quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Santas Cóleras

Nestes tempos derrancados em que vivemos a macieza ou delicadeza foi elevada a virtude suprema se não mesmo única. Suprema, uma vez que se considera que nenhuma dela se abeira e que todas lhe estão sujeitas Única, no sentido em que “redime” todos os crimes, vícios e pecados e que quem a tem, todas tem, enquanto que quem a não possui, nenhuma possui. Assim ele confunde-se com a virtude da caridade e também com a da humildade. Esta embaralhação está tão enraizada na mentalidade dominante que não passa pela cabeça de ninguém que a calma e a cortesia tanto podem ser virtudes como verdadeiros pecados.

Se alguém se irrita, se encoleriza, logo é acusado, de dedo em riste, de faltar à caridade, adiantando-se imediatamente que se alguma razão tinha, logo a perdeu, devido aos modos impetuosos ou coléricos com que reagiu.

Ciente disto mesmo o Maligno apresenta-se a mais das vezes com grandíssimos aparatos de simpatia, tranquilidade, doce torpor. Os debates nas televisões, por exemplo, não são ganhos em virtude da substância das questões, mas sim por aqueles que tiverem maior capacidade de engolir sapos vivos com um sorriso benévolo ou pelo que tiver emborcado o maior número de ansiolíticos.

Mesmo entre os católicos é preocupante verificar como tem vindo a crescer o número daqueles que acham que nada é pecado, excepto o indignar-se com veemência, ou que qualquer pecado pode ser desculpabilizado, menos o da iracúndia, mesmo quando esta é uma virtude muito santa e não é falta nenhuma.

Quantas vezes não é a verdadeira caridade apupada, vaiada, acusada de o não ser, por todos perseguida! E pelo contrário, com que frequência verificamos que a descaridade feita fraqueza, desleixo, cobardia, silêncio, calculismo, lisonja, falta de firmeza e determinação, ambiguidade é incensada como amor verdadeiro.

Toda a cólera é, nestes tempos desorientados, dada como desabrimento injusto quando afinal também pode ser muito bem expressão de verdadeira justiça e caridade. Bastaria conhecer bem as Sagradas Escrituras e a vida dos santos, interpretações vivas da Bíblia, para verificar isso mesmo.

Importa, por isso, recordar, por exemplo, o que o grande Doutor da Igreja, o Bispo S. João Crisóstomo (boca de ouro), ensinava os seus: “Só aquele que se enraivece sem motivo se torna culpado; quem se enraivecer por um motivo justo não tem culpa alguma. … Mais ainda: aquele que não se encoleriza quando a razão o exige, comete um pecado grave, pois a paciência não regulada pela razão propaga os vícios, favorece as negligências e leva ao mal não somente os maus, mas sobretudo os bons" (São João Crisóstomo, Homilia XI, in Math.).

Nuno Serras Pereira

02. 09. 2009