In DN
Os horrores da perseguição republicana à Igreja e subsequente guerra civil nos anos 1930 são ambiente apropriado para testar valores em condições extremas. O filme There be Dragons (Encontrarás Dragões, 2011) fá-lo através de dois amigos de infância que seguem caminhos opostos. Na abominação, destaca-se a firme aposta de um deles numa linha de amor, compreensão e misericórdia, até pelo intolerável. O filme brilha pelo retrato de S. Josemaría Escrivá e da sua insólita decisão de seguir a pessoa de Cristo num clima tão adverso. E pelos frutos que daí saem: "Quando perdoamos libertamos sempre alguém: nós próprios."
O belíssimo e profundo enredo valeria por si, com qualquer protagonista. Mas deve sublinhar-se a coragem do autor/realizador em escolher este em particular. A Opus Dei está bem estabelecida no imaginário contemporâneo, mas como encarnação extrema do clericalismo mais sinistro. Joffé não entra em apologéticas. Limita-se a retratar-lhe as origens, dando pistas preciosas para a compreensão da sua natureza. Esta "obra de Deus" nasceu no calvário.
A questão religiosa da nossa Primeira República foi fenómeno paralelo, muito menos cruel. Esse é o tema de O Sol Bailou ao Meio-Dia. A Criação de Fátima, de Luís Filipe Torgal (Tinta da China, 2011), versão revista de uma tese já editada em 2002. O volume trata a história dos primórdios do culto em Fátima e das polémicas que o rodearam. Apesar de hostil, é objectivo, rigoroso e fundamentado e traça um quadro sério e sólido dessa realidade.
O livro pretende demonstrar duas teses que não consegue. Primeiro que "a exposição dos ditos acontecimentos, ocorridos entre Maio e Outubro de 1917, foi desde então sucessivamente reformulada pelos inquiridores e pelos cronistas católicos. (...) A nova e mais elaborada história de Fátima que hoje conhecemos (...) foi, por conseguinte, construída a posteriori pelos historiógrafos católicos e sustentada pela hierarquia da Igreja" (p. 20-21). Leitura atenta do texto, aliás fundamentado em documentos publicados em cuidadosa edição crítica do Santuário, não permite vislumbrar tal manipulação.
A segunda tese é que "foi a Igreja (e/ou certos sectores a ela ligados) que impôs Fátima" (p.20), aproveitando-a para os seus propósitos. Segundo o autor, a Igreja "evoluiu de uma atitude de expectativa prudente (entre Julho e Setembro de 1917), para uma postura de promoção comedida (desde Outubro de 1917) e, mais tarde (sobretudo a partir de 1922), para a apologia evidente das aparições" (p. 21). Seria razoável esperar outra coisa? Era lógica ou até possível a "absoluta imparcialidade" (p. 95) que o livro parece preferir? Não foi aquela evolução que o cardeal Cerejeira retratou ao dizer "foi Fátima que se impôs à Igreja"?
Apesar disso e alguns erros pontuais, o livro fornece um relato rigoroso e informativo. O que mais ressalta é a fragilidade dos argumentos dos críticos de Fátima. Os anticlericais, sem o menor interesse pelos factos, limitam-se a opor-se por razões ideológicas: o que quer que aconteça, aparições e milagres são impossíveis. O mais divertido é chamarem a si mesmos "livre-pensadores".
Outro aspecto curioso que o livro manifesta é o desprezo que os intelectuais têm pelo povo, em geral, e as mulheres em particular. Afirmando-se democratas e liberais, acusam sempre as massas populares de boçais e supersticiosas, simplesmente por não seguirem os seus dogmas positivistas que têm de ser verdadeiros.
Em 2003 o americano Dan Brown quis envolver a Opus Dei, protagonista do filme de Joffé, numa história tonta de superstição, crime e morte n'O Código da Vinci. Há mais de 90 anos que muitos pretenderam fazer o mesmo com Fátima. É sem dúvida uma questão de dragões interiores.
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