Nos dias que correm é difícil
encontrar um cristão que tenha uma noção adequado de Quem é Deus no Seu Amor. E
o que mais assombra é que a insistência na Misericórdia Infinita do Senhor seja
o motivo ou o meio pelo qual se vem a ter essa ideia distorcida do Amor Trinitário.
No entanto, se considerarmos que o anúncio da Misericórdia habitualmente não é
acompanhado da proclamação de outras verdades Reveladas tais como a Justiça, e
a Ira Divina, a exigência de conversão, com a consequente emenda de vida, a
necessidade da penitência, da perseverança, da fidelidade até ao fim,
repararemos que não há razão alguma para ficarmos assarapantados. Além disso,
calar o que é o Amor, a Sua Santidade, ou seja, a incompatibilidade absoluta
com o mal e o pecado; silenciar as Suas exigências, o Seu zelo pela nossa perfeição
e salvação eterna é atraiçoar esse mesmo Amor. O Amor se o é o realmente tem,
por isso mesmo, uma enfuriação contra todo o desamor, um verdadeiro ódio ou
detestação daquilo que a Ele se opõe, estorvando os Seus desígnios de Redenção
de cada pessoa humana. Daí que o Antigo Testamento (AT) afirme o ódio de Deus
ao mal, narre as Suas tremebundas invectivas, O mostre rugindo fúrias contra o
pecado.
Estas passagens que infundem
pavor levaram alguns, entre os quais se destaca Marcião, a separar o Antigo do
Novo Testamento (NT), como se naquele não estivesse latente, aquilo que neste
se torna patente; chegando ao excesso herético de afirmarem a existência de
dois deuses, sendo que o do AT era mau e o do NT, pelo contrário, bom. Contra
esta interpretação distorcida se levantaram os Evangelistas e a demais Igreja
nascente. Há um só Deus, infinitamente benigno, que Se Revela tanto na Antiga
como na Nova Aliança, que Se fez homem, nascido da Virgem Maria, pelo poder do
Espírito Santo, foi crucificado, ressuscitou, ascendeu ao Céu e de novo há-de
vira a julgar os vivos e os mortos. Jesus Cristo, nosso Redentor e Juiz, é a
Chave de leitura, o critério definitivo e irrenunciável de interpretação da Sagrada
Escritura, pois n’ Ele o Pai disse-nos tudo, Ele é a plenitude da Revelação.
Jesus Cristo “que passou fazendo
o bem e exorcizando todos os que eram oprimidos pelo diabo”, Revelou-Se-nos como
O poderoso guerreiro, O militante infatigável, O pelejador constante contra
satanás e contra o pecado, em que ele nos tinha escravizados, para nos Libertar
para a verdadeira Liberdade, que é a Comunhão de Vida e Amor com Ele. E, deste
modo nos mostrou, contrariamente ao que hoje se presume, que não é possível
fazer o bem sem combater denodadamente o mal e o pecado.
Que o amor a Deus, o único amor
do qual todo o outro amor brota, e se corrompido nele se purifica, implique necessariamente
um horror e abominação do pecado é ensinamento expresso deste Senhor
infinitamente benevolente e benfazejo quando, por exemplo, proclama: Ninguém
pode servir a dois senhores: ou há-de odiar a um e amar o outro, ou há-de apegar-se
a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Cf. Mt 6, 24; Lc 16, 13). Também
nos adverte que se não nos convertermos pereceremos imprevistamente de modo
semelhante aos galileus chacinados por Pilatos ou os jerosolimitanos esmagados
pela derrocada da torre de Siloé (Lc 13, 2-5). Será,
possivelmente, da meditação desta passagem que terá surgido a oração que os
nossos antepassados rezaram durante séculos implorando a Deus que os livrasse
de uma morte súbita e imprevista. Esta súplica insistente e confiante brotava
de uma consideração do peso da eternidade à luz da qual era vista esta vida. Para
estes cristão o problema não era tanto a morte biológica, mas o Juízo de Deus,
no qual se joga o destino eterno. De facto, o Mesmo Juiz que diz a uns “ … vinde
benditos de Meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação
do mundo … ” (Mt 25, 34)
é o Mesmo que impera a outros “Retirai-vos de Mim, malditos! Ide para o fogo
eterno destinado a satanás e aos seus anjos.” (Lc 25, 41). A Igreja, Cristo em nós, continuado e
Presente na História de todos os tempos, durante séculos e séculos, apresentou o
rosto de Jesus Cristo, Deus humanado, na Sua completude de Juiz Justo e
Misericordioso. Era habitual, por exemplo, no púlpito, na pregação, no sermão, não
só exaltar a Majestade Gloriosa de Deus, enaltecer as Suas obras, recordar os
Seus prodígios em nosso favor, persuadir-nos do Seu Amor mas também trovejar cóleras
contra o pecado, bramir iracundamente contra o derrancamento dos costumes, tendo
como intento mover as almas ao arrependimento, em vista de uma confissão feita
bem, que pudesse restabelecer a comunhão de vida e de amor com o Senhor, e com
o próximo (além disso, ao desmascarem os ardis do Maligno e as manhas da natureza
humana, possibilitavam o reconhecimento da culpa própria, e com ela a consciência
de serem livres, e não meras vítimas inermes determinadas pelas circunstâncias).
Deste modo, os penitentes aproximavam-se confundidos e temerosos, com grande atrição,
dos sacerdotes para receberem a absolvição de seus pecados mortais, sendo-lhes
assim perdoadas as penas eternas, devidas aos mesmos. Porém, no confessionário
quem os acolhia não era já o rosto severo e rigoroso do Apocalipse, mas sim a
face jubilosa, jucunda, transbordante de misericórdia, do Pai do filho pródigo.
Este encontro conseguia frequentemente mover o penitente à contrição perfeita,
isto é, a um arrependimento não já nascido do santo temor de Deus mas sim do
santo amor.
Será recto e justo dispensar o
modo como Deus nos falou na Sagrada Escritura, na Tradição da Igreja, enfim nos
Seus Santos, ou seja, naqueles que Ele fez participantes da Sua Santidade?
Haverá ainda muitos cristãos que saibam
que o pecado existe? E conheça a gravidade do mesmo? Que acredite no Inferno?
Que saiba o que é o bem e o que é o mal? Que os saiba distinguir? Que não os
troque?
Será ainda possível designar o
mal e o pecado pelos seus nomes sem que as pessoas se sintam agredidas, em vez
de agradecidas pela verdade/amor que lhes é comunicado?
Seja como for, a verdade
permanece: é impossível amar sem odiar. E não se pode praticar o bem sem
combater o mal.
20. 11. 2012