Na noite escura e fria de 24 de Dezembro, pela hora de jantar, estavam as ruas desertas quando Pedro se deparou com mais um presépio numa praça da capital. Explodiu então uma irritação subterrânea que durava desde o início das luminosidades em Novembro.
- Arre,! que é demais! Porcaria de superstição! Cambada de alienados!
E num furor trepou pelo estrado, pontapeou duas ovelhas, esbarrou num pastor e, literalmente, esmurrou um rei mago. Chegado à beira de S. José empurrou-o com ambas as mãos exclamando: vai trabalhar ó carpinteiro! Depois, com um riso sarcástico, trejeitou uma vénia a Nossa Senhora dizendo: com sua licença, ó virgem, tásse mesmo a ver… E arrebatou o Menino Jesus, imagem pouco maior que um palmo. Olhou-o de frente e falou com ele como se o pudesse ouvir: escusas de estar com esse sorrisinho idiota e com essa atitude lamechas de bracinhos abertos, que não te gramo nem com molho de tomate. E num acto de cólera tresloucada deitou-lhe a língua de fora e esbugalhou-lhe os olhos. O Menino continuou a sorrir e dos seus olhos irrompeu uma ternura inexplicável que espantou o jovem. Num susto, sem querer pensar no assunto colocou o Menino num dos bolsos do seu Gore-tex xxl. Mal acabara de fechar o blusão com as tiras de velcro deu de caras com dois polícias que na sua ronda dobravam a esquina. Com o ar mais simpático do mundo, logo os saudou:
- Então boas-festas! Um feliz Natal!
- Obrigado. Igualmente para si.
- Azar o vosso, não poderem estar com as famílias. Mas estejam certos que nós reconhecemos o vosso sacrifício, e estamos agradecidos. Olhem, já agora, estranhei passar por aquele presépio e ver imagens derrubadas e o Jesus desaparecido. É incrível a vandalismo, já não há respeito por nada!
E, despedindo-se, seguiu caminho pensando: cretinos, em vez de serem como os seus antepassados romanos… Agora dão em guardar o que deviam crucificar. Alienados.
Crescia nele um tumulto de raiva e ódio, era uma erupção de cólera, um delírio de agressividade violenta. Desatou, então, numa correria desenfreada lançando gritos desarticulados até dar com uma rua escura numa zona em que rareavam as casas de habitação. Como não visse ninguém, tirou do bolso a imagem e com arrebatamento atirou-a ao chão. Para seu espanto, não partiu. Ao pontapeá-la, apesar das botas, sentiu dor nos dedos dos pés. Resolveu, por isso, espezinhá-la saltando-lhe em cima com os dois pés. Porém, a imagem era feita destes materiais modernos que parecem inquebráveis. Ofegante, reconhecendo-se impotente para destruir o menino, olhou ao redor e deparou com um grande caixote do lixo. O lixo é o teu lugar!, pensou com rancor. E num ímpeto de ferocidade abriu a tampa do mesmo e arremessou furiosamente o Menino. Fechou-a de seguida com estrondo e imprecações à mistura. Sentiu-se aliviado embora lhe doesse fortemente a cabeça e vacilasse nos primeiros passos. De repente pareceu-lhe ouvir um choro de bebé. Atribui-o porém à imaginação. Mas à medida que avançava o pranto persistia.
Estacou então. Susteve a respiração para apurar o ouvido. Não havia dúvida, eram gemidos de bebé. Começou, por isso, curioso e ansioso a procurar de onde ele vinha. De pressa chegou à conclusão que o som dos lamentos vinha do caixote do lixo. O coração começou então a bater-lhe fortemente no peito, teve vontade de fugir, as pernas tremiam-lhe, os braços e as mãos convulsivos ora avançavam para a tampa ora retrocediam. Começou a experimentar falta de ar, uma forte ansiedade apoderou-se dele, sobrevieram-lhe suores frios, sentiu-se desfalecer, caiu prostrado na calçada.
Procurou reagir, levantou-se com custo amparado ao contentor, abriu-o, olhou para dentro mas como estivesse quase vazio não conseguiu enxergar o seu conteúdo. Derrubou-o então e lembrando-se que tinha uma led no porta-chaves enfiou-se pela boca do pequeno contentor com ela acesa. Viu então o Menino de costas para cima, deitado ou abraçado a qualquer coisa que o fazia mover-se. A medo retirou a imagem e deparou com um recém-nascido ali abandonado. A visão paralisou-o. De gatas, dentro do caixote, emudecido olhava pasmado para o bebé chorando e para o Menino sorrindo. Ao despertar do letargo, procurou agitado o telemóvel para chamar o 112. Mas por mais que procurasse não dava com ele.
Certamente teria ficado esquecido em casa. Nesse comenos escutou o rumor de um automóvel. Levantou-se ágil, correu para o meio da rua agitando os braços e urrou: pare, pare, urgência. O automobilista assustado pelos esgares e pelo contentor derrubado com o lixo derramado, pôs os máximos, carregou na buzina e acelerou. Como o jovem não se movesse do meio da estrada, o condutor travou a fundo com uma grande chiadeira, engatilhou a marcha atrás enquanto o moço corria ao seu encontro gesticulando aflitivamente. Mas o automóvel foi mais rápido acabando por desaparecer na esquina. Desconsolado, olhou de novo o bebé e sentiu uma profunda e estranha comoção. Nunca tinha experimentado nada parecido. Era uma atracção fortíssima, um sentimento protector, um estar polarizado por aquela presença tão débil e inocente. Num impulso pegou-lhe ao colo, aconchegou-o a si, beijou-o na fronte e desatou num pranto convulsivo. Aqueles olhos eram duas fontes que jorravam rios de lágrimas.
Nunca chorara tanto na sua vida, nem nunca vira ninguém fazê-lo. Enquanto soluçava com grandes clamores todas aquelas emoções revoltas e furibundas de que padecia desapareciam para dar lugar a uma paz até então desconhecida. De repente, despegou numa corrida desenfreada. Tinha de levar urgentemente a criança ao hospital.
Prorrompeu pela Urgência do hospital de Santa Maria, o mais vizinho dos sítios onde se encontrava, esquivando-se aos seguranças que o seguiram numa correria, só parando quando deparou com uma médica de bata branca e estetoscópio ao pescoço a quem entregou o menino encontrado. Seguiu-se uma balbúrdia de explicações e questionamentos enquanto a criança era limpa, agasalhada e encaminhada para o local adequado.
Depois de identificado e interrogado pela polícia despediram-no com a promessa de poder vir a visitar, quando as condições o permitissem, o bebé que tinha salvado.
À medida que se ia afastando experimentava uma alegria nova, um júbilo inteiramente puro, uma ledice tranquila. Olhava para a noite com satisfação e contentamento. Lembrou-se entretanto que tinha deixado o Menino no lixo do caixote tombado no meio da rua. Apressou o passo e voltou à rua deserta. Um cão vadio focinhava nos restos de comida espalhados no chão. Do outro lado da rua a imagem do Menino encostada ao lancil olhava divertido a refeição do animal.
Abeirando-se do Menino, o jovem baixou-se fazendo menção de agarrá-lo, mas o cão que parecia não ter notado até aí a sua chegada, virou-se ladrando, correu, abocanhou o Menino e colocou-o em posição idêntica no lancil oposto. Depois sentou-se e começou nuns latidos nada ameaçadores, mas difíceis de decifrar. Pasmado, no lado oposto, sem saber o que fazer encostou-se a uma parede. Como o cão silenciasse permanecendo embora no mesmo lugar, fez uma nova tentativa de apanhar o Menino. Mas o bicho tinha-se feito guardião do Menino e não o deixava aproximar-se.
Neste lance deu-se um apagão na cidade. O jovem sentou-se na beira da calçada com ar desconsolado, e como não tivesse com que desabafar começou a narrar os acontecimentos dessa noite ao cão que pelos movimentos das orelhas e as expressões do focinho dava ares de escutá-lo atentamente. Quando chegou à parte de contar que ali tinha voltado com o propósito de restituir o Menino ao presépio, o cão abanou a cauda, deu dois breves latidos, abocanhou o menino e colocou-o no regaço do mancebo.
Estupefacto com o sucedido afagava o animal em gesto de agradecimento enquanto com a outra mão levava o Menino aos lábios para o beijar. Em seguida, ergueu-se decidido a devolver a imagem. Mas a escuridão era tanta que não sabia como orientar-se. Depois de uns passos indecisos sentiu que alguma coisa o repuxava pelas calças. Olhando viu o cão que parecia querer indicar-lhe o caminho. Resolveu-se a segui-lo e reparou então que um grande clarão iluminava intensamente o céu. O rafeiro guiava-o na direcção dessa luminosidade. À medida que ela ia crescendo foi reconhecendo os lugares por onde passava até chegar à praça do presépio. Este estava rodeado de uma multidão de desabrigados que contemplavam maravilhados um Menino mais belo que o sol que a todos abençoava da manjedoura. Num silêncio religioso todos se ajoelharam enquanto embevecidos escutavam uns cânticos misteriosos que esvoaçavam numas asas de fogo. Enlevado naquele milagre, ignoto aos que estavam em suas casas, não reparou numa moça a seu lado que de tanto chorar já tinha os longos cabelos ensopados. Foi o cão que o despertou repuxando-o novamente. Ouvindo os soluços e olhando exclamou: Madalena! Ela como se o seu olhar o atravessasse sem o ver continuava inconsolável.
Ele aproximou-se, abraçou-a, mas ela estremeceu e repulsou-o. Dando um passo atrás, estendeu-lhe timidamente o Menino. Ao vê-lo, ansiada, apertou-o ao peito, pediu-lhe perdão, rogou-lhe milagres. Neste lance, seis asas de fogo envolveram-nos formando uma espécie de redoma viva. Contemplando-se reciprocamente viram a verdade toda em cada um. Choravam mas a agora de alegria, de gratidão.
Tinham tido namoro. Ela engravidara. Ele pressionou-a fortemente, juntamente com os pais dela, para abortar. Resistiu até às nove semanas. Finalmente sob ameaça de ser expulsa de casa por parte do pai, decidiu-se. Foi à “clínica”, sem aceitar companhia. Já na preparação quis desistir. Disseram-lhe que já não era possível. Num momento de distracção do pessoal, escapou-se e fugiu. Chegou a casa e disse secamente que o trabalhinho estava feito. Telefonou ao namorado comunicando o mesmo e dizendo que nunca mais o queria ver. Não podia amar um homem que a obrigava a matar seus filhos. Escondera a gravidez e partejou sozinha nessa noite de 24 de Dezembro, nas traseiras do prédio onde morava. Como chegasse a hora de jantar e não quisesse ser denunciada pelo choro do bebé, envolveu-o em jornais e colocou-o no contentor do lixo para ficar ao abrigo do frio e de ratazanas ou outros animais que pudessem ser nocivos. Quando lá voltara vira o caixote derrubado e destampado.
Os dois polícias com quem Pedro tinha quase chocado, maravilhados por aqueles fenómenos extraordinários, tiraram os bonés e aproximaram-se com reverência. O Menino que tinha permanecido nas mãos de Pedro elevou-se e alargando a redoma que era o seu amor abarcou nela os dois polícias.
Terminados estes mistérios logo se conjuraram em encontrar uma solução que não incriminasse ninguém e que fosse a contento de todos. Como os guardas fossem da esquadra fronteira ao colégio de S. Tomás, na Paróquia do P. Duarte, estavam ao facto do generosíssimo trabalho a favor da vida que ele com o seu Ponto de Apoio à Vida tem desenvolvido. Acharam, por isso, por bem dirigirem-se lá. Uma vez que era noite de Natal seguramente o encontrariam por causa da Missa do Galo. Ao chegarem, pela meia-noite, estava esta a começar. A Igreja abarrotava de gente mas como era mais quente lá dentro do que fora e a noite estava gélida decidiram-se a assistir à Missa coisa que não faziam desde a meninice.
Tudo os encantou. Os cânticos, a atenção das pessoas, a simpatia do P. Duarte, o fogo das suas palavras, os penitentes que iam e vinham dos confessionários. Tocados pela graça sentiram um impulso para se confessarem. Felizmente puderam fazê-lo ao mesmo tempo. Um ao P. Rui e outro ao P. Bento. Depois da absolvição sentiram-se renovados, ressuscitados. Quando o P. Duarte levantou a Hóstia Consagrada pronunciando as palavras rituais - Eis o Cordeiro de Deus; Eis Aquele que tira o pecado do mundo -, o Pedro viu o Menino de braços abertos, sorrindo e penetrando-o com o Seu olhar de amor.
Acabada a celebração. O P. Duarte quis conhecer a criança. Como no hospital lhes dissessem que o bebé estava em estado crítico. Foi baptizado nessa mesma noite. O padrinho foi o polícia mais velho e a madrinha a médica que assistia a criança a quem foi dado o nome de Menino. Depois de uma breve estada na casa de Santa Isabel, conseguida a reconciliação com os pais, a Madalena voltou ao lar. Ela e o Pedro estão em vias de se casar. E a imagem do Menino roubado foi oferecida ao Pedro e está num oratório no seu quarto.
Nuno Serras Pereira
22. 12. 2008