1. As santas extravagâncias e excentricidades de S. Francisco de Assis não disseram unicamente respeito à sua relação originalíssima com os elementos da natureza, os astros e os animais. Também no que toca aos sacerdotes encontramos nele uma grande singularidade. Importa, a propósito, referir que o Santo era diácono e, por se achar totalmente indigno, nunca quis ser Ordenado Padre. Lembro-me que há muitos anos, antes de entrar para o seminário, num jantar com amigos e um sacerdote de uma Ordem Religiosa que não a Franciscana lhe referi isso mesmo. Aparentemente ele desconhecia o facto, mas, perspicaz, logo adiantou que provavelmente seria melhor que nem toda a gente pensasse assim pois, de contrário, deixaria de haver Padres. Percebi a mensagem, engoli em seco e mudei rapidamente de assunto.
A devoção e o fervor de S. Francisco pelos Sacerdotes exprimia-se, como dizia, de um modo singular. Por exemplo, afirmava aos seus que se fosse pelos caminhos e lhe aparecesse um Anjo ou um Santo descidos do Céu, de um lado, e do outro, um Padre pobrezinho, ignorante, simplório e pecador, primeiro se dirigiria a este, dizendo ó S. Lourenço espera aí que primeiro vou beijar as mãos deste Sacerdote, uma vez que na Terra só vejo e vem até mim o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo pelas mãos dos Padres que celebram o Sacrifício Santíssimo, no qual se torna verdadeiramente presente Jesus Cristo, nosso Salvador. E continuava exortando os seus frades a que quando vissem um Sacerdote se prostrassem, caso viesse em montada, e beijassem os cascos do cavalo, por reverência ao Mistério Eucarístico que só a eles é dado celebrar.
Numa carta a todos os cristãos escreveu: “Devemos ser católicos; frequentar as Igrejas e reverenciar os Sacerdotes, não tanto por si, se são pecadores, mas pelo ofício que têm de administrar o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que eles sacrificam no altar, e recebem e distribuem aos demais. E firmemente nos compenetremos disto: Que ninguém se pode salvar, senão pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e pelas santas palavras do Senhor que os sacerdotes proclamam, pregam e administram, e só a eles pertence administrar e não a outros.”
Numa outra missiva ao Capítulo Geral e a todos os irmãos, numa parte especialmente dirigida aos Sacerdotes, dita: “Ouvi, irmãos meus: Se a bem-aventurada Virgem Maria é honrada, como é de justiça, porque trouxe ao mesmo Senhor em suas santíssimas entranhas, se o bem-aventurado Baptista tremeu e não ousou tocar a cabeça sagrada do seu Deus, se é venerado o sepulcro no qual por algum tempo Ele jazeu, que santidade, justiça e dignidade não se requer naquele que trata com as suas mãos, recebe no coração e na boca, e distribui aos outros, como alimento, Aquele que já agora não morre, mas vive eternamente glorioso, o Cristo a quem os anjos desejam contemplar? Vede a vossa dignidade, irmãos sacerdotes, e sede Santos, porque também Ele é Santo. E como, por motivo deste mistério, o Senhor mais que a todos vos honrou, assim vós amai-O, reverenciai-O e honrai-O mais que todos”. E num espanto, como que de incredulidade, continua: “Ó miséria grande, ó miseranda fraqueza, terde-Lo vós assim presente, e ocupardes-vos de qualquer outra coisa no mundo!” Depois, extasiado com este Mistério tão excelso, prorrompe arrebatado: “Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o Céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do Sacerdote, está Cristo, o Filho de Deus vivo! Ó grandeza admirável, ó bondade assombrosa, ó humildade sublime, ó sublimidade humilde, que o Senhor de todas as coisas, Deus e Filho de Deus, se humilhe a ponto de Se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão. Vede irmãos a humildade de Deus e derramai diante d’ Ele os vossos corações, humilhai-vos também vós para que Ele vos exalte. Nada de vós mesmos retenhais para vós, a fim de que totalmente vos possua Aquele que totalmente a vós Se dá”.
A citação destes textos torna patente que a reverência e devoção de S. Francisco pelos Sacerdotes deriva de uma Fé firme e viva na Presença verdadeira e substancial de Jesus Cristo na Eucaristia. A sua primeira Exortação, intitulada “Do Corpo de Cristo”, sublinha-o como uma clareza meridiana: “Ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de coração duro? Por que não reconheceis a verdade, e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele Se humilha cada dia, como quando Se baixou do Seu trono real, a tomar carne no seio da Virgem; cada dia vem até nós em aparências de humildade; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do Sacerdote. E assim como aos Santos Apóstolos Se mostrou em carne verdadeira, assim agora Se mostra a nós no pão sacramentado. Os Apóstolos, com os seus olhos de carne, só viam a Sua carne; mas contemplando-O com os olhos do espírito acreditavam que Ele era Deus. De igual modo, os nossos olhos de carne só ali vêem pão e vinho; mas saiba a nossa Fé firmemente acreditar que ali está, vivo e verdadeiro, o Seu Santíssimo Corpo e Sangue.”
Não admira pois que S. Francisco que habitualmente envergava uma vestidura rota e remendada, áspera, da cor da terra, feita do pano mais vil e rude, quando ministrava o altar como Diácono se revestisse de uma esplêndida túnica branca, bordada por Santa Clara. Queria que houvesse o máximo decoro, limpeza e preciosidade em tudo o que servia à celebração da Santa Missa. Era solícito em proporcionar vasos sagrados preciosos para as celebrações, percorria os campos de vassoura às costas para que quando encontrasse uma Igreja ou Capela a deixar asseada, e pôs Santa Clara e as suas Irmãs a confeccionarem com amor e cuidado toalhas de altar, corporais, sanguíneos, alvas que pudessem servir dignamente em tão augusto Mistério.
Às diligências pelo decoro exterior ajuntava as do interior com amor e misericórdia severos: “… a todos imploro, irmãos, beijando-vos os pés e com quanta caridade eu posso, que presteis toda a reverência e toda a honra que puderdes, ao Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tudo o que há no Céu e sobre a terra foi pacificado e reconciliado com Deus Omnipotente. Rogo ainda no Senhor a todos os meus irmãos, que são e serão, e desejam ser Sacerdotes do Altíssimo, que quando quiserem celebrar Missa, puros e com pureza e respeito celebrem o verdadeiro Sacrifício do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com santa e pura intenção, e não por qualquer motivo terreno, nem por temor ou consideração de qualquer pessoa, como para agradar aos homens. Mas que toda a sua vontade, tanto quanto ajude a Graça do Omnipotente, a Ele dirijam, não desejando agradar senão a Ele só, que é o Soberano Senhor. Porquanto neste Mistério só Ele opera como Lhe agrada. E pois Ele nos diz: Fazei isto em memória de Mim, se alguém fizer de outro modo, torna-se noutro Judas traidor, réu do Corpo e Sangue do Senhor. … O homem … despreza, ensuja e calca aos pés o Cordeiro de Deus, quando, como diz o Apóstolo, não discernindo e distinguindo o Pão Santo de Cristo dos outros alimentos ou das outras obras, ou o come sendo indigno, ou mesmo sendo digno o come de modo vão e indigno, quando é verdade que o Senhor diz pelo Profeta: Maldito o homem que faz a obra do Senhor fraudulentamente. E aos Sacerdotes que não põem estas coisas em lembrança no coração, condená-los-á o Senhor, que diz: Amaldiçoarei as vossas bênçãos.” (Carta ao Capítulo Geral e a todos os Irmãos).
2. a) Lembro-me ainda muito bem, quando era novo, do costume que tínhamos de cumprimentar os Sacerdotes beijando-lhes as mãos. Provavelmente, não sei ao certo, este costume que perdurou tanto tempo na Igreja terá tido origem na devoção de S. Francisco àqueles que oferecem, na Pessoa de Cristo, o Sacrifício Eucarístico (por curiosidade, deixem-me adiantar que nalgumas obras de Camilo Castelo Branco os Padres não dizem vou celebrar a Missa, mas sim vou Sacrificar; seria provavelmente o modo de se exprimir nas épocas que descreve e que a mim, homem vil e caduco, me parece bem mais apropriado). Pena era que as senhoras se cumprimentavam, nalguns estratos sociais, do mesmo modo; pena, digo, pela confusão que poderia gerar em muitas mentes – ou a mulher era indevidamente divinizada, idolatrada ou o Padre era feminizado.
Aconteceu-me, várias vezes, na minha mocidade Sacerdotal que alguns fiéis me queriam beijar a mão e eu pressurosamente a retirava achando que era por humildade. Depois caí na conta que o mais certo era o meu coração estar endurecido e por isso estorvasse, em vez de aceitar com simplicidade, a reverência dos fiéis pelo dom de Deus que me tinha transformado ontologicamente, configurando-me com Cristo Sumo Sacerdote e Cabeça da Igreja. Impedia desse modo a manifestação de uma Fé viva e de uma devoção verdadeira a Jesus Cristo, o Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor. Como sou tonto pode bem ser que se alguém me apanhar desprevenido e me quiser oscular a mão eu procure retirá-la. Espero, não obstante, que com o tempo me vá emendando.
b) Confesso que experimento, com uma grande amargura, uma imensa vergonha e um intenso rubor em admiti-lo, mas a verdade é que tenho celebrado muitas vezes este Sacrifício Sublime e Santíssimo com alvas amarrotadas, enxovalhadas, curtas; cordões sebentos; estolas a desfiar-se; cálices e patenas de latão, ou algo parecido, com os dourados e prateados, contrafacções de ouro e prata, desmaiados, gretados, raspados, etc., etc. Mas devo também declarar que dadas as circunstâncias parece tantas vezes inevitável. Não dominamos nem mandamos de modo a poder dispor as coisas de outra maneira e a alternativa seria não Sacrificar.
Tenho, porém, a esperança que, neste ano Sacerdotal nos ajudemos todos uns aos outros, quer Sacerdotes quer Fiéis Leigos ou Religiosos, e assim possamos celebrar estes Mistérios Sacratíssimos com a dignidade que lhes corresponde.
c) Com um mais grave cuidado importará, no entanto, trabalhar pela purificação das consciências através do sacramento da Confissão, Reconciliação ou Penitência de modo a que todos entendam como necessário estar na Graça de Deus para poderem receber dignamente na boca e no coração o Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor, a Quem só é devida a honra a glória e o louvor, Jesus Cristo, Nosso Salvador.
E evidentemente deixar de vez e com a máxima firmeza de dar a Sagrada Comunhão a quem publicamente se encontre objectiva e obstinadamente em estado de pecado grave.
Nuno Serras Pereira