16. 04. 2013
Muitos se recordarão, ainda que
vagamente, como eu, de uma narrativa de Eça de Queirós, que nos descreve uma
família escutando um dos seus membros lendo em voz alta as notícias relativas a
desastres e catástrofes relatadas pelo jornal. Nessas páginas de aguda perspicácia
mostra-nos o autor como as reacções e intensidade das comoções de cada um não
dependem da dimensão real da tragédia nem da profundidade do sofrimento alheio mas
sim da proximidade geográfica e do maior ou menor conhecimento que se tem das vítimas.
Assim, uma cheia diluviana que afogou centenas de milhares de chineses é encarada
com a maior das indiferenças, talvez um leve bocejo, enquanto o torcimento de
um tornozelo da vizinha provoca grande aflição e um enorme sobressalto.
Tão calejado e empedernido que estava,
e ainda estou (ou estamos?), pela torrencialidade quotidiana de calamidades noticiadas
por grandes meios de comunicação social, há uns anos atrás, morando eu no convento
de S. José, em Campo de Ourique - poiso e remanso de grandes Missionários
franciscanos, quando vinham recuperar forças, restabelecer a saúde e tratar de
assuntos úteis e necessários às Missões africanas -, rebentou mais uma das inúmeras
guerras, ou guerrilhas, a que a Guiné-Bissau nos acostumou. Confesso que não me
deu grande cuidado a não ser o de rezar pelas vítimas e também pela Paz – era,
tão só, ajuntado às orações usuais.
Ora sucede que por esse tempo
tinha vindo a esmolas, para socorro das suas ovelhas, a cujo cheiro tresandava,
o benigníssimo e provecto Bispo daquelas gentes, o franciscano D. Settimio
Ferrazeta. Escusava-se à hora do jantar para ansioso escutar os telejornais
sobre o que se passava com o seu povo. Como era mouco, em virtude da diminuição
das capacidades auditivas e a sua vista estava muito enfraquecida, permanecia
de pé com a cara praticamente colada ao ecrã, não ao centro, mas do seu lado
esquerdo. A sua angústia e o seu sofrimento eram visíveis, a sua dor patente, a
expressão do seu rosto comovia até às entranhas, era manifesto que
experimentava a tragédia que se abatia sobre a sua Igreja, sobre cada um dos
seus e dos que estavam destinados a conhecer Jesus Cristo, como sua. Os
padecimentos daquele povo, eram os seus. Parecia mesmo vivê-los com maior intensidade
do que aqueles que lá se encontrava. Aquele rosto era transparência do Amor de
Jesus Cristo. A ele me rendi tão completamente, que aquilo que me era estranho
e mais uma catástrofe entre muitas outras se transformou numa vivência
existencial, num cuidado empenhado, numa preocupação constante, num
comprometimento oracional mais sério e frequente.
Quando na meditação imaginária(uma verdadeira forma de oração), que ontem redigi, falo de padecimentos que não
são fruto de doença psiquiátrica nem de possessão demoníaca, uma vez que os
tratamentos efectuados se mostraram impotentes para os remediar ou simplesmente
aliviar, refiro-me a algo mais profundo, ou melhor Misterioso, que indico com as
expressões “participante nos sofrimentos de Cristo” e, no final, “todas as
injustiças que eles padecem se abatem sobre mim”. “Eles” são os que aparecem no
sítio para que remete o link “Socorram-me,
por Caridade”, isto é os embriões humanos, quer dizer as pessoas na fase
inicial da sua vida, aqueles que tanto o Papa João Paulo II como Bento XVI
afirmaram categoricamente ter o mesmo valor transcendente que qualquer um de nós.
Eles são eu, eles são tu, são o teu melhor amigo, o teu mais querido familiar,
melhor e mais ainda, eles são Jesus Cristo, que os Criou, por Eles Se fez homem,
sofreu a Paixão e foi ignobilmente Crucificado. Por cada um deles, como por ti.
Incorporados pelo Baptismo em Jesus Cristo, “completámos na nossa carne o que
falta à Sua Paixão”, isto é, a ela somos associados para que a Redenção, em si
completa e perfeita, se torne efectiva em nós e nos outros.
Quem socorre, pois, aos entre
todos mais “periféricos”, para usar uma expressão do Papa Francisco, aos mais
esquecidos, ignorados, abandonados, que não têm voz para se defender nem
presença na comunicação social para se manifestarem e reivindicarem os seus
direitos, acode-me a mim, muito mais, acode ao próprio Jesus Cristo.
Mas reconhecer a pessoa humano no
seu estado embrionário, respeitá-la, protegê-la e amá-la é uma enorme Caridade
que se faz também a todos aqueles que estão envolvidos, como perpetradores, nesta
raivosa hecatombe, sem precedentes na história da humanidade. As horribilíssimas
penas inomináveis que lhes estão destinadas, caso não se arrependam e se
convertam, após o Juízo pessoal e universal, podem, de algum modo, ser
carregadas por nós vicariamente (substituidamente) como uma Cruz que possa,
sobrenaturalmente, influir nas suas liberdades escravizadas de modo a transformá-las
em liberdade de tender para o Amor, para Deus. Também a esses sofrimentos me
refiro na meditação de ontem.
Pelos vistos, não me expliquei
bem no texto de ontem, pois deixei algumas pessoas em grande alvoroço
preocupadas tão só por mim – creio que a sua excessiva amizade os detiveram nas
feridas do dedo sem toparem que ele apontava a lua ensanguinhada. A culpa
evidentemente foi minha que não revi o texto (confesso que também não o farei
com este, pois custa-me tanto escrever que fico de tal modo esbodegado de cada
vez que redijo qualquer insignificância, que não tenho forças, nem disposição,
nem vontade par o fazer) e conclui-o abruptamente.
Mas não peço desculpa, porque
estou confiado que Deus aproveitou o vosso susto e as vossas orações para tudo
reverter em favor das pessoas no seu estado embrionário e dos grandes pecadores
frios e implacáveis que as subjugam impiedosamente.
Estou verdadeiramente persuadido,
em virtude da grande estima que me têm e do grande amor que nutrem por Jesus,
que todos não só assinarão a petição Um
de nós, como se empenharão em fazê-la chegar a muitos outros para que todos
possam participar da infinita alegria de Deus.
À honra e glória de Cristo. Ámen.