Ficamos sempre 
impressionados ao considerar a incapacidade de sociedades antigas em 
antecipar o que mais as afectaria. Parece incrível que pessoas 
inteligentes se tenham deixado cair em horrores para nós tão evidentes. 
Pensando assim vamos, como eles, dirigindo-nos inconscientemente para as
 próximas catástrofes.
Não é preciso recuar à queda do império 
romano ou ao fim de Constantinopla. Um dos mistérios da história é a 
inépcia da brilhante sociedade iluminista em precaver os horrores 
seguintes, com a sangrenta Revolução Francesa e o cruel império 
napoleónico. Porque foram tão cegos alguns dos mais profundos espíritos 
da nossa civilização? Também é sumamente incongruente que a sofisticada 
Alemanha do início do século XX falhasse no pressentimento da 
barbaridade nazi que germinava no seu seio. Em 1977, Ingmar Bergman usou
 a comparação de O Ovo da Serpente para manifestar este espanto. Como 
não viram, através da casca translúcida, o réptil em formação?
A 
conclusão desta meditação não deve ser que algo falhava nessa elevação 
intelectual ou que os movimentos da História escapam até aos génios. 
Isso deve motivar-nos a procurar as múltiplas sementes de abominação que
 brotam hoje, como sempre. Que tendências nos podem conduzir ao horror? 
As histórias revelam que tais venenos raramente estão entre aqueles que a
 sociedade identifica.
Dizer que a nossa época se encaminha para o
 cataclismo não é propriamente grande novidade. Não temos a complacência
 do Trianon ou Weimar. Desde a bomba atómica que a humanidade encara a 
extinção, e a recente crise financeira levou ao paroxismo a sensação de 
fim de regime. Mas também aqui as nossas preocupações escondem-nos a 
verdadeira ameaça. Não é a falência do Lehman Brothers ou o programa 
nuclear iraniano que nos arruinarão. O mal não está nas exigências de 
Angela Merkel ou na concorrência com a China. Apesar de graves, esses 
são detalhes laterais como o Caso do Colar de 1785. A serpente está 
noutro ovo, que teimamos em não olhar à transparência.
Aquilo que 
os nossos descendentes não conseguirão compreender é a nossa 
inacreditável ligeireza e inoperância perante factos devastadores, que 
subjazem a tudo o mais: "No primeiro semestre deste ano, nasceram menos 
quatro mil bebés do que no mesmo período de 2011. Se a tendência de 
decréscimo se mantiver, 2012 poderá ficar para a história como o ano em 
que os nascimentos não chegaram aos 90 mil, algo que nunca aconteceu 
desde que há registos" (DN, 5/Julho). Sem portugueses não há economia, 
consumo, emprego, ensino, justiça, país. Com a atenção centrada no 
défice, desemprego, ou pior, nas tricas do momento, Portugal resvala 
para a decadência perante a apatia generalizada.
Somos um dos 
países do mundo com menor taxa de fertilidade, muito inferior à dos 
nossos parceiros, aliás também entre os mais estéreis. Essas sociedades 
desenvolvidas há muito identificaram o problema e criaram políticas 
resolutas para o enfrentar, com sucessos muito díspares. Em Portugal a 
medida recente neste campo é o subsidiação do aborto, que aliás é a 
única área da Saúde onde os cortes financeiros não têm efeito.
Pior,
 neste tema, ao contrário dos casos históricos, estamos em violação 
aberta dos mais elementares princípios da civilização. Luís XVI ou Von 
Hindenburg podiam dizer que a sua boçalidade seguia os cânones 
recebidos. Nós, ao apregoarmos o aborto como direito, contrariamos 
séculos de civilização. Que a atrocidade de arrancar o embrião do seio 
da sua mãe, prática recusada por toda as sociedades cultas, seja por nós
 promovida pelo Estado será incompreensível aos nossos poucos 
descendentes.
Nos raros casos em que o tema surge nas conversas, 
atribui-se a redução da natalidade à crise e ao desemprego, sem notar a 
incongruência de serem os pobres os mais férteis. Insiste-se na muralha 
de falácias que tenta esconder a multidão de pequenos cadáveres. Após 
novo gole de café, o debate regressa às intrigas da semana. É perfeito o
 paralelo com Versalhes em 1789. Porque o ovo de crocodilo é opaco.
 
