sábado, 23 de maio de 2009

Uma Inteligência Rara

Embora a maior virtude de que me orgulhe seja a humildade, não posso calar a inteligência verdadeiramente singular de que sou dotado. Descendo ao nível dos comuns mortais, não elaborarei abstractamente provas irrefutáveis do meu elevado génio intelectual. Recorrerei ao processo narrativo relatando alguns episódios da minha vida que demonstrarão cabalmente, sem qualquer margem para dúvida, o altíssimo entendimento que possuo.

A talentosa precocidade revelou-se logo aos três anos de idade quando depois de ouvir longas conversas entre adultos, grupo em que se incluía a minha avó paterna, viúva de há longos anos, lhe perguntei se tinha conhecido a D. Nuno Álvares Pereira ; como respondesse que não, quis saber se se tinha relacionado com D. Afonso Henriques; apesar de ter respondido negativamente não desisti da minha inquirição e interroguei-a para saber se tinha conhecido o avô David. Aí, o Miguel, o meu irmão mais velho, explodiu, roído, claramente, por uma enorme inveja do meu subido talento: seu estúpido! Como é que não havia de conhecer se era casada com ele!? Imbecil!

Esta não foi a única vez em que fui incompreendido. Como esquecer aquela gargalhada monumental quando respondi que o “que”, no texto dos Lusíadas sobre o qual estava sendo examinado, era um verbo, aquando da prova oral de português, do antigo 5º ano do liceu?

Naquele tempo, para passar do 6º para o 7º ano (agora décimo e décimo primeiro) bastava não reprovar a uma disciplina. Reprovei a quatro, com a nota de nove em quatro cadeiras. Mas como no Colégio S. João de Brito que eu frequentava, só se podia chumbar a uma para poder lá continuar, sem ter de repetir o ano, mudei para o Manuel Bernardes. Este estabelecimento de ensino, comparado com o anterior, era, por aquela altura, um campo de concentração. Certamente por protesto contra tanta opressão, que supostamente corrigiria os casos difíceis como o meu, brilhantemente reprovei estrondosamente. Matriculado no Crisfal, um ambiente, em comparação com os anteriores, completamente anárquico, continuei a tradição de chumbar. Assim estive três anos no 7º ano (décimo primeiro), tendo feito seis exames de latim e 5 de alemão. A passagem nestas duas cadeiras ficou a dever-se a uma fúria de meu pai que, uns quatro meses antes dos exames, me sovou e me pôs dois explicadores, um para cada disciplina. Esta violência doméstica, este criminoso abuso de menor (a maioridade era aos 21 anos) forçou-me relutantemente a ser bem sucedido… Se bem me lembro o professor que me examinou em latim foi o mesmo da prova oral de filosofia. Tratava-se de um personagem extraordinário, que víamos diariamente no café que então frequentávamos, o Biarritz. Contava-se que quando almoçava e queria um ovo estrelado dizia com voz forte, ao empregado, traga-me, sob a forma de estrelado, o produto da fêmea do cantor da aurora; quando, nos antigos autocarros de dois andares, se impacientava com a demora na paragem, interrogava bramindo: quando é que este mastodonte metálico se põe a andar? Ou, quando é que este dinossauro mecânico inicia a marcha? E muito outros ditos se contavam dele, que agora não recordo. Lembro-me sim, que na prova oral de filosofia, depois de me ter interrogado sobre a natureza do vício me pediu para exemplificar um, ao que eu apontei na sua direcção e disse: fumar. Imediatamente agradeceu e apagou o cigarro no cinzeiro. Terá sido esta insólita gratidão, para aquele tempo, que o levou no exame oral de latim a perguntar-me quantos já tinha feito, tendo eu respondido que quatro, mas tendo logo corrigido para cinco, querendo saber se tinha verdadeiro empenho em passar nesse? Não saberei responder, podendo só adiantar que retorqui que o meu afã e determinação eram grandes, uma vez que meu pai me tinha prometido uma mota de presente caso passa-se na prova.

Depois, no ano lectivo de 1973/74, frequentei o ispa (instituto superior de psicologia aplicada). As aulas eram verdadeiramente interessantes e adequadas ao curso. Até ao 25 de Abril discutia-se a libertação das colónias ultramarinas e depois ensinava-se marxismo-leninismo e maoísmo. Lembro-me de ter ido a meia dúzia de aulas e de me ter surpreendido no final do ano ao tomar conhecimento de que tinha passado para o seguinte. Eram as chamadas passagens administrativas. Como não voltei lá, ignoro se esteja administrativamente formado em psicologia. Não me espantaria.

A minha mãe que gostava muito de escrever peças de teatro e poesia, muito apreciadas pela Sofia e seu marido, o Tareco, como era conhecido entre os amigos, Amélia Rey Colaço, João Villaret, entre outros, infelizmente nunca publicou nada (exceptuando um pequeno conto para crianças), apesar da insistência de críticos de peso; e desde há muitos anos que deixou a escrita. Mas quando éramos miúdos ainda fazia pequenos autos e poemas para representarmos e declamarmos nas noites de Natal, com toda a família reunida.

A mim, repito, a mim, e não a nenhum outro dos sete irmãos que somos, calhou-me – ó injustiça suprema!, ou cegueira mais que cega!, ó carência total de perspicácia! –, ter que recitar a seguinte poesia (vai de memória, pelo que a pontuação poderá não ser a mais correcta):

Disseram-me que eu era burro, Senhor

E o meu coração ficou apertado

Senti-o pequenino, tinham-no esmagado


Chamaram-me burro, asno, jerico

E eu chorei, fiquei revoltado e aflito

Levantei os olhos e vi um presépio na minha frente

Ele estava vazio de gente

Desolado


Uma vaca e um burro como eu

Adoravam um Deus caído do Céu


Sou burro, Senhor

Para nada sirvo, nem sequer para ser montado


Que num beijo de amor

Te possa dar todo o calor

Que te deu

Aquele burro do presépio que era como eu



Nuno Serras Pereira

22. 05. 2009