terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Os não-existentes

Hoje foi divulgada uma Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal intitulada Crise, Discernimento e Compromisso, que ignora totalmente, como se não importassem, ou melhor, não existissem, as crianças nascituras. Pelos vistos, mais de sessenta mil assassinos legais não comovem os Senhores Bispos. Dissertam sobre Portugal e a Doutrina Social da Igreja sem a mínima referência a estes nossos irmãos, totalmente inocentes, com quem Cristo Se identificou (Cf, Mt. 25, 31-46) e que são espostejados, triturados, esquartejados com subsídios do estado saqueados às famílias.

É verdade que a Nota afirma:

A dignidade – e dignificação prática – de cada pessoa humana é o princípio e também o fim duma sociedade propriamente dita. “Sociedade”, isto é, comunhão de destino e companhia entre todos, que só em conjunto se podem realizar, sem dispensar ou ultrapassar ninguém e com particular atenção aos mais fracos e vulneráveis. É em função deles – como de todos – e da sua irredutível dignidade que a sociedade se constitui e aperfeiçoa, assim mesmo se qualificando.

Na presente conjuntura nacional, é em torno deste primeiro princípio que se devem definir e avaliar as políticas concretas, por mais exigentes que sejam. Legisladores e governantes, empresários e gestores, famílias e cidadãos, todos devemos ter em primeiríssima conta a dignidade das pessoas que somos e os outros igualmente são, sobretudo os que vêem tal dignidade contrariada na prática ou obviada no futuro. Insistamos: A qualidade das decisões e das políticas afere-se prioritariamente com este critério.”

E também não há dúvida nenhuma que a pessoa o é desde a sua concepção. Mas todos sabemos que nos dias de hoje falar de pessoa (humana, porque também as há Angélicas e Divinas), sem mais, ou seja, sem pôr preto no branco que fala dela em todas as etapas da sua existência, desde o momento da concepção até ao seu fim natural, é percebido como referência somente às já nascidas. E esta impressão é confirmada pelo restante teor da Nota (a qual nunca fala dos nascituros) que gira toda ela à volta dos já nascidos sintetizando a urgência actual de acção nestes termos:

“ … também nos deve mobilizar para responder prioritariamente àquilo que de modo algum pode esperar. É este o caso fundamental do trabalho e do emprego, base indispensável de sobrevivência e dignificação humana; a sua garantia é urgente, mesmo exigindo mais criatividade e solidariedade prática para chegar a todos.”

A multidão dos “invisíveis”, dos não-pessoa, dos que positivamente não existem, mas que são degolados, estraçalhados, aniquilados e depois arrojados ao lixo ou aproveitados para sabores de bebidas, para cosméticos, e outras infâmias nefandas não constituem uma emergência para os nossos Bispos. Ignoram sistemática e olimpicamente, com um desprezo que raia a impiedade, o Magistério de João Paulo II e de Bento XVI com as suas insistentes referências a esta tragédia e às implicações sociais da mesma. Chegam ao desplante de citar a Caritas in Veritate, Encíclica que torna bem claro, na continuidade da Evangelium vitae, que é impossível uma Doutrina Social da Igreja à margem da sexualidade e da vida nascente.

A Sagrada Escritura aponta como um dos mais graves pecados dos gentios a falta de piedade para com o próximo. Giuliano Ferrara, um ateu, director do jornal Il Foglio, mostra uma sensibilidade, ou uma piedade, muito mais apurada que os nossos Bispos quando escreveu, a propósito de um abortamento que deu brado em Itália:

La scomparsa della pietà è una notizia che sovrasta la crisi dell’euro e qualsiasi altra notizia. Una ragazza di sedici anni ha abortito, cioè si è liberata annichilendola di una creatura umana concepita nel suo grembo, dopo e a causa di una campagna pedagogica scatenata con le migliori intenzioni dai suoi genitori a nome di un valore sociale sordo a ogni remora di tipo etico ... ”

“O desaparecimento da piedade é uma notícia que se sobrepõe à crise do euro e a qualquer outra notícia. Uma rapariga de dezasseis anos abortou, isto é, libertou-se aniquilando uma criatura humana concebida no seu seio, depois e por causa de uma campanha desencadeada com as melhores das intenções dos seus pais em nome de um valor social surdo a qualquer rémora de tipo ético … ”

O texto do Conselho Permanente da Conferência Episcopal tem claramente, e é uma mais-valia, a mão do Bispo do Porto, D. Manuel Clemente – percebe-se isso pelo estilo, pela clareza e profundidade, bem como por aquelas frases brilhantes que sintetizam magnificamente o essencial e que nos atiram para a acção/concretização.

Não sei compreender e muito menos explicar esta relutância do Senhor D. Manuel Clemente, por quem aliás nutro grande estima e a quem muito devo, em abordar esta defesa da pessoa humana nas suas fases iniciais, antes do nascimento. Tem sido nele uma constante, embora com algumas excepções. Por exemplo, na RR (rádio renascença), no seu programa semanal, pregou sobre a Exortação Apostólica do Papa Bento XVI durante uma série de programas vindo a parar, exactamente no número anterior àquele em que o Santo Padre escrevia sobre a Coerência Eucarística, a propósito dos políticos auto-intitulados católicos mas que são abortistas ou abortófilos. Algo de semelhante sucedeu quando dedicou diversos programas à Caritas in veritate. Ignorou por completo grande parte dos seus fundamentos, a saber, a abertura à vida na sexualidade e a defesa da pessoa nascente, em que o Papa Bento XVI a assentou. Tudo isto me entristece, particularmente vindo da sua parte, pois nele depositava grandíssimas esperanças. Aliás elas estão bem patentes no texto que escrevi intitulado “Eu vi uma Sentinela Vigilante” que a ele se referia.

A Nota do Conselho Permanente da Conferência Episcopal provocou em mim uma reacção contraditória. Por um lado, a satisfação de ver um texto bem redigido, ao alcance de muita gente, com frases lapidares a que se adere de coração e de inteligência. Por outro lado, a grave lacuna, que enquanto a mim minou a excelência da Nota, a ponto de a tornar como que contraproducente, sobre os mais oprimidos, espezinhados, vulneráveis e inocentes, os nossos irmãos as crianças nascentes. Por isso o que comecei a ler com alegria e contentamento foi transformando-se numa angústia funda que procurou em vão encontrar algum conforto em lágrimas.


Nuno Serras Pereira

13. 12. 2011