quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Incompreensível Misericórdia do Altíssimo - Nuno Serras Pereira

O Bom Senhor quis criar-me com a cooperação de uns pais que ele tinha preparado com o dom da Fé e da verdadeira devoção para que desde o seio materno eu pudesse ser evangelizado e catequizado pelo amor, pela oração do terço do Rosário que eles oravam, por Jesus na Eucaristia de que minha Mãe se nutria, e pelos efeitos da confissão sacramental que a mesma recebia. Como deveria eu então exultar de alegria, à semelhança de S. João Baptista, ainda que, aparentemente, sem a consciência, pelo menos explícita, do que acontecia. De facto, todas aquelas Graças que inundavam a minha primeira morada, o meu ambiente vital/pessoal não poderiam deixar, de um modo misterioso, só de Deus conhecido, de influir, de algum modo, sobre mim. De modo que não só poderei dizer, com todos, que na biologia da minha geração estava inscrita a genealogia da pessoa que sou (cf João Paulo II), mas que fui objecto de uma predilecção, de umas Graças que não foram concedidas universalmente. Como se isto não fora pouco, em boa parte da minha infância recebi ainda as influências benignas de minha avó materna, e de minha tia, a qual me preparou para a 1ª Comunhão, que eram também profundamente cristãs. Pouco depois entrei para o colégio de S. João de Brito, dos Padres jesuítas, onde permaneci durante 10 anos, recebendo, naquele tempo, uma formação espiritual excelente. 

Meus pais eram leitores “compulsivos” – talvez por isso todos os sete filhos sempre tiveram a “mania” de se entregar longas horas à leitura ler e de perguntar-se mutuamente sobre as leituras uns dos outros. De um modo especial a minha mãe e o meu irmão mais velho, o Miguel, tinham a poesia no sangue. Não só escreviam versos, mas declamavam-nos. Foi assim, creio eu, que fui ganhando familiaridade com as obras de vários poetas. Claro que isso me instigou a muitas outras leituras quer em prosa quer em poesia para além dos autores falados lá em casa. Não será pois de admirar que gastasse muito tempo em livrarias buscando incessantemente autores conceituados, outros esquecidos, e também novidades. Nessas procuras por tudo quanto vendia livros deparava por vezes com volumes proibidos. Isto antes de 1974. Ora sucedeu, que numa dessas livroxadas, talvez num alfarrabista, encontrei um grosso livreco intitulado “antologia da poesia erótico-satírica portuguesa”. Este infeliz alfarrábio foi, sinais dos tempos, reeditado e encontra-se, nos dias de hoje, nos vendedores mais considerados…

Naquele tempo, tinha eu ganho o gosto de aprender de cor poesia e de a recitar aos amigos. Com uma avidez torpe e pornográfica entreguei-me não só à leitura mas também à memorização daquelas versalhadas obscenas, lascivas, sórdidas. 

Calhou, pouco depois, ir passar as férias grandes – nessa época eram mesmo enormes: começavam em princípios ou meados de Junho e terminavam nos princípios de Outubro -, ao Porto, a casa de meus avós maternos. Nas extremidades do largo jardim que rodeava a casa de S. Miguel, assim se chamava, foram edificadas as moradas de duas tias e um tio. De modo que aquilo era uma espécie de clã com muitos primos. Uma das minhas primas, tinha um namoro com um fulano que tinha carro, era um acelera, e era perdido pelos Supertramp, uma banda recém-formada, que ouvíamos repetidamente enquanto viajávamos.

Ora, eu passei, praticamente, todas as férias com eles, percorrendo o Norte em fartas almoçaradas, jantaradas, restaurantes e bares nocturnos. Como na altura não era o sorumbático que agora sou, estava sempre eléctrico, proferindo chocarrices, gracejos, apalhaçando os ambientes onde estava, metendo-me com toda a gente, entrando pelas cozinhas pondo todos a gargalhar, os empregados da restauração como me achassem piada iam-me oferecendo (sim, gratuitamente) whiskies, águas-ardentes, e tudo o mais que contribuísse para estimular e aumentar a minha euforia.

Só quem tenha assistido poderá ter uma ideia (ou um pesadelo) do que foi esse vertiginoso turbilhão delirante em que a brados, de pé, em cadeiras ou em mesas, declamava, para gáudio geral, as imundícies fétidas, as hediondezas impúdicas, as ignomínias safadas que aprendera naquele manual de corrupção crápula. Exercia então um fascínio, uma sedução, um magnetismo poderoso que arrebatava os mais sossegados e os mais velhos que me aplaudiam e aclamavam com hurras estrondosos. 

E não haver naquela massa de gente uma única pessoa que invectivasse esse jovem de 17 ou 18 anos (a maioridade naquele tempo era aos 21 anos), que lhe desse um sopapo, e o mandasse calar, e ter juízo… Ou que pelo menos o chamasse à parte e tivesse uma conversa séria… Ninguém, ninguém tomou a iniciativa. Eu era um herói, um artista, repetidamente confirmado pelos mais velhos no erro, no pecado, na alucinação. 

Não encontro palavras adequadas para descrever o mal que fiz a mim mesmo com tamanho veneno; mas estou em que as repercussões nos outros terão sido bem mais perniciosas. Como reparar os ruins malefícios perpetrados? 

Mais tarde, quando Deus me foi buscar à cloaca embostelada em que estava mergulhado, me virou do avesso, e me alimpou purificando-me da javardice, concedeu-me ainda Graça de não proferir mais palavrões. Tanto quanto me recorda terei dito, em contextos bem determinados, duas ou três vezes as cinco letras. Já lá vão 35 anos. Não há duvidar que só a Omnipotência Divina conseguiria esta transformação. Mais me concedeu que, lembrando-me embora dos poemas antigos decorados, somente não tenho memória dos devassos.

Mas o mais admirável consiste em ter escolhido este esgoto conspurcado que continuamente jorrava espurcícias infectas, pútridas e pestilentas, para boca da Sua Verdade, da Sua Palavra, do Seu Perdão, do Seu Amor, da Sua Inocência, da Sua Pureza.

Assim se verifica aquilo que S. Paulo diz: onde abundou o pecado superabundou a Graça de Deus.

Assim nos ensina o Senhor nunca se deve desesperar da conversão de ninguém.

29. 11. 2012