"Não percebo como é que consegues ser assim!" "Assim como?", respondeu André enquanto pousava o tabuleiro do almoço diante do Pedro, na mesa da cantina da empresa.
"És incrível! Tivestes uns bons cinco minutos a conversar com a velha da caixa como se nada estivesse a acontecer."
"Que mal tem conversar com a dona Adélia? O neto tem estado doente e ela fica contente por falar dele. Felizmente já está melhor. De que é que te queixas?"
"Esta empresa está a ir por água abaixo e tu tens cabeça para o neto da velha! Estamos a ser chamados, um a um, à administração para saber o que nos espera. Se nos reduzem o ordenado ficamos felizes, porque ainda o temos. Isto deixa-me maluco. E fico mais furioso ao ver que põem ali o Presépio, como se tudo estivesse bem. Bandidos!"
Os dois amigos comeram a sopa em silêncio alguns minutos, até que André disse: "Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto!"
"O teu pai? Tás maluco. A empresa foi comprada por um fundo alemão que não tem nada a ver com a tua família. Não gozes!"
"Não estás a perceber. Não me estou a referir à empresa, nem falo do meu falecido pai. Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias 'Paí Nosso', que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência."
"Pode ser, mas isso não te livra de ires para a rua, porque a administração não deve rezar o Pai Nosso."
"Provavelmente, mas se isso acontecer, a vontade de Deus permanece e a minha confiança n'Ele não me deixará ter um segundo de medo ou zanga. Confesso que nem sempre tenho esta atitude e frequentemente me irrito e apavoro. Mas isso deve magoar muito a Nosso Senhor, porque é duvidar da Sua Providência e do carinho com que nos acompanha a cada momento."
Depois de um silêncio, continuou: "Sabes, esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus, que quer dar-nos o melhor mesmo assim. E desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas, que não dependem do que me acontecer. 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8, 28)."
"Quer dizer que se fores para a rua, e os teus filhos tiverem fome, ficas contente?"
"Se for para a rua perguntarei que aventura maravilhosa o Senhor prepara para mim. Se perder o que tenho direi 'Saí nu do ventre da minha mãe e nu a ele voltarei. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor! (...) Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?' (Job 1, 21; 2, 10). Aliás é bastante provável que venham aí tempos bem difíceis. Mas se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco. 'Estou convencido de que nem a morte nem a vida,nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso' (Rm 8, 38-39). No fim ressuscitarei!"
"Devias dizer isso ao Matias. Ele, que se diz cristão, é o mais assustado e furioso de todos nós."
"Já falei muito com o Matias. Mas nunca lhe disse isto assim. Vou tentar. Mas quem me preocupa é o Ernesto."
"O Ernesto? Esse está óptimo. Vai ser promovido e anda na maior."
"Por isso mesmo. O pobre Ernesto só tem a carreira. Vive para o emprego e só depende disso. Já destruiu dois casamentos e está cada vez mais só. É o mais miserável de todos nós. Mas não sei como abordá-lo."
"O tipo é espantoso", riu Pedro. "Imagina que ontem, quando eu protestava por terem posto aquele Presépio hipócrita, respondeu que se deveria ter aproveitado para colocar lá publicidade. Imagina! Publicidade no Presépio! O tipo é incrível!"
"A sério? Ele disse isso? Ora aí está uma oportunidade para eu lhe falar."
"O quê! Vais falar-lhe da publicidade no Presépio?"
"Não, vou falar-lhe do burro do Presépio."