1. Se hoje sou vivo devo-o a muitos médicos. Ao que sei, a primeira vez que a minha vida perigou tinha eu cerca de 4 anos de idade, tendo estado em coma alguns dias, por numa tarde de grande calor ter bebido, à socapa dos adultos, água estagnada e pútrida de uma dorna. Considerando esse momento, experimento um misto de gratidão (para com o Dr. Santana Maia, que então me salvou - Deus lhe fale na alma, uma vez que o chamou a Si) e de tristeza por não ter partido, pois tinha o Céu garantido. Agora, já adulto, o que me assusta não é a morte mas o Juízo depois dela. Ninguém, assim o definiu o Concílio de Trento, pode ter a certeza, de Fé, que está na Graça de Deus. Poderá isso sim existir uma convicção moral e existencial que se obtém através de vários sinais, tais como o cumprimento dos mandamentos, de todos e não só de alguns, o amor e a prática dos sacramentos, uma vida de oração, a vivência das bem-aventuranças, a prática das virtudes, etc. Claro que devemos ter Esperança de Salvação, se não pecaríamos contra o Espírito Santo, mas ofendê-Lo-íamos igualmente caso tivéssemos presunção da mesma.
2. a) Ninguém, bem formado, ignorará que há determinado tipo de actos morais que são especificados pelo seu objecto, independentemente das intenções ou circunstâncias, e que por isso a proibição que sobre eles impende obriga sempre, sem excepção alguma, em todas as circunstâncias. Esses absolutos morais salvaguardam os bens da pessoa humana enquanto pessoa. Quando a Igreja ensina com a autoridade do próprio Cristo que a contracepção é intrinsecamente má ou perversa (pecado grave contra o sexto mandamento) não está a fazer mais do que a garantir e assegurar a verdade sobre o amor humano. Recusar, consciente e livremente, esta verdade da lei moral natural sobre a malícia da escolha contraceptiva significa rejeitar não só a Deus como Criador mas também como Revelador.[1]
b) Para que exista um acto contraceptivo não basta, para dar um exemplo, tomar a pílula. De facto, esta poderia ser usada por razões médicas, para tratar alguma desordem fisiológica, sem que existisse nenhum propósito, apesar de previsto, como consequência indirecta, de evitar a geração (é o chamado princípio moral do duplo efeito). Dizem-me médicos da especialidade que nos dias de hoje não há quase nenhuma ou mesmo nenhuma enfermidade em que seja necessário recorrer à pílula para a tratar, que já existirão outros meios mais indicados para cuidar desses doentes, que não “esterilizam temporariamente” as pacientes. Se assim for, não haverá então justificação para tomar ou receitar a dita pílula. Acresce que numerosos estudos e inclusive as bulas que acompanham esse fármaco indicam que um dos seus efeitos é abortivo. Pelo que a pessoa que o tomasse tinha a obrigação moral de se abster da relação sexual.[2]
Também não basta o propósito de evitar a geração para existir contracepção, pois é necessário que o acto sexual seja praticado com o consentimento de ambos. Quando ainda se desconheciam (ou melhor se esconderam e por isso se ignoravam) os possíveis efeitos abortivos da pílula, a Santa Sé esclareceu que as mulheres (em países em guerra) que estivessem na iminência de poderem ser violadas podiam tomar a pílula como prevenção e defesa. Feitas estas precisões passemos à alínea seguinte.
c) Imaginemos que estando eu muito descontente com o voto de pobreza me resolvia - depois de me iludir a mim mesmo para não me converter, não fosse desistir do mal que queria praticar -, a roubar um cofre-forte cheio de fino ouro e preciosas pedrarias. Sabia exactamente a quem comprar o instrumento necessário, sabendo ele muito bem qual a finalidade da aquisição, para o abrir mas para isso era necessário consultar-me com uma pessoa que, conhecedora do meu intento me arranjasse uma requisição. Graças a Deus que isto nunca aconteceu, pois se não fora a Sua Graça eu seria capaz disso e de muito pior, mas se tivesse sucedido, alguém teria alguma dúvida sobre a cumplicidade e consequente culpabilidade de todos os três na malfeitoria? É evidente que tanto quem passou a requisição como o vendedor cooperaram de um modo inaceitável com o furto que eu cometi e por isso participam da sua imoralidade ou pecaminosidade.
Pois o mesmo se sucederia principalmente com o médico que passasse uma receita cujo propósito fosse contraceptivo. O farmacêutico, de facto, poderia ignorar a sua finalidade.
3. Um último e telegráfico apontamento, uma vez que o escrito já vai longo, sobre os exames pré-natais. A maioria das grávidas julga que as ecografias são obrigatórias só porque o médico as marca. Não é assim, poderão ser convenientes mas também segundo alguns especialistas tem-se exagerado grandemente o recurso a estas. De qualquer modo, não há dúvidas de que estas, assim como meios complementares de diagnóstico como o exame do líquido amniótico, têm servido para uma eliminação desapiedada e sistemática de uma multidão de crianças nascituras em particular as que apresentam sindroma de Down. Permitam-me que acrescente que conheço vários casos em que tanto a ecografia como a amniocentese indicavam este defeito genético e afinal as crianças nasceram escorreitas, apesar das muitas pressões que as mães sofreram para abortar por parte do pessoal de saúde (?), de amigos (?) e familiares.
Seja como for, uma vez que a prática se instalou e cerca de 90% deste diagnóstico termina em aborto provocado, um verdadeiro médico, ainda para mais se católico, deveria recusar-se à transmissão desse conhecimento a não ser que estivesse seguro que isso poderia sossegar os pais no sentido de os preparar para o acolhimento desse filho. Por isso, sou de parecer que o médico na sua aliança terapêutica com a mãe grávida deveria, desde o início, deixar claro que é médico dos dois, da criança nascitura e da mãe, e que só investigaria e transmitiria qualquer problema com a criança que fosse susceptível de tratamento.
Nuno Serras Pereira
[1] João Paulo II, Discurso aos Participantes no II Congresso Internacional de Teologia Moral, 3-6 – 12 de Novembro de 1988
[2] Para uma visão médica da razoabilidade e verdade da Humanae Vitae ver o estudo da Federação Internacional das Associações de Médicos Católicos: http://frblin.club.fr/fiamc/04texts/ehmann/HumanaeEs80T.pdf