino, isto é o fim para que fomos feitos. Deste modo a oração é também a possibilidade de encontro com o nosso verdadeiro eu, aquele que intuímos ser e que queremos ser, mas que só por nós não conseguimos ser, porque somos mais do que nós.

b) O jejum, como diziam graves autores antigos, é a oração do corpo. De facto, a pessoa humana é uma uni-totalidade dual de alma e corpo. Não é um corpo habitado por uma alma, à maneira de um cavaleiro que monta uma besta, nem uma alma prisioneira de um corpo, mas uma unidade substancial de corpo e alma. Pode-se dizer que é um espírito encarnado ou um corpo animado, sendo que a alma espiritual e imortal, imediatamente criada por Deus, é a forma do corpo. O ser humano não tem um corpo mas é um corpo, embora não se reduza a ele. Isto é, o corpo faz parte da sua identidade, é a visibilidade da pessoa, o seu sacramento, o modo como comunica, aprende e se doa. O dualismo platónico, cartesiano, reencarnacionista, gnóstico ou da nova era são alheios à Criação e ao realismo do Cristianismo.

Quem jejua “liberta” a alma das suas funções inferiores fortalecendo-a nas potências superiores para que estas contemplem melhor a presença de Deus e se disponham para conhecer e levar à vida o Seu amor que Se comunica. A alma sentindo o corpo desfalecer à míngua de forças percebe mais agudamente que é Ele a fonte do seu ser e que vive na Sua radical dependência. Assim como o corpo não subsiste sem os alimentos que Deus criou, assim a alma não pode subsistir sem o amparo da Sua Graça. Deste modo o jejum torna-se uma forma de adoração, de consciência da dependência radical de Deus. O jejum lembra-nos que somos mendigos do Ser, tornando-nos por isso humildes.

Esta prática ascética é ainda eminentemente purificadora. O animal é incapaz de jejuar como o é, chegado o tempo do cio, de não copular. O instinto de conservação e de propagação são nele forças invencíveis. Pelo contrário, a pessoa humana pode, por amor, renunciar periodicamente ao alimento e até definitivamente ao exercício genital da sexualidade. No animal não há um intervalo entre o estímulo e a resposta. Pelo contrário, o homem é capaz de introduzir um “entre”, um espaço deliberativo, para decidir se deixa ou não o apetite satisfazer-se com estímulo que lhe é apresentado. O instinto de conservação é superior ao da propagação. Por outro lado um corpo com fome não se sente disposto para os deleites da carne. Acresce que quem exerce domínio sobre o alimento é senhor dos demais apetites humanos. Daí que quem jejua, ou se habituou a jejuar, é mais senhor de si e, por isso, capaz de verdadeira auto-determinação, isto é, de liberdade, uma vez que não é dominado pelas paixões e apetites desordenados. Se é verdade que ninguém pode ser casto sem a Graça de Deus também o é de que, geralmente falando, essa Graça só é concedida aos tiveram a coragem do jejum. Numa sociedade como a nossa de fartura no comer e no beber não é muito que a sexualidade ande desbragada.

Quem ora jejuando aprende que essa abstinência de alimentos é pedida em ordem ao verdadeiro jejum, a saber, o do pecado. Por isso vai percebendo que tem de pôr de parte a maledicência, a calúnia, o impudor, a impureza, a injustiça, a violência, a soberba, a cobiça, o egoísmo, a concupiscência desordenada.

Quem alguma vez experimentou jejuar rigorosamente lembra-se inevitavelmente de quem passa fome. Não só teve que vencer em duro combate as tentações da comida ao alcance da mão, da atracção dos bolos nas montras, mas sentiu o frio, a falta de calor natural do organismo, a fraqueza, as dores de cabeça, os urros do estômago gritando por nutrição, o desfalecimento, a perda de vivacidade no olhar, de ânimo na voz… Todo o seu corpo sentiu o clamor aflito, a injustiça inominável das fome de África, da Ásia e de todos os recantos do mundo onde por indiferença ou malícia letal dos países ricos não chega o alimento que existe e sobra para todos. Quem jejua é solidário com os pobres à maneira de um S. Francisco de Assis, de um S. Pedro Claver, de uma Bem-aventurada Teresa de Calcutá.

Este que agora assim jejua dos alimentos corporais foi aquele que afastado da casa do Pai passou a mais negra fome da ausência de Deus e, por isso, percebe que de todas as misérias a mais miserável é a de não conhecer nem amar Jesus Cristo. Ajunta, pois, o jejum à oração pelos seus irmãos, acorrentados pelas cadeias do pecado, uma vez que o Senhor ensinou que existem determinados demónios que não se expulsam senão assim.

c) A esmola é a consequência natural da oração e do jejum. Os cristãos da Igreja primitiva abstinham-se de alimentos para os repartirem com aqueles que os não tinham. A esmola significa o reconhecimento da par dignidade do outro, criado pelo mesmo Deus, redimido pelo mesmo Jesus Cristo. Esmolar é amar os outros como Jesus nos amou. Não é a sujeição a uma obrigação exterior mas a expressão natural (sobrenatural) da nova vida em Cristo. Jesus é a raiz e a cepa da videira que nós somos, isto é, o Seu amor, ou o Amor que Ele é une-nos, de tal modo a Si que se torna a fonte, a seiva vital, do nosso eu. Como dizia S. Paulo, já não sou eu que vivo mas é Cristo que vive em mim. Fomos enxertados no Seu Eu e nesse Eu encontramos o “nós” composto por toda a multidão, formada por cada eu dos que aceitam agregar-se a Ele, correspondendo ao Seu amor. É um “Eu-nós” aberto universalmente para que cada qual possa encontrar a plenitude para que foi feito. Esmolar é não só partilhar o que se tem mas também o que se é, reconhecendo e tratando o outro como irmão. A esmola luta pela justiça social mas ultrapassa-a criando vínculos de amizade e de amor gratuito. Não só procura o comer para quem tem fome, a roupa para quem necessita de vestuário, a saúde para quem está enfermo, mas também consola os tristes, ensina os ignorantes, corrige os que erram, chama à conversão, dá a vida para que se possam salvar.

3. No título deste texto chamo esquisitos a estes exercícios de amor. De facto, o mundo estranha-os e acha-os exóticos se não mesmo aberrantes. O que o mundo esquece é que esquisito também significa requintado, delicioso, refinado, precioso. Experimente pois o mundo trocar os seus prazeres efémeros por estes gozos espirituais e verá que não se arrepende. À honra de Cristo. Ámen.


Nuno Serras Pereira

18. 02. 2010